"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Os primeiros tempos do Cristianismo

Ecce homo!, Antonio Ciseri. 
[Pôncio Pilatos apresentando Jesus ao público]

Na Judéia um simples procurador de Roma mantinha a ordem e controlava os impostos, enquanto a administração era exercida pelos próprios judeus através do Grande Conselho, chefiado pela autoridade máxima civil e religiosa do povo hebreu, o sumo sacerdote do Templo de Jerusalém.

Em todos os portos do Mediterrâneo os judeus dispersados pelos romanos continuavam a pregar a religião hebraica, a reunir seus adeptos em sinagogas, a esperar a vinda de um messias que, segundo os profetas, libertaria o povo judeu do jugo estrangeiro, vingaria as humilhações sofridas e imporia ao universo o verdadeiro deus. Muitos falsos messias, no entanto, já haviam surgido, levando assim o Grande Conselho a desconfiar de quantos aparecessem.

Por outro lado, os romanos consideravam estranho e mesmo perigoso esse povo que teimava em não reconhecer os deuses oficiais de Roma.

Jesus Cristo. De acordo com as narrativas dos Evangelhos, no Novo Testamento, nasceu em Belém durante o reino de Augusto, na Galiléia (região da Palestina), o homem que, por seus ensinamentos e por seu exemplo, exerceria uma das mais significativas influências sobre a história e a religião: Jesus.

Com a idade de 30 anos, acompanhado de doze apóstolos (= enviados), começou a percorrer as terras da Galiléia e da Judéia, aí difundindo sua mensagem pelo espaço de três anos. A pregação de Jesus prometia aos homens vida eterna, liberação moral e espiritual. Muitos viram nele o verdadeiro messias (em grego, Cristo); outros, porém, o combateram como inimigo, embora Cristo houvesse declarado que não viera para abolir a lei e sim para mantê-la, além de pregar a não-violência, a caridade, o amor ao próximo, o perdão, a justiça, a misericórdia divina.

O Grande Conselho o acusou de blasfêmia contra Jeová e exigiu do procurador romano Pôncio Pilatos que Jesus fosse condenado à morte. Pilatos não quis indispor-se com o Conselho e tolerou a crucificação de Jesus, pena infligida pelos romanos a bandidos, ladrões e traidores.

Nesse mesmo tempo, na época do procurador romano Pilatos, apareceu Jesus, que era um homem sábio, se todavia devemos considerá-lo simplesmente como um homem, tanto suas obras eram admiráveis. Ele ensinava os que tinham prazer em ser instruídos na verdade e foi seguido não somente por muitos judeus, mas mesmo por muitos gentios. Era o Cristo. Os mais ilustres da nossa nação acusaram-no perante Pilatos e ele fê-lo crucificar. Os que o haviam amado durante a vida não o abandonaram depois da morte. Ele lhes apareceu ressuscitado e vivo no terceiro dia, como os santos profetas o tinham predito e que ele faria muitos outros milagres. É dele que os cristãos, que vemos ainda hoje, tiraram seu nome. (Flávio Josefo, História dos hebreus, v. 5)

Após a morte de Jesus, a despeito da oposição das autoridades judaicas, alguns dos apóstolos continuaram a difundir os ensinamentos de Cristo, congregaram seus seguidores, chamados cristãos, em núcleos organizados na Palestina, sobretudo em Jerusalém. Outros apóstolos, ajudados por novos adeptos, pregaram o cristianismo nas sinagogas das principais cidades do Mediterrâneo. Dois livros do Novo Testamento - Atos dos Apóstolos e Epístolas de São Paulo - nos revelam qual foi a atividade que se desenvolveu para difundir a nova religião.

Os esforços dos apóstolos alcançaram resultados surpreendentes, tanto assim que, no fim do século I, além dos núcleos ao longo do Mediterrâneo, já existiam também em Roma importantes comunidades cristãs, constituídas principalmente de gente das classes pobres, de artesãos e de escravos. E no século II o cristianismo já estava instalado na península ibérica, na Gália, na África, e penetrara em todas as classes sociais, inclusive nos círculos ligados ao imperador e sua família.

Surgiu a assembléia cristã (eclésia, daí Igreja). As várias assembléias reuniam-se ora em residências particulares, ora em seus cemitérios subterrâneos, chamados catacumbas, onde os fiéis, em lembrança da última ceia de Jesus em companhia dos apóstolos, participavam da cerimônia da comunhão. dividindo, entre todos, o pão e o vinho.

Como a religião cristã se contrapunha à religião do Estado romano, provocou um período de perseguições que se estendeu, ora mais, ora menos violento, do século I (desde Nero) até o século III. Essas perseguições, suportadas pelos cristãos com extraordinária coragem, ao invés de enfraquecer o cristianismo, só contribuíram para fortalecê-lo e difundi-lo ainda mais, provocando grande crise religiosa no Império Romano e contribuindo para abalar-lhe os alicerces.

HOLLANDA, Sérgio Buarque de (org.). História da Civilização. São Paulo: Nacional, 1974. p. 105-7.

sábado, 28 de novembro de 2015

O diário de Anne Frank

Desenho feito por um jovem judeu num campo de concentração. “Tocar a cerca significava morte imediata, ainda assim, as pessoas compartilhavam pão, um sorriso… uma lágrima”, Alfred Kantor, 17 anos.

"Sexta-feira, 9 de outubro de 1942.


Hoje só tenho notícias tristes e deprimentes para lhe contar. Nossos amigos judeus estão sendo levados embora às dúzias. Essa gente está sendo tratada pela Gestapo sem um mínimo de decência. São amontoados em vagões de gado e enviados para Westerbork, o grande campo de concentração para judeus, em Drente. Westerbork parece ser terrível: um único lavatório para centenas de pessoas e muito poucas privadas. Não há acomodações separadas para homens e mulheres e todos têm de dormir juntos. [...]

Fugir é impossível; os internados ficam marcados pela sua cabeça raspada ou pela sua aparência judia.

Se é tão ruim na Holanda, imagine o que não será nas regiões bárbaras e distantes para onde são enviados. Sabemos que a maioria é assassinada. A rádio inglesa fala de morte na câmara de gás.

[...] Boa gente, os alemães! E pensar que eu já fui alemã! Não, Hitler tirou a nossa nacionalidade há muito tempo. Na verdade, alemães e judeus são os maiores inimigos do mundo.

Judeu na janela, Felix Nussbaum

 Quarta-feira, 3 de maio de 1944.

[...] Você bem pode imaginar que não são poucas as vezes que nos perguntamos, desesperados: 'De que adianta esta guerra? Por que não se pode viver em comum e em paz? Para que esta destruição?'

A pergunta é compreensível, mas ainda não encontramos resposta que satisfaça. Sim, para que fabricar aviões cada vez mais gigantescos, bombas ainda mais poderosas e, ao mesmo tempo, casas pré-fabricadas, para reconstrução? Por que gastar milhões diariamente, na guerra, enquanto ninguém dispõe de um centavo para serviços médicos, para auxiliar artistas e gente pobre?

[...] Não acredito que somente os grandes, os políticos e os capitalistas sejam responsáveis pela guerra. Oh, não! O homem comum é tão culpado quanto eles, senão os povos do mundo já se teriam insurgido, revoltados.

Jovem judeu na rua, Felix Nussbaum

 Sábado, 15 de julho de 1944.

[...] É muito mais duro para nós, jovens, manter a firmeza e as opiniões em tempos como estes, em que os ideais são destruídos e despedaçados, as pessoas, põem à mostra seu lado pior e ninguém sabe mais se deve crer na verdade, no direito e em Deus. [...] Esta é a maior dificuldade destes tempos: surgem dentro de nós ideais, sonhos e esperanças, só para encontrarem a horrível verdade e serem despedaçados.

Realmente, é de admirar que eu não tenha desistido de todos os meus ideais, tão absurdos e impossíveis eles são de se realizar. Conservo-os, no entanto, porque apesar de tudo ainda acredito que as pessoas, no fundo, são realmente boas. Simplesmente não posso construir minhas esperanças sobre alicerces formados na confusão, miséria e morte. Vejo o mundo transformar-se gradualmente em uma selva. Sinto que estamos cada vez mais próximos da destruição. Sofro com o sofrimento de milhões e, no entanto, se levanto os olhos aos céus sei que tudo acabará bem, toda esta crueldade desaparecerá, voltando a paz e a tranquilidade.

Enquanto isso, é necessário que mantenha firme meus ideais, pois talvez chegue o dia em que os possa realizar.

Sua Anne."

FRANK, Anne. O diário de Anne Frank. Rio de Janeiro: Record, s.d. p. 43-4, 187, 217-8.

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Masculinidade em Nossa Senhora do Desterro no século XIX

Uma rua da cidade do Desterro, Victor Meirelles

Foi em busca de uma vida de afetividade e sociabilidade que Duarte Paranhos Schutel, desterrense, estudante de medicina na cidade do Rio de Janeiro, em viagem pelas terras catarinenses, narrou o vivenciado no romance A Massambu (1861). Crônica sobre os costumes do povo catarinense, o romance acompanha as transformações urbanas que ocorriam nas cidades brasileiras no segundo império.

O dia mal tinha amanhecido, Duarte paranhos Schutel, juntamente com alguns amigos, verificava as bagagens e os apetrechos que os auxiliariam na viagem. O dia nublado, chuvoso e frio indicava que o caminho seria cansativo, o que tornava o percurso ainda mais difícil e perigoso. A festa do Divino Espírito Santo, em Santo Amaro da Imperatriz, cidade distante, a 80 quilômetros de Nossa Senhora do Desterro - atual cidade de Florianópolis - prometia fé e namoricos.

Os jovens amigos aventureiros iam com alguns dias de antecedência, com o propósito de participar da folia que antecedia a festa. De tradição açoriana, a folia do divino era uma pequena companhia de músicos e cantores que percorria, dias antes dos festejos, as ruas da cidade batendo de porta em porta a cantar, a comer, a dançar e a beber, recolhendo dinheiro para a igreja e donativos a serem leiloados no dia da festa do Divino Espírito Santo.

A travessia da serra do ubatão fora penosa com muita chuva e trovões que clareavam a mata e o longo paredão de rochas pontiagudas. O barulho da cachoeira com suas águas virgens a escorrer pelo penhasco obtuso num bailar nômade deixava à mostra suas reentrâncias repletas de languidez. Com habilidade e destreza, ao conduzirem suas montarias, os jovens aventureiros foram conquistando a serra. Agora, a descida, com a trilha iluminada pelos raios do sol, que atravessavam as copas da vegetação espessa, surgia como redentora de todos os temores. 

Na descida, já alcançando a pequena planície, repleta de pés de limões, laranjas e mamões cercados por uma roça de mandioca, os moços festeiros foram despertados pelo barulho de um carro de boi que transportava uma família que se dirigia a Santo Amaro da Imperatriz para participar dos festejos. Vinham famílias inteiras, uns a cavalo, outros em carro de boi, e existiam aqueles que se dirigiam ao lugar das festas caminhando pelas trilhas íngremes da região. Não demorou muito para que as pessoas estabelecessem uma conversa cordial, aos poucos dando referências de onde iam ficar na localidade. Nessas ocasiões, recorria-se ao abrigo de parentes próximos e distantes, às casas dos amigos e aos compadres, ou se amontoavam no interior da igreja em busca de proteção para as crianças e as mulheres. Enquanto isso, as moças, todas faceiras, trocavam olhares, sorrisos e gestos sorrateiros com os rapazes vistosos em busca de um enlace matrimonial. Era tempo também de novas alianças políticas e econômicas, de jogos de cartas com os amigos e de visitas a familiares.

E entre conversas despretensiosas, amenas e singelas, Schutel narra uma cena em que o erotismo invade seus pensamentos ao perceber que, distraidamente, uma das jovens sentada na beira da carroça de boi

[...] ia deixando um pezinho que, às vezes com o balanço, parecia fugir e adiante então um tornozelo bem malicioso.

Nesse descuido da inocência a menina ria conversando com os cavalheiros que pareciam não reparar nos desafios daquele pezinho [...].

Atento à cena que seu olhar observa, formula juízo de valor sobre a falta de atenção dos cavalheiros que cavalgavam logo atrás da carroça e que estabeleciam diálogo despretensioso e ingênuo com a moça. Na sua leitura, os cavalheiros não eram dignos de cobiçar os inocentes pezinhos, pois o primeiro "pequenino e magro trazia nas costas uma enorme bossa, que não era ao certo a da inteligência", enquanto o segundo, "gordo como um vigário", se espalhava sobre a montaria, fornido de barriga "para aguentar o peso desse monstro de cavalheiro".

Diante desse cenário bucólico que seu olhar identificava como território da languidez, percebeu ser a feiura a única coisa, em comum, a unir os dois cavalheiros que cavalgavam em conversação com a delicada e angelical menina-moça a balançar seus doces pezinhos de um lado para outro, criando essa despretensiosa inocência, "dando preferência ora à abundância ora à parcimônia".

Estes dois contrastes tinham, contudo uma cousa de comum, era a fealdade do rosto, nenhum se poderia gabar de mais favorecido do que outro, e por isso reinava a mais perfeita harmonia em sua amizade, onde não tinha entrado o ciúme.

O ciúme na província de Santa Catarina quase sempre foi o motivo dos desafetos das festas. Na vila de Tijuca Grande, distante 70 quilômetros ao norte de Florianópolis, o jornal O Campeão narra notícia dos filhos do senhor João Guerreiro, que primaram numa noite de sábado pela libertinagem e dissolução dos costumes. O motivo para o tumulto que se generalizou nas dependências da residência do senhor Ethur, ilustre comerciante da vila, foi a forma como o jovem Aristo dirigiu-se à namorada de um dos envolvidos.

[...] crê-se que levado por ciúmes, por galanteios do recém-chegado à sua namorada, levou de mão, e sem tir-te nem guar-te, descarregou -lhe uma brutal bofetada. Aristo assim ofendido ao baixar-se para juntar a si o agressor e vingar ao insulto, foi filado na goela por José Guerreiro. A este tempo, meteram-se de permeio outros moços ali presentes, tirando da mão ao primeiro a faca com que se preparava para de novo cair sobre sua vítima.

Engraçada e irônica foi a discussão estabelecida entre Manuel José Ferreira e sua esposa Ana Joaquina na Vila de São José da Terra Firme. Pelas páginas do jornal Correio Catharinense, Manuel e Ana Joaquina travaram discussão sobre traição cometida por ela. Enquanto o marido ultrajado acusava a esposa de adultério e de tê-lo abandonado com três crianças pequenas, sua esposa o denunciava por não querer dar-lhe seu quinhão de terras que possuíam no distrito de Picadas do Sul. O entrevero durou dias na imprensa desterrense e, por onde se andava, não se falava de outra coisa.

Vista do Desterro, Victor Meirelles

Logo que a desavença familiar começou a ser esquecida, a população da Ilha de Santa Catarina se viu envolvida em outro caso amoroso. Para delícia dos moradores da pacata e aprazível vila do Desterro, numa manhã de quarta-feira, um suposto amante preterido diante do seu assédio, vendo-se não mais correspondido em suas intenções amorosas, faz publicar na imprensa:

Recebi seu amável recado! Fiquei sabendo que minhas cartas não terão mais a honra de serem recebidas pela senhora, mas, peço, ao menos responda à que tive a honra de dirigir-lhe em 7 do corrente mês, pedindo uma solução favorável aos nossos negócios.

O viajante Auguste de Saint-Hilaire, que visitou a ilha de Santa Catarina, em 1820, e que aqui viveu algum tempo, registrou que, no Desterro, os homens se privavam de muitas coisas em favor das suas mulheres e amantes. Acrescentou ainda que não observou em outras regiões do Brasil patriarcal uma desproporção tão acentuada do vestuário feminino e masculino. Nos dias de festividades, elas se vestiam com elegância e bom gosto, "e a maneira como se acham trajados os seus maridos faz com que eles pareçam seus criados".

Açoriana, Victor Meirelles

Se os maridinhos arrumadinhos da Ilha de Santa Catarina se sacrificavam em nome de suas esposas e amantes, como constatou Saint-Hilaire, não saberíamos asseverar. Contudo, com o sugestivo título "Amor Perdido", o jornal Periódico da Semana narra as artimanhas que uma suposta amante encontrou por ter sido pega pelo amante nos braços de outro.

Tendo um amante encontrado a sua bela nos braços de seu rival, ela lhe negou atrevidamente o fato - Como! Disse ele furioso, atrevei-vos a negar a desmentir aquilo que eu vi com os meus próprios olhos?! Ah! pérfido! lhe disse ela, bem vejo que tu não me amas, visto que crês mas no que tu vês do que no que digo.

Diante da enfermidade do senhor Genuíno, alguém lhe sugere procurar o doutor Bovino, que possui um "meio fácil" para curá-lo.

O senhor Genuíno está atacado de uma moléstia conhecida pelo nome de corno Mania. Um sujeito a quem isto foi dito lembrou um meio fácil para obter-se cura infalível. E era ser consultado sem perda de tempo o doutor Bovino que cura pelo sistema de Rêlhopathia.

[...]

Ao difundir a economia dos gestos e das atitudes, a burguesia, em ascensão na província de Santa Catarina, tratava de patrocinar as clivagens das condutas. A representação do homem cortês, provedor e próspero tornara-se, no século XIX, a imagem a ser conquistada e construída.

Os rituais das ambiguidades e dos contraditórios buscavam a afirmação de si numa sociedade repleta de salões e palcos. A encenação das atitudes e gestos inventava uma corrente de signos e de simbologias. E seu itinerário evaporava-se nos impulsos de um mundo sem limites. Decifrar os códigos e dominar as etiquetas era a única oportunidade para o homem mensurar e distinguir as práticas de afetividade e de sociabilidade. [...]

[...]

Schutel, depois de devidamente instalado nas cercanias da vila, na residência de um parente distante, logo que chegou à festa do Divino Espírito Santo e diante da movimentação no adro da igreja, bem como no seu interior, perscrutou o burburinho de olhares, gestos e palavras sussurradas em segredos. Sinais identificados como espaço da libidinosidade e que, de acordo com seu juízo ético, "era justamente o prazer que os homens buscavam espalhar com essa festa".

Entre sua inocência e inocentes observações, descreve os homens presentes na festa - roceiros, matutos, mal-educados, magros, apatetados, mal trajados, viciados em jogos, feios, obesos - e, em várias oportunidades, não deixa de criticar, com certa ironia, o vestuário dos homens dessa paragem. [...]

[...]

Auguste de Saint-Hilaire, em sua expedição à província de Santa Catarina, ao visitar a ilha em 1820, viu alguma elegância no vestuário dos homens de maiores posses. Seus trajes eram constituídos de calça de algodão, chapéu de feltro preto e sapatos muito limpos.

Robert Avé-Lallemante, que andou por terras catarinenses em 1858, assevera ao seu indulgente leitor que falta à cidade de Nossa Senhora do Desterro "o verniz de certa elegância", porém encontrou na festa da romaria do menino Jesus "cavalheiros e senhoras muito elegantes a cavalo [...] e que tinham boa aparência".

[...]

John Mawe, que chegou a Nossa Senhora do Desterro no dia 29 de setembro, em plena primavera de 1807, participou de algumas reuniões sociais. Conta que "os habitantes, em geral, são muito urbanos e corteses para com os estrangeiros".

[...]

Ao desencadearem uma série de imagens da população masculina da capital da província de Santa Catarina, os viajantes estrangeiros quase sempre construíram as representações masculinas a partir de seu olhar europeu, que via, no novo mundo, o lugar da barbárie.

[...]

Antonio Emilio Morga. Masculinidade em Nossa Senhora do Desterro e Manaós: territórios e ardis. In: PRIORE, Mary del; AMANTINO, Márcia (Orgs.). História dos homens no Brasil. São Paulo: EDUSP, 2013. p. 213-218, 222-223, 230-232.

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

A atuação dos jovens e das mulheres nos movimentos revolucionários do século XVIII

A prisão da Bastilha, Henry Singleton

"Foi lá [em Spa] que tive notícias, pela primeira vez, dos acontecimentos que anunciavam o aproximar-se de uma grande Revolução na América [...] O troar do primeiro canhão, disparado nesse novo hemisfério em defesa da bandeira da liberdade, repercutiu em toda a Europa com a rapidez de um raio. Recordo-me que os americanos insurgidos eram chamados bostonianos; sua corajosa audácia eletrizou todos os espíritos, provocou admiração geral, sobretudo entre os jovens, partidários das inovações e ávidos por lutas [...]. Esse movimento, embora parecendo pouco consistente, era notável prenúncio das grandes convulsões que, dentro em breve, abalaram o mundo inteiro, e eu estava longe de ser o único cujo coração palpitava ao rumor do despertar da liberdade, procurando derrubar o jugo do poder arbitrário". (Testemunho do Conde de Ségur sobre a Guerra de Independência americana)

A juventude participou com afinco da Revolução Francesa e das guerras napoleônicas. Os jovens (das cidades, principalmente) representavam a geração renovadora e liberal, desejosa de destruir tudo o que significasse o Antigo Regime. Foram eles que pegaram em armas para lutar contra os exércitos estrangeiros que ameaçavam invadir a França em 1789.

Os jacobinos perceberam a força política da juventude e procuraram utilizá-la na Revolução. Durante a ditadura jacobina (1793-1794), milhares de rapazes de toda a França, entre 16 e 17 anos, foram enviados a Paris, onde, durante algumas semanas, receberam treinamento militar e lições de patriotismo para se tornarem republicanos autênticos. Os que não atenderam ao chamado dos jacobinos sofreram perseguições e humilhações, como a de serem chamados de hermafroditas. Após a queda de Robespierre, grupos de rapazes favoráveis aos girondinos foram à desforra e espancaram os jacobinos.

A convocação de jovens foi ainda maior nas guerras napoleônicas. Só na França. quase 4 milhões foram chamados às armas. O exemplo estendeu-se ao continente. A partir do início do século XIX, com o argumento de amor à pátria, o recrutamento obrigatório passou a ser adotado em todos os países europeus (exceto na Inglaterra). Difundiu-se a ideia de que todos os cidadãos aptos tinham o direito e o dever de defender a pátria. Nascia uma nova e poderosa arma: o nacionalismo.


Carnot na Batalha de Wattignies, Georges Moreau de Tours

Servir o exército também significava prova de virilidade e porta de entrada no mundo adulto. Vestir o uniforme militar era atingir a maturidade, deixar de ser criança, mostrar coragem e potência sexual. Após o serviço militar, os rapazes estavam prontos para o casamento.

Nem todos, porém queriam servir o exército e usavam de vários meios para fugir dele. Alguns casavam com mulheres velhas, para logo depois abandoná-las em troca de alguma ajuda material. Outros fingiam-se doentes, feridos ou inventavam deficiências físicas, como surdez e dificuldade de visão. Havia ainda os que simplesmente fugiam.

A Revolução Francesa contou também com a atuação das mulheres no papel de agitadoras, ou de "bota-fogo", como se dizia na época. Muitas vezes, foram elas as iniciadoras das manifestações populares. Tocavam os sinos chamando a população, rufavam os tambores nas ruas da cidade, zombava, das autoridades e dos soldados, arrastavam os transeuntes, entravam nas lojas, oficinas e casas forçando os indecisos, incitavam os homens à ação, chamando-os de covardes. Um deputado jacobino chegou a afirmar, em 1793: "As mulheres iniciarão o movimento, [...] os homens virão em apoio às mulheres".


Clube Patriótico das Mulheres, Jean-Baptiste Lesueur e Pierre-Etienne Lesueur

Mas a Declaração de Direitos de 1789 não levou em consideração a luta feminina. Em seu título e artigos, aparece o termo "homens", que na época não se referia à humanidade em geral, mas ao ser humano do sexo masculino. As mulheres foram deixadas de lado. Isso não passou despercebido. Em setembro de 1791, a escritora francesa Olympe de Gouges redigiu a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã exigindo o direito das mulheres à participação política. Pregava a libertação feminina contra a tirania dos homens. Afirmava que a exploração da mulher pelo homem é a origem de todas as formas de desigualdade.

Olympe de Gouges acabou guilhotinada em 1793, e suas ideias foram rejeitadas pelo governo revolucionário. As mulheres estavam excluídas das decisões das assembleias, das milícias armadas e das comissões locais. Mesmo assim, não ficaram caladas nem ausentes dos acontecimentos políticos. Como cidadãs sem cidadania assistiam às discussões nas tribunas abertas ao público. E como espectadoras continuaram participando: seus gritos, aplausos ou vaias influenciavam os deputados reunidos. Dessa forma controlavam também a atuação política deles.

Na independência dos Estados Unidos, as mulheres americanas atuaram diferentemente das francesas. Elas não foram às ruas e nem assistiram às assembleias políticas. Como mães e donas-de-casa, participaram dos acontecimentos declarando boicote geral aos ingleses. Pararam de comprar os produtos oferecidos pelos comerciantes da Metrópole, desconsiderando até suas ofertas tentadoras de vestidos e chapéus. Deixaram de usar e consumir até os produtos ingleses que tinham estocado em casa e convenceram seus filhos e maridos a fazerem o mesmo. Ofereceram-se como cozinheiras ou lavadeiras para as tropas americanas. Organizaram-se para recolher fundos em favor da causa da independência.

A brutalidade da guerra de independência afetou profundamente as famílias americanas. As mulheres se viram sozinhas para garantir a sobrevivência dos filhos. Tomaram consciência de sua força, de seu valor e capacidade individual. No após-guerra, criaram associações, frequentemente ligadas às Igrejas, destinadas a socorrer as viúvas e os órfãos. Esses grupos consolidaram uma nova forma de atuação social: o trabalho coletivo em benefício da comunidade.

RODRIGUE, Joelza Ester. História em documento: imagem e texto. São Paulo: FTD, 2002. p. 98-100.

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Nações e etnias atribuídas aos africanos escravizados

Escravas negras oriundas de diversas tribos africanas trazidas para o Brasil, Jean-Baptiste Debret

Agrupadas no que os colonizadores portugueses chamaram de minas, cabindas, congos, cassanjes, angolas, benguelas e moçambiques, entre outras designações, estavam pessoas vindas de várias aldeias ou reinos, e falantes de línguas diferentes, apesar de terem alguma semelhança entre si. Mas os comerciantes, administradores coloniais e senhores que punham os escravos para trabalhar não percebiam as diferenças entre os africanos, identificando-os principalmente a partir do porto em que foram embarcados (como Cabinda), da principal feira em que foram comprados (como Cassanje), ou do nome da região onde esses pontos de comércio se encontravam (como Angola).

Mas ao lado desses nomes que identificavam nações, juntando num mesmo grupo pessoas vindas de sociedades diferentes, também apareciam nomes referentes a grupos culturais particulares, como ambundos (habitantes do reino de Dongo), anjicos (como eram chamados pelos portugueses os habitantes do reino Tio), ardas (do reino de Alada) ou hauçás (das cidades-estado do Sudão central). Além dos nomes de nação, atribuídos pelos colonizadores e geralmente adotados pelos africanos, e dos nomes de etnias, que sobreviveram à travessia do Atlântico e continuaram sendo usados na América, havia ainda os nomes criados no Brasil para designar povos com língua, religião ou costumes semelhantes. Assim, malês era o nome dado aos africanos islamizados do Sudão central e ocidental; nagôs eram os iorubás da região do reino de Oió e das cidades-estado costeiras e jejês os que habitavam mais a ocidente, na região do reino de Daomé.

Nomes de nações ou de etnias são sempre formas de atribuir uma identidade particular a um grupo, indicando que ele tem tradições, maneiras de se comportar, de pensar e de falar que lhe são próprias e o distinguem dos outros. Aos poucos diminuíram as diferenças entre os vários africanos escravizados trazidos para o Brasil, onde passaram a conviver entre si e com os senhores de ascendência portuguesa, surgindo então uma cultura afro-brasileira, em que as diferenças étnicas ficaram em segundo plano.

SOUZA, Marina de Mello e. África e Brasil africano. São Paulo: Ática, 2007. p. 62.

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Condorcet: o otimismo histórico

Marquês de Condorcet, Jean-Baptiste Greuze

Condorcet costuma ser chamado de "o último dos enciclopedistas". Discípulo de Voltaire, havia participado ativamente da redação da Enciclopédia juntamente com Diderot e D'Alembert. Sendo, contudo, mais jovem, foi o único dos enciclopedistas a viver os acontecimentos da Revolução Francesa. Em 1789, quando se deu a tomada da Bastilha, Condorcet estava com 46 anos.

Desde o início, ele se engajou no movimento revolucionário. Como deputado, defendeu os direitos humanos de modo geral, e os direitos das mulheres e dos negros escravos em particular, e propôs projetos de reformas políticas destinadas a transformar a sociedade francesa. Sua militância só chegou a termo em 1793, quando a Convenção dominada pelos jacobinos decretou sua condenação, acusando-o de conspirar contra o poder revolucionário. Condorcet ainda tentou evitar a prisão, escondendo-se em casa de amigos por vários meses. Porém, logo que deixou o esconderijo, foi preso e morreu no dia seguinte, no cativeiro, em circunstâncias obscuras.

Foi durante esse período em que viveu escondido que Condorcet escreveu o livro intitulado Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano. Nele, não apenas retrata a trajetória da humanidade desde o início até o século XVIII, como também tenta anunciar o que iria acontecer com os homens e os povos a partir de um acontecimento tão importante quanto a Revolução Francesa.

Consideradas as circunstâncias dramáticas em que foi escrita, a obra apresenta uma visão da história da humanidade surpreendentemente otimista. Segundo Condorcet, podemos estar certos de duas coisas. Em primeiro lugar, o homem é um ser com uma capacidade infinita de se aperfeiçoar; ou seja, não há por que impor limites aos progressos que a humanidade pode realizar. Em segundo lugar, a história mostra que de fato o homem se aprimorou muito no decorrer dos séculos, o que nos permite pensar que ele continuará a progredir no futuro. Uma vez tendo entrado na trajetória do progresso, nenhuma força poderá interromper a caminhada dos povos para um mundo melhor.

Esse otimismo de Condorcet pode ser explicado da seguinte forma: ele julga estar vivendo numa época privilegiada, marcada por acontecimentos que deverão transformar o destino dos homens e das nações em geral. Dentre esses acontecimentos, destaca a Independência dos Estados Unidos, ocorrida em 1776, e a própria Revolução Francesa, que se iniciou em 1789.

O simples bom senso, afirma Condorcet, fazia perceber que os habitantes de colônias inglesas na América tinham os mesmos direitos que qualquer europeu. Mas o governo britânico acreditava que os americanos deviam ser dominados. A nação americana então resolveu quebrar as correntes que lhe eram impostas e declarou sua independência. A discussão sobre esse acontecimento invadiu o mundo. Os direitos humanos e os direitos das nações tornaram-se mais conhecidos. Os homens, conhecendo-os, desejaram usufruir deles, e logo os ideais de independência e liberdade se espalharam a partir da América por toda a Europa.

A França, por sua vez, na visão de Condorcet, era o país europeu ao mesmo tempo mais esclarecido e mais escravizado. Tinha produzido os melhores filósofos do século, que havia muito tempo insistiam sobre a importância da liberdade. Contudo, o governo francês permanecera autoritário e despótico. Assim, era natural que fosse o primeiro país da Europa a iniciar a revolução, cujos princípios haviam sido dados pelos filósofos. Foram eles que difundiram o conhecimento dos direitos do homem, que exigiram a liberdade de pensar, que lutaram pela abolição da tortura, que denunciaram o fanatismo e os preconceitos. Com isso, modificaram a opinião pública de tal modo que, uma vez transformadas as mentalidades, a revolução pôde se realizar pelas forças populares.

Para Condorcet, a Revolução Francesa, embora posterior, foi mais ampla do que a revolução americana. Ela atingiu a sociedade inteira, transformou todas as relações sociais, penetrou em todos os meandros da instituição política. Os franceses conseguiram eliminar o despotismo dos reis, a desigualdade política, o orgulho dos nobres, a intolerância, os privilégios feudais. Enfim, a revolução devolveu ao povo francês a sua soberania, que consistia em só obedecer a leis cujo estabelecimento fosse legitimado por sua aprovação imediata. Tratou-se, portanto, de uma conquista inigualável e irreversível. Condorcet acreditava ainda que, a partir da Revolução Francesa, os ideais revolucionários se difundiram progressivamente pelo resto do mundo, inaugurando uma nova era de liberdade.

É essa visão de uma nova era que orienta a filosofia da história desse enciclopedista revolucionário. A humanidade pode esperar um futuro cada vez melhor. O progresso é uma lei da história. Os passos dados pelos homens em direção a um futuro mais feliz são irreversíveis.

Embora tal certeza seja dada pelo próprio decorrer da história, para Condorcet o processo de aperfeiçoamento dos homens pode ser acelerado e garantido pela instrução. Em abril de 1792, ele apresentou à Assembleia um projeto sobre a instrução pública. O interesse de Condorcet pela instrução pública estava intimamente ligado à sua visão racionalista da história. Não basta aos homens ter direitos. É preciso que eles os conheçam para poder lutar por eles. A instrução aparece, pois, na visão de Condorcet e dos iluministas de modo geral, como uma força libertadora.

Os princípios que regem o projeto de instrução de Condorcet podem ser assim resumidos: em primeiro lugar, a instrução deve ser pública, pois todo homem tem direito ao saber. Para isso, ela deve ser organizada e sustentada pelo Estado. A escola pública deve ser gratuita, igual para todos, laica e mista. Gratuita, porque caso contrário não seria pública; igual para todos, dada a igualdade dos cidadãos numa nação livre; laica, já que a educação religiosa pode ser uma função da família, mas nunca do Estado, que deve guardar independência em relação a todos os credos religiosos. Por fim, a escola pública deve ser mista, pois as mulheres são iguais aos homens e têm portanto o direito tanto de aprender como de ensinar.

Esses princípios nos parecem hoje lugar-comum. Na França pré-revolucionária, porém, a educação era oferecida quase sempre por escolas mantidas pelas ordens religiosas, às quais tinha acesso apenas a pequena parte da população que podia pagar. Assim, o projeto de Condorcet inaugurava uma nova maneira de considerar a instrução dos cidadãos. Mediante a instrução pública e laica, a marcha do espírito humano em direção ao aperfeiçoamento seria acelerada. Mais instruídos, os homens seriam mais livres, e as tiranias não poderiam voltar a esmagar as nações.

NASCIMENTO, Milton Meira do; NASCIMENTO, Maria das Graças S. Iluminismo: a revolução das luzes. São Paulo: Ática, 2008. p. 46-8. (História em movimento)

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Tia Ciata e as rodas de samba

Samba em terreiro, Heitor dos Prazeres

Tia Ciata ou Hilária Batista de Almeida (1854-1924) nasceu em Salvador e era filha de Oxum da casa de Bambochê, de nação queto. Chegou ao Rio de Janeiro aos 22 anos, em 1876, com sua filha e passou a frequentar a casa de João Alabá, ficando conhecida como Mãe-Pequena. João Alabá era um famoso babalorixá (pai-de-santo). Sua casa ficava próxima ao terminal da Estrada de Ferro Central do Brasil. Seu nome revela sua origem nagô (alagba, chefe do culto de Egungun; significa pessoa respeitável).

Nas festas que Tia Ciata promovia em homenagem aos orixás não faltavam as rodas de samba. Ela trabalhava como vendedora de doce no centro do Rio de Janeiro e sempre em torno do seu tabuleiro e em sua casa reuniam-se músicos, na época ainda desconhecidos do grande público, como Donga, Sinhô, João da Baiana, Heitor dos Prazeres e Pixinguinha, para fazer samba.

MATTOS, Regiane Augusto de. História e cultura afro-brasileira. São Paulo: Contexto, 2008. p. 197-8.

domingo, 15 de novembro de 2015

As sociedades árticas

Vila de iglus, ca. 1865. Artista desconhecido

Entre o Império Russo e a América Setentrional, ao redor da bacia polar boreal, as explorações e o comércio quebraram o isolamento dos hiperbóreos, dos Randvoelker de Ratzel. Existem os que, pastores antes de tudo, tiram da rena o leite, a carne, a pele e aos quais a proximidade da floresta do Norte proporciona alguns recursos suplementares:  a este tipo pertencem os Paleasiatas, os Ostíacos, os Samoiedos, os Tunguzes, bem como os Atabascos da América. A maior parte, entretanto, pratica concomitantemente a criação da rena e a exploração dos recursos marítimos. O mais típico destes povos é o dos esquimós, cujo domínio se estende desde a Groenlândia até o Labrador: seu nomadismo ajustado ao ritmo das estações permite-lhes caçar o caribu, os animais fornecedores de peles e a fauna dos estreitos; manejam com habilidade o arpão, utilizam o trenó puxado por cães e o caiaque. Untam o corpo e fartam-se de comer; vivem enterrados no iglu temporário, feito de blocos de neve, durante o longo e tremendo inverno destas latitudes.

O estrangeiro veio atraído pelos animais que podem fornecer peles, gordura, óleo, couro, partes córneas e marfim. Leva às populações a arma de fogo, os utensílios metálicos, o petróleo que facilita o cozimento e a iluminação, a farinha, o açúcar e o chá, tornando a alimentação mais variada e mais agradável, e também o álcool e as doenças. Caça selvagemente, extermina certas espécies e perturba os gêneros de vida. Assim, no Labrador, os esquimós negligenciam a caça à foca, dão preferência ao caribu e à raposa polar, toma gosto pelos novos alimentos mas são dizimados pela varíola, pela tuberculose e pela sífilis; desaparecem do Alasca setentrional. As autoridades canadenses e norte-americanas, então, introduzem no Grande Norte a rena siberiana, que logo prolifera, consideram a possibilidade da criação do caribu e do almiscareiro no arquipélago polar; a Dinamarca chega mesmo a isolar a Groenlândia, para garantir a proteção do grupo mestiço de esquimós e escandinavos.


SCHNERB, Robert. O século XIX: as civilizações não-europeias; o limiar do século XX. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996. p. 19-20. (História geral das civilizações, v. 14)

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Memórias do cárcere

Olga Benário Prestes, 1926. Fotógrafo desconhecido

"Uma noite chegaram-nos gritos medonhos do Pavilhão dos Primários, informações confusas de vozes numerosas. Aplicando o ouvido, percebemos que Olga Prestes e Elisa Berger iam ser entregues à Gestapo: àquela hora tentavam arrancá-las da sala 4. As mulheres resistiam, e perto os homens se desmandavam terrível barulho. Tinham recebido aviso, e daí o furioso protesto, embora a polícia jurasse que haveria apenas mudança de prisão.

- Mudança de prisão para a Alemanha, bandidos. [...]

Apesar da manifestação ruidosa, inclinava-me a recusar a notícia: inadmissível. Sentado na cama, pensei com horror em campos de concentração, fornos crematórios, câmaras de gases. Iriam a semelhante miséria? A exaltação dominava os espíritos em redor de mim. Brados lamentosos, gestos desvairados, raiva impotente, desespero, rostos convulsos na indignação. Um pequeno tenente soluçava, em tremura espasmódica:

- Vão levar Olga Prestes. [...]

Em duro silêncio, fumando sem descontinuar, sentia na alma um frio desalento. Mas por que, na horrível ignomínia, haviam dado preferência a duas criaturas débeis? Elisa Berger, presa, era tão inofensiva quanto o marido, preso também. Contudo iam oferecê-lo aos carrascos alemães, e Harry Berger permanecia aqui, ensandecido na tortura. O nazismo não exigia restos humanos, deixava que eles se acabassem devagar no cárcere úmido e estreito. [...] Olga Prestes, casada com brasileiro, estava grávida. Teria filho entre inimigos, numa cadeia. Ou talvez morresse antes do parto. A subserviência das autoridades reles a um despotismo longínquo enchia-me de tristeza e vergonha. Almas de escravos, infames; adulação torpe à ditadura ignóbil. Nasceria longe uma criança, envolta nas brumas do Norte; ventos gelados lhe magoariam a carne trêmula e roxa. Miséria - e nessa miséria abatimento profundo. [...]

Ideias fúnebres iam, vinham, engrossavam-me o coração. Miseráveis. O campo sórdido, o opróbrio, a dor. E depois os fornos crematórios, as câmaras de gases. Outras figuras em roda permaneciam inertes como eu, cabisbaixo, olhos no chão. Carlos Prestes, isolado, estaria assim, mas ignorava as ameaças à companheira. Chega-lhe-ia aos ouvidos um som confuso do imenso clamor. [...] Passaria meses sem poder inteirar-se da enorme desgraça. [...]

- Para que isso? perguntava a mim mesmo impacientando-me. Ignoram tudo, e a imprensa, vendida, nos enegrece. [...]

Olga Prestes e Elisa Berger nunca mais foram vistas. Soubemos depois que tinham sido assassinadas num campo de concentração na Alemanha."

RAMOS, Graciliano. Memórias do cárcere. Rio de Janeiro: Record, 1982. v. 2. p. 274-8.

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

O cristianismo e o poder da Igreja na Idade Média

Durante o período das grandes invasões, terminada a missão da Roma imperial, começou a missão da Roma cristã, cidade onde, segundo as tradições religiosas, o apóstolo São Paulo teria lançado os fundamentos da Igreja.

A formação de vários reinos germânicos provocou em toda a Europa desordem administrativa, caos econômico e político, bem como o enfraquecimento de antigos valores culturais.

Nesse quadro agitado e confuso, apenas a Igreja cristã conseguiu assegurar certa ordem e disciplina, proteger e socorrer populações indefesas, assumindo papel político de destaque, preservando da destruição o legado cultural greco-romano. A partir desse momento, a Igreja, com sede principal em Roma, denominou-se católica, isto é, universal.

* Organização da Igreja. A partir do século II, de acordo com a expansão cada vez mais intensa da fé cristã e o contínuo aumento de congregações de fiéis, tornou-se necessário dar à Igreja uma organização uniforme, capaz de estruturá-la de forma disciplinada e hierárquica.

A paróquia constituía a menor congregação de fiéis, a ela pertencendo os moradores de pequena zona urbana ou rural. O centro da paróquia era a igreja, nome dado à basílica onde se celebrava o culto religioso. Dirigida por um padre (pároco), aí eram ministrados os sacramentos, oficiadas missas, pelo menos aos domingos - com acompanhamento de hinos - realizadas as grandes festas cristãs, Natal, Epifania ou Reis, Páscoa, Assunção, Pentecostes.

Na igreja paroquial eram também guardadas as relíquias trazidas por fiéis de suas peregrinações a lugares santos, na Palestina, a túmulos de apóstolos ou mártires.

A diocese agrupava, sob a direção de um bispo, várias paróquias, sendo sua sede um núcleo urbano de projeção. O bispo, que gozava também de grande prestígio político, providenciava a distribuição de esmolas e alimentos aos necessitados e, em caso de perigo, assumia a direção da cidade. Em cada antiga província romana um arcebispo dirigia os bispos encarregados das dioceses e os reunia, duas vezes por ano, em Concílios, onde eram tomadas decisões visando a assegurar unidade de fé e unidade de ação.

O Papa. Todos os bispos, inicialmente, eram chamados papa, isto é, pai; a partir do século V, porém, esse título passou a ser reservado unicamente ao bispo de Roma, tido - na qualidade de chefe da maior congregação cristã - como sucessor de São Pedro. A primazia do bispo de Roma custou a ser aceita, mas em fins do século VI foi reconhecida pelos bispos do Ocidente, graças sobretudo à ação enérgica, ao senso administrativo seguro e à habilidade política do papa Gregório o Grande, disciplinando a estrutura da Igreja, definindo a forma do culto, controlando a obediência dos chefes religiosos.

Através de uma estrutura cada vez mais firme e centralizada, enriquecida por grandes doações de terras, a Igreja foi assumindo papel político preeminente e consolidando gradativamente seu poder. Para tanto contribuiu também o movimento monástico, que se desenvolvera paralelamente ao movimento organizador das instituições eclesiásticas.

* Os monges e os mosteiros. O movimento monástico começou no século IV e, partindo do Oriente, expandiu-se rumo ao Ocidente. No período das invasões, muitos cristãos, homens e mulheres, procuraram refúgio e tranquilidade em uma vida rude e simples, afastada de aglomerações urbanas, e formaram comunidades isoladas, vivendo da oração, da caridade dos fiéis e do trabalho agrícola de seus membros.

Assim surgiram os primeiros conventos e mosteiros, dirigidos por um abade, nas comunidades masculinas, ou uma abadessa, nas femininas. Em 525 São Bento fundou, na Itália, o mosteiro de Monte Cassino e criou a Ordem Beneditina (de Benedictus, seu nome em latim). A fim de garantir disciplina e ordem à vida comunitária, estabeleceu normas que serviram de modelo para posteriores reformas da vida monástica e para outras ordens religiosas aparecidas mais tarde (Cistercienses, Cluniacenses, Franciscanos, Dominicanos, Carmelitas, Clarissas, Agostinianos. Segundo a regra beneditina, os monges eram obrigados ao voto de pobreza, castidade, obediência a seus superiores; e os mosteiros deviam bastar-se a si mesmos: possuir terras para cultivo e pastoreio, pomar, horta, poço e construções reunidas em torno de uma área central - claustro - a igreja ou capela, a cozinha, o refeitório, as oficinas, as celas (diminutos dormitórios individuais). Frequentemente os mosteiros davam assistência a gente de fora, mantendo um hospital e uma hospedaria para abrigo de viajantes.


Cistercienses no trabalho em um detalhe da vida de São Bernardo de Claraval, Jörg Breu, o Velho

O papel dos mosteiros, na Idade Média, foi muito importante dos pontos de vista religioso, econômico e cultural.

Do ponto de vista religioso, o movimento monástico, em sua expansão pelo Ocidente, contribuiu para cristianizar os povos germânicos. Dos mosteiros partiram monges missionários para fundar novas comunidades religiosas em terras distantes, nelas difundindo os ensinamentos cristãos: São Patrício (Irlanda), Santo Agostinho (Inglaterra), São Bonifácio (Germânia) e muitos outros. E foi nos mosteiros que se formaram as personalidades de grandes figuras do clero, destinadas a alcançar especial projeção em sua época.

Do ponto de vista econômico, os mosteiros, através do trabalho organizado e metódico de seus membros, sobretudo na lavoura, muito contribuíram para melhorar a economia enfraquecida de várias regiões da Europa e para a formação de aldeias e lugarejos.

Do ponto de vista cultural, foram os mosteiros, durante séculos, os únicos centros conservadores da cultura antiga. Monges copistas transcreveram sobre pergaminho textos clássicos gregos e romanos, "iluminando-os", isto é, ornando-os com iluminuras. Possuindo bibliotecas próprias, os mosteiros eram também centros de ensino: neles eram educados rapazes, exercitando-se na leitura e na escrita ou preparando-se para a carreira eclesiástica; neles muitos aprendiam diversos ofícios, neles eram aperfeiçoadas técnicas agrícolas. Por longo tempo, até o florescimento da vida urbana e a fundação das primeiras universidades, os mosteiros foram a única instituição transmissora de cultura e de informações valiosas que chegaram até nós sob a forma de relatos históricos, as Crônicas e os Anais.

HOLLANDA, Sérgio Buarque de (org.). História da Civilização. São Paulo: Nacional, 1974. p. 126-9.

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

O industrialismo em perspectiva

Ferro e carvão, William Bell Scott

Tal como a Revolução Francesa, a Revolução Industrial ajudou a modernizar a Europa, transformando finalmente cada faceta da sociedade. Na sociedade pré-industrial de meados do século XVIII, a agricultura era a principal atividade econômica, e os camponeses formavam a classe mais numerosa. A vida do camponês girava em torno da família e do vilarejo, que a gente do campo raramente abandonava. O novo espírito crítico e racional associado ao Iluminismo teve pouca penetração na Europa rural: ali, a fé religiosa, a autoridade clerical e as antigas superstições permaneciam firmemente arraigadas.

A classe mais abastada e poderosa era a aristocracia, cuja riqueza provinha da terra. Os nobres dominavam o campo e gozavam de privilégios resguardados pelos costumes e pela lei. Os aristocratas do século XVIII, como seus precursores medievais, viam a sociedade como uma hierarquia, na qual a posição de uma pessoa na vida era determinada pela condição que ela herdara. Ao defenderem os ideais de liberdade e igualdade, a Revolução Francesa solapou a tradicional estrutura de poder: rei, aristocracia e clero. Proclamando a perspectiva racional e secular do Iluminismo, os reformadores franceses desmantelaram ainda mais os pilares políticos e religiosos da sociedade tradicional.

A sociedade tradicional era predominantemente rural. No início do século XIX, 20% da população da Grã-Bretanha, França e Holanda vivia nas cidades; na Rússia, apenas 5%. Os alicerces da economia urbana eram a produção dos artesãos, que trabalhavam em pequenas oficinas, e o comércio para os mercados locais, embora algumas cidades produzissem artigos de luxo para mercados maiores. A manufatura têxtil empregava o sistema de empreitadas, no qual a lã era convertida em tecido em domicílios particulares, geralmente nas casas dos camponeses.

A Revolução Industrial transformou todos os setores da sociedade. Os vilarejos agrícolas e a manufatura artesanal foram superados em importância pelas cidades e fábricas. Na sociedade forjada pela industrialização e urbanização, o poder e os valores aristocráticos decaíram; ao mesmo tempo, a burguesia cresceu em número, riqueza, importância e poder. Cada vez mais, as pessoas eram julgadas pela capacidade e não pela linhagem, e as oportunidades para a mobilidade social ascendente ampliaram-se. A Revolução Industrial tornou-se uma grande força em favor da democratização: durante o século XIX, primeiro a classe média e depois os trabalhadores ganharam o direito de voto. A Revolução Industrial também acelerou o processo de secularização da vida europeia. Nas cidades, os antigos habitantes dos vilarejos, longe dos laços comunais tradicionais, afastaram-se de sua religião ancestral. Num mundo que estava sendo remodelado pela tecnologia, indústria e ciência os mistérios cristãos perderam a força, e para muitas pessoas a salvação tornou-se uma preocupação longínqua. A modernização não ocorreu no mesmo ritmo e com a mesma abrangência em todos os lugares. De modo geral, as forças sociais e institucionais anteriores ao período moderno permaneceram profundamente arraigadas no sul e no leste europeu, persistindo ainda no século XX.

Embora tenha acarretado inúmeros problemas, alguns dos quais continuam sem solução, a Revolução Industrial foi um grande êxito. Em última instância, possibilitou o mais elevado padrão de vida da história da humanidade e criou novas oportunidades para o progresso social, a participação política e o desenvolvimento cultural e educacional. Também ampliou a distância entre o Ocidente e o resto do mundo em termos de ciência e tecnologia. Por volta de 1900, os Estados ocidentais, auxiliados por sua superioridade tecnológica, estenderam seu poder por quase todo o globo, concluindo assim a tendência que se iniciara na época das explorações.

PERRY, Marvin. Civilização ocidental: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 370-2.

sábado, 7 de novembro de 2015

Voltaire: história e civilização

Voltaire, ca. 1724-1725. Nicolas de Largillière

[...] para Voltaire são os homens que fazem a própria história. Mas sua perspectiva é radicalmente distinta e até contrária à de Rousseau. Segundo Voltaire, os principais males que atacam os homens vêm exatamente da ignorância, dos entraves ao desenvolvimento da razão. Sua filosofia da história obedece pois a um princípio intelectualista. É certo que a categoria fundamental de sua reflexão sobre a história é a do progresso, entendido como uma caminhada da humanidade em direção a algo melhor. E o melhor, para Voltaire, não é o estado primitivo dos homens, mas exatamente o estado de civilização.

Contudo, Voltaire não crê que a trajetória do progresso seja linear, e que os homens, desde o início da civilização, tenham caminhado sempre em direção ao melhor. Ao contrário, o que a história mostra é que há épocas em que esse progresso é quase inexistente, outras nas quais ele foi praticamente interrompido, e mesmo épocas nas quais tudo o que o homem havia adquirido se perdeu, lançando-se de volta à ignorância.

A partir daí, Voltaire desenvolve a sua teoria da história, que poderíamos chamar de doutrina dos "grandes séculos". Segundo essa doutrina, a humanidade conheceu quatro grandes períodos, ou "grandes séculos". O primeiro ocorreu na Grécia antiga, entre os séculos V e IV a.C. Nessa época, marcada especialmente pelos reinados de Filipe da Macedônia e Alexandre Magno, viveram Péricles, o grande orador e estadista, os filósofos Aristóteles e Platão, o arquiteto Fídias. O segundo grande período se deu no Império Romano, durante o consulado de Júlio César e o reinado de Augusto (séculos I a.C. e I d.C.). Nesse período viveram grandes pensadores e artistas, como os filósofos Lucrécio e Cícero, o historiador Tito Lívio, os poetas Virgílio, Horácio e Ovídio. A terceira grande época é a do Renascimento na Itália (séculos XIV a XVI). Foi um tempo de profunda mudança intelectual e cultural, de efervescência artística inigualável. Por último, o quarto grande período é o século XVII, dominado pelo reinado de Luís XIV na França. Foi nesse momento que surgiu a filosofia moderna e que filósofos como Descartes, Locke e Newton contribuíram para uma revolução geral no pensamento.

Se observarmos que critérios Voltaire utiliza para determinar a grandeza de uma época, veremos que ele seleciona exatamente os períodos em que as nações viram florescer as artes, a filosofia, a indústria, as técnicas. Para ele, portanto, as grandes épocas são aquelas de maior brilho e desenvolvimento da civilização. Ao contrário de Rousseau, Voltaire considera a injustiça e a servidão não como males da civilização, mas como efeitos da ignorância e da falta de conhecimento. É precisamente por isso que ele acredita ser tarefa fundamental do filósofo o esclarecimento do homem. Os povos instruídos, que conhecem seus direitos, não se deixam facilmente enganar ou explorar.

Enquanto para Rousseau os melhores livros para os jovens são aqueles de história antiga, para Voltaire [...] os estudantes não devem perder tempo com as coisas de antigamente, mas voltar a atenção para seu próprio tempo.

Parece-me que se quiséssemos aproveitar o tempo presente, não passaríamos a vida a nos encasquetar com fábulas antigas. Eu aconselharia a um jovem que tivesse uma ligeira tintura destes tempos recuados, mas que começasse um estudo sério da história pelo tempo em que ela se torna verdadeiramente interessante para nós, ou seja, pelos fins do século XV. A imprensa, inventada nesta época, começa a tornar a história menos incerta. A Europa muda de face [...]. A América é descoberta. Um mundo novo é subjugado, e o nosso mundo é quase inteiramente transformado. A Europa cristã torna-se uma imensa república, na qual a balança do poder se torna mais bem equilibrada do que na Grécia antiga. Uma correspondência perpétua liga todas as suas partes, apesar das guerras suscitadas  pela ambição dos reis, e apesar das guerras religiosas, ainda mais destrutivas. As artes, que fazem a glória das nações, são levadas a um ponto que Grécia e Roma nunca conheceram. Eis a história que todos precisam conhecer. Nela não encontramos nem predições quiméricas, nem oráculos mentirosos, nem falsos milagres, nem fábulas insensatas [...], Tudo nesta época nos diz respeito, tudo é feito para nós [...]. Não há nem um particular na Europa cujo destino não tenha sido influenciado por todas estas mudanças. (Voltaire, Observações sobre a história.)

Outro aspecto importante da filosofia da história segundo Voltaire é seu caráter anticristão. Para ele, ao ensinar que os homens estão neste mundo apenas de passagem, e que o mais importante é que eles se preparem para alcançar a felicidade no céu, o cristianismo desvia a atenção humana das questões terrestres, tornando-se uma causa de alienação. Enquanto aguardam a justiça divina, os homens aceitam sem reclamar as injustiças na terra, deixando-se enganar pelos dominadores, sobretudo pelos padres.

Por outro lado, segundo Voltaire, é uma ilusão pensar que os motivos que levam os homens a agir sejam sempre de natureza moral ou religiosa, mesmo que eles assim o digam. Tomemos como exemplo um acontecimento histórico importante como as Cruzadas: a Igreja conclamou os povos da Europa a ir ao Oriente para combater os não-cristãos que haviam se apossado de Jerusalém. Assim, as Cruzadas foram, aparentemente, uma guerra de princípios religiosos. Contudo, não foi apenas por fervor religioso que os europeus invadiram a Terra Santa. Isso é o que aparecia no discurso dos papas, mas as verdadeiras causas foram econômicas: esperava-se, com a conquista da Palestina, obter mais terras, estabelecendo mais feudos para a nobreza endividada e empobrecida do século XI. É por isso que, para Voltaire, a tarefa do historiador é essencialmente crítica e deve demonstrar as verdadeiras causas dos acontecimentos, desfazendo as ilusões e denunciando os enganos.

NASCIMENTO, Milton Meira do; NASCIMENTO, Maria das Graças S. Iluminismo: a revolução das luzes. São Paulo: Ática, 2008. p. 43-5. (História em movimento)