"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 30 de junho de 2013

As Câmaras Municipais e os "homens bons"

Desde o início do processo colonizador, a coroa preocupou-se em promover a fundação de vilas e povoamentos, buscando garantir a ocupação da terra, a defesa, a exploração econômica e sua consequente arrecadação fiscal. As grandes vilas - especialmente as localizadas no litoral - acabaram transformando-se em pontos fundamentais da base administrativa metropolitana, do controle político dos senhores de engenho, além de ocupar a função social de reunir os moradores próximos em momentos considerados especiais.

Com o intuito de operacionalizar um modelo administrativo sediado nas vilas, aplicou-se no Brasil a organização municipal portuguesa, cujas raízes remontavam ao direito romano. O principal organismo do poder municipal era a Câmara Municipal (também chamada de Senado da Câmara, Câmara dos Vereadores ou ainda Conselho de Vereança) secundado pelo alcaide, este na verdade sob o controle do donatário da capitania.

Além da administração de suas próprias rendas e de seu patrimônio, podemos destacar como principais funções do órgão:

* abastecimento de gêneros comestíveis, principalmente da farinha e da carne;
* regulamentação do pequeno comércio, fiscalizando as licenças de vendedores ambulantes, quitandeiras e feirantes de uma forma geral;
* regulamentação dos preços cobrados pelos artesãos (ferreiros, carpinteiros, alfaiates e outros);
* organização das festas religiosas mais importantes;
* organização de expedições para capturar índios;
* conservação dos chafarizes, dos canos e das bicas, já que a questão da água era fundamental para os colonos;
* construção e conservação das ruas, dos caminhos e pontes;
* regulamentação dos locais para despejo de lixo;
* distribuição das terras municipais e fiscalização da construção dos edifícios.


Festa do Divino, Jean-Baptiste Debret

As câmaras eram formadas por um juiz presidente, de dois a seis vereadores (dependendo da importância) e um procurador. Quanto ao juiz presidente, este poderia ser um representante da elite local, sendo chamado então juiz ordinário, ou um representante real, sendo então chamado de juiz de fora.

A formação dos membros da câmara - quando escolhidos entre os colonos - era feita através de eleições, de que participavam como eleitores elegíveis apenas os chamados homens bons, ou seja, grandes proprietários de terras e de escravos. Segundo as Ordenações, estavam excluídos do processo eleitoral os mecânicos, operários, degredados, judeus e outros que pertenciam à classe dos peões. Para participar da câmara, impunha-se também a obrigação da pureza de sangue, discriminando - até a sexta ou sétima geração - o descendente de judeu e mouro. É claro que tal determinação valeria também para os negros.

"As Câmaras do Rio de Janeiro, São Luís do Maranhão e de São Salvador sempre impugnaram qualquer um que tivesse um vínculo, mais evidente, com a raça negra e, se mulatos eram muito raramente admitidos, fazia-se um notório esforço de estabelecer uma ascendência imaginária com índios, não discriminados pela legislação (embora considerados inferiores pelos colonos)." (LINHARES, Maria Yedda L. (org.). História Geral do Brasil. Rio de Janeiro: Campus, 1990. p. 36.)

Podemos concluir que o próprio caráter da câmara, assim como suas múltiplas funções, representavam os interesses tanto da elite local como dos representantes da coroa. Aí está a razão principal para as tensões futuras que envolveriam as câmaras e as determinações metropolitanas. Enquanto os interesses reinóis coincidiram com os interesses dos senhores de engenho não ocorreram maiores problemas nas atribuições e poderes das câmaras. Entretanto, a situação mudou quando apareceram os primeiros desencontros, quando, a partir da Restauração, a coroa apertou os cintos da elite colonial.

Podemos apontar diversos momentos em que estas tensões vieram à tona: assim foi no caso da escravidão indígena, envolvendo os colonos paulistas e as câmaras de São Paulo. No Rio de Janeiro, os vereadores voltaram-se contra o governador Salvador Correia de Sá e Benevides. No Maranhão, houve envolvimento dos vereadores na Revolta de Beckman, enquanto em Pernambuco o mesmo ocorreu na Guerra dos Mascates. Finalmente, na Bahia, ocorreu o chamado Motim do Maneta, desta vez com tendências populares - representadas através do Juiz do Povo - contra o aumento do preço do sal.

No século XVIII, a política pombalina retirou das câmaras boa parte de sua autonomia. A prática de eleições locais foi substituída, quase que integralmente, pela coroa. Entretanto, apesar do esvaziamento político, tais estruturas administrativas não desapareceram. Como afirmou Bóris Fausto, graças ao seu enraizamento na sociedade, as Câmaras Municipais foram o único órgão que sobreviveu por inteiro, e até se reforçou, após a Independência.

AQUINO, Rubim Santos Leão de et al. Sociedade brasileira: uma história através dos movimentos sociais. Rio de Janeiro: Record, 2008. p. 182-184.

sábado, 29 de junho de 2013

A situação social do camponês, do escravo e da mulher entre os hebreus

Semitas representados em pintura mural egípcia

A princípio, a economia entre os hebreus baseou-se na pecuária e, depois, na agricultura. A propriedade da terra era coletiva. A pecuária predominou no Sul da Palestina enquanto a agricultura (cereais, videira, oliveira) foi mais desenvolvida no Norte. Nos reinados de Davi e Salomão, o comércio atingiu grande desenvolvimento, assim como o artesanato, sob influência das cidades fenícias. A localização geográfica da Palestina favoreceu o comércio, pois constituía um ponto de cruzamento das rotas comerciais da Mesopotâmia, do Egito, do Mar Vermelho e da Arábia.

"A formação da propriedade privada (primeiro dos rebanhos, depois da terra) foi muito intensiva na Palestina: a terra comunal passou gradualmente às mãos dos chefes das famílias patriarcais [...] o próprio Rei não tinha o direito de confiscar a terra." (DIAKOV, V; KOVALEV, S. Histoire de l'Antiquité. Moscou: Éditions en Langues Étrangêres, s.d. p. 202-203.

O desenvolvimento da propriedade privada (lotes individuais pertencentes às grandes famílias) provocou a ruína dos camponeses, que ainda eram obrigados a pagar impostos ao Estado e a servir no exército. A usura também contribuiu para a desigualdade social: os camponeses que não podiam pagar suas dívidas eram reduzidos à escravidão, por tempo determinado (seis anos). A escravidão, prevista na Lei Mosaica, teve grande difusão entre os hebreus: além dos escravos hebreus, havia os estrangeiros (prisioneiros de guerra ou obtidos no comércio). Tanto uns como outros possuíam alguns direitos civis - podiam inclusive obter a liberdade. Eram empregados nas oficinas, minas de cobre e nos serviços domésticos.

Os mais beneficiados com o desenvolvimento comercial e urbano, sobretudo no Norte da Palestina, foram os Reis e a aristocracia. Entretanto, a massa camponesa não aceitava sempre passivamente a dominação dos grandes proprietários. Por vezes, eclodiam movimentos populares, que, embora revestidos de um caráter religioso, constituíam uma séria ameaça à aristocracia e aos Reis.

A situação da mulher também não era de igualdade:

"Não cobiçarás a casa do teu próximo. Não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma que pertença ao teu próximo." (Êxodo, 21, 17.)

Vê-se, pelo trecho acima, que a posição da mulher, nessa lista, fica bem clara: ela pertencia ao homem, como o boi e o jumento, e, em matéria de importância jurídica, estava apenas um pouco acima deles...

AQUINO, Rubim Santos Leão de et al. História das sociedades: das sociedades primitivas às sociedades feudais. Rio de Janeiro: Imperial Novo Milênio, 2008. p. 200-201.

sexta-feira, 28 de junho de 2013

Exploração, escambos e feitorias

O período imediatamente posterior à chegada portuguesa ao Brasil em 1500 caracterizou-se pelo envio de expedições costeiras a mando da coroa, com o objetivo de explorar e conhecer os segredos do novo território incorporado ao império colonial luso.

O reconhecimento sobre o território, no que tangia às riquezas, o relevo, a população indígena e o clima, permitiu que Portugal dirigisse com maior segurança o seu projeto colonizador, delimitando com clareza as etapas a serem seguidas para a plena ocupação da região.

Em um primeiro momento, os olhares da coroa portuguesa estiveram direcionados para o lucrativo comércio de especiarias das Índias e a exploração do litoral africano. Dessa forma, tornou-se inviável a Portugal transferir recursos, navios e homens para o território do Brasil sem uma efetiva compensação financeira. O Brasil representava, nesse momento, papagaios, frutos exóticos e tintura extraída da madeira do pau-brasil. Muito pouco, comparado aos lucros do comércio de especiarias.

No entanto, o lucro do pau-brasil atiçou o interesse de outros Estados europeus, especialmente a França, visando o contrabando da madeira para o continente europeu.

A importância que esse comércio atingiu durante o início do século XVI foi expresso no próprio meio ambiente, pois:

"esse comércio foi tão intensamente efetuado que no próprio século XVI, já muitas florestas estavam devastadas e algumas regiões já desprovidas de árvores." (MARCHANT, Alexander. Do escambo à escravidão. São Paulo: Nacional, 1980. p. 15.)

Com o objetivo de patrulhar o litoral brasileiro, combater os contrabandistas e explorar a geografia, Portugal enviou expedições para garantir o pleno domínio sobre o território e conhecer a sua nova possessão. Tais expedições ficaram conhecidas como as expedições guarda-costas.

A preocupação portuguesa em garantir o seu controle sobre a região estava vinculada ao desejo de implementação do monopólio luso nas relações comerciais, dentro da ótica mercantilista em vigor na Europa.

Além da repressão aos rivais dos portugueses no comércio colonial, as expedições procuravam mapear o litoral brasileiro, indicando as condições climáticas, a vida natural da região, a amabilidade ou a beligerância das tribos indígenas etc.

Evidentemente, o custo dessas expedições e a proteção do território tinham de ser compensados financeiramente. O desejo imediato português de encontrar ricas jazidas de ouro e de outros metais preciosos esbarrou na inexistência de minas na faixa litorânea.

Restou à coroa investir na realidade mais imediata: a exploração do pau-brasil. Para reduzir os custos, Portugal utilizou a própria mão-de-obra indígena através do escambo. Mas o que foi o escambo?

Embora no senso comum persista a ideia de que escambo significa "troca direta de mercadorias, sem interveniência de moedas" (FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Básico da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1988. p. 261), no caso português, houve o interesse em trocar mercadorias, leia-se espelhos, colares, pentes e ferramentas, por trabalho.

Dessa forma, as populações indígenas aprenderam, no contato com os portugueses, que:

"não podiam obter miçangas ou camisas apenas por derrubarem e desgalharem uma árvore na mata, mas só ao entregarem a madeira na feitoria, em forma apropriada ao embarque. No que concerne aos indígenas, recebiam as cobiçadas bagatelas e miuçalhas em troca da entrega aos portugueses de certos objetos materiais, pau-brasil ou (como no caso dos Guarda-Costas) víveres e outros produtos." (MARCHANT, Alexander. op. cit. p. 33.)

A necessidade de armazenamento das mercadorias a serem levadas para Portugal levou ao estabelecimento de armazéns fortificados, ocupados por mercadores que garantiam os contatos comerciais com os índios e esperavam os barcos que levariam os produtos até a Europa. As duas principais feitorias encontradas no litoral brasileiro foram em Cabo Frio (cuja concessão foi depois transferida para Itamaracá, em Pernambuco) e São Vicente. Aliás, não foi por acaso que os primeiros agraciados com a escolha de capitanias no Brasil, Martim Afonso de Sousa e seu irmão Pero Lopes de Sousa, escolheram São Vicente e Itamaracá, respectivamente.

No entanto, a primeira feitoria foi construída em 1504, pelo mesmo grupo mercantil que obtivera o direito de comércio do pau-brasil, e localizava-se em uma ilha da baía da Guanabara. Esse grupo, liderado por Fernando de Noronha, foi contratado em 1502 pelo rei D. Manuel, o Venturoso. Caberia ao grupo "mandar seis navios por ano e explorar anualmente trezentas léguas da costa, além de construir e manter, por três anos, um forte". (MARCHANT, Alexander. op. cit. p. 16.)

No próprio ano de 1504, pelos serviços prestados à coroa, Fernando de Noronha recebeu a ilha de São João ou da Quaresma como doação, tornando-se essa ilha a primeira capitania hereditária no Brasil Colonial.

A última das grandes expedições realizadas no século XVI foi a de Martim Afonso de Sousa (1530-1532), que tinha alguns objetivos definidos: garantir a posse portuguesa sobre o território brasileiro, expulsando os barcos e feitorias francesas do litoral, ampliar o conhecimento cartográfico português da região (cabe lembrar que a expedição chegou ao rio da Prata no sul do continente) e iniciar o povoamento do Brasil através da fundação de uma vila, a de São Vicente, em 1532, que foi inicialmente povoada por Martim Afonso de Sousa e parte de sua tripulação.


Fundação de São Vicente por Martim Afonso de Sousa, Benedito Calixto

A partir desse momento, a coroa portuguesa começava a estruturar um projeto de colonização permanente através da imigração de portugueses ao Brasil e da sistemática exploração econômica da região dentro dos quadros da política mercantilista.

AQUINO, Rubim Santos Leão de et al. Sociedade brasileira: uma história através dos movimentos sociais. Rio de Janeiro: Record, 2008. p. 95-98.

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Encontros de culinária e de drogas

Interior de cozinha, David Teniers

O chá chinês era uma mercadoria comercializada amplamente em toda a Eurásia, da Rússia à Inglaterra. Conforme o ritual de beber o chá foi transportado de sua origem na China, ele finalmente se tornou um novo costume cultural na Inglaterra e na Rússia. Desde tempos remotos, a introdução de novos produtos alimentícios foi uma consequência importante dos encontros marítimos e terrestres. O intercâmbio global de alimentos e produtos agrícolas alterou padrões tradicionais de consumo. Mudanças na dieta, que se seguiram à adoção de novos alimentos, transformaram significativamente a psicologia, a identidade e as culturas humanas.

Alimentos e drogas utilizadas para experiências religiosas e curas medicinais constantemente circularam entre culturas. A consideração de um item como um remédio, alimento ou droga recreativo dependia muito de sua disponibilidade e uso, como ilustrado pela variabilidade da quantidade disponível, do valor e do uso do ópio, que um dia foi um tônico para mulheres, ou pelas mudanças similares no status do açúcar, que originalmente era considerado uma especiaria. Em torno de 1670, os holandeses desejavam trocar Nova York pelo território produtor de açúcar do Suriname, junto aos ingleses.

Colombo retornou à Europa com tabaco, uma substância originalmente cultivada por povos indígenas das Américas para o uso em cerimônias religiosas. Na Europa, foi utilizado como uma cura para a enxaqueca, e sua condenação inicial por parte do Rei Jaime I, em 1604, e pelo Papa Inocêncio X, em 1650, foi logo superada pelo seu crescente uso recreativo pela população. Embora esse prazer fosse uma prerrogativa masculina, o comércio europeu espalhou o conhecimento (e o vocabulário) do tabaco desde a Lapônia até a África, onde homens e mulheres fumaram cachimbos e inalaram outras substâncias com fins recreativos e para experiências alucinógenas e religiosas que delas resultavam. Nos anos de 1790, o tabaco e o ópio eram fumados rotineiramente juntos na China, apesar das proibições da era Ming. Os espanhóis começaram a usar outras substâncias, como o quinino, extraídas da casca da cinchona, árvore sul-americana, contra a malária, em 1638. A proteção resultante e os efeitos curativos posteriormente permitiram que os europeus expandissem a cultura para as partes mais tropicais do mundo.

A era entre 1500 e 1800, introduziu novos alimentos e bebidas, incluindo o café da África e do Império Otomano até o norte da África e à Europa. A primeira cafeteria estabelecida em Constantinopla foi em 1554, e, em Oxford, na Inglaterra, foi em 1650, onde estudantes universitários avidamente adotaram a nova bebida. Todas as partes do mundo dependeram dos grãos de Mocha, próximo a Aden, na ponta sul do Mar Vermelho, para seu abastecimento. No século XVIII, os holandeses começaram a plantar café em Java, da mesma forma que os ingleses no Caribe. O chá chinês foi conhecido um pouco antes de ser adotado apaixonadamente no Japão e na Rússia; foi vendido pela primeira vez na Inglaterra, na metade do século XVII. Meio quilo de folhas de chá podiam produzir quase 300 xícaras da bebida; ao final do século XVIII, mais de 816 mil quilos de chá foram consumidos anualmente na Inglaterra.

Na direção oposta, o chocolate viajou das Américas para a Europa, e seu comércio foi inicialmente monopolizado pela Espanha e por Portugal. Na sociedade Asteca, o cacau era um item de luxo; os grãos eram usados como moeda e preparados de muitas formas diferentes. No México do século XVI, as sementes de cacau eram secas, torradas, então amassadas em uma pasta com água; temperos eram adicionados e a mistura era batida até ficar espumosa. A mistura foi oferecida aos primeiros visitantes espanhóis em um banquete; eles enfrentaram o preparado com um misto de apreensão e medo. Contudo, a opinião popular europeia logo concordou com Bernardino de Sahagun, um observador jesuíta, que afirmou que "ela agrada, refresca, consola e revigora".

As crescentes populações europeias, africanas e asiáticas seletivamente adotaram outras culturas agrícolas das Américas: a batata, o tomate e o milho. A batata chegou à Inglaterra na viagem de Drake para a Colômbia, e foi imediatamente cultivada, primeiro como uma planta ornamental e não como comida. Já em 1774, as vítimas da fome prussiana de Kolberg se recusaram a tocar em um carregamento de batatas enviada por Frederico, o grande. A batata, que se originou nos Andes, permitiu que uma grande expansão populacional ocorresse na Irlanda, depois de sua aceitação por lá. A dependência irlandesa de uma única variedade de batata para consumo, contudo, criou uma dependência devastadora, conforme a fome do século XIX deixou bem claro.

A população na China aumentou drasticamente e a culinária foi alterada, graças à introdução do milho, da batata doce e dos amendoins, depois de 1500. No oeste da África, a introdução do amendoim, da pimenta malagueta, da mandioca, do tomate e do milho das Américas forneceu a base para a produção agrícola nas terras marginais e para a expansão populacional e deu auxílio às dietas durante a travessia de escravos. No final do século XVIII, essas comidas tornaram-se os produtos de consumo das culinárias locais e foram necessárias para os escravos nas viagens transatlânticas, até mesmo quando negadas pelos mestres europeus.

As dietas sul-asiáticas também foram significativamente transformadas após 1500. O estabelecimento do domínio Mughal na Índia trouxe novas comidas cotidianas e novos métodos de preparação da comida. Kebabs feitos de pequenos pedaços de carne grelhados em espetos, pilafs (pratos de arroz com guisado de carne), frutas servidas com carne, nozes (cristalizadas), e enrolados de comida com delicadas folhas de ouro e prata em pó (facilmente absorvidos pelo corpo), tudo isso criou uma suntuosa e distinta culinária. A introdução de pimentas das Américas alterou para sempre o gosto do caril preparado com misturas de condimentos, que, por sua vez, foram levados do subcontinente indiano para os mercados e cozinhas da África, da Inglaterra e de outras partes da Ásia e, finalmente, de volta ao Caribe.

GOUCHER, Candice; WALTON, Linda. História mundial: jornadas do passado ao presente. Porto Alegre: Penso, 2011. p. 332-333.

terça-feira, 25 de junho de 2013

Os brancos não se entendem: os movimentos nativistas na Colônia

- Nenhum homem nesta terra trata do bem comum. Cada um cuida do seu bem particular - dizia frei Vicente do Salvador, em 1627.

Quem possuía bens particulares para cuidar na Colônia era a classe dos senhores de terras. Esses bens eram seus latifúndios, suas plantações e seus negócios, que eles queriam aumentar cada vez mais. Dessa forma, eles iam se dando muito bem com os comerciantes reinóis e com as autoridades metropolitanas. Os interesses de uns completavam os de outros.

Havia momentos, porém, em que os reinóis abusavam do monopólio. Pagavam pouco pelo que iam exportar e cobravam muito pelo que traziam do exterior.

As autoridades de Portugal, por seu lado, principalmente a partir do século XVIII, foram cobrando impostos cada vez mais altos: algum príncipe da Família Real ia se casar? Taxas no Brasil. Lisboa precisava ser reconstruída, depois do terremoto? Os brasileiros pagariam as despesas... O Palácio da Ajuda devia ser restaurado? Ora, pois não. Os tributos que o Brasil pagava, com um simples aumentozinho, ajudariam...

Nem sempre os pagadores de impostos daqui aceitaram essas imposições sem reagir. Por isso, em várias épocas da nossa História Colonial, muitos colonos brancos revoltaram-se contra a exploração portuguesa. Foram os chamados movimentos nativistas.

Um dos primeiros foi o dos donos de terras do Maranhão, em 1684. Liderados pelo senhor de engenho Manuel Beckman e com o apoio dos "homens bons" da Câmara Municipal de São Luís, eles exigiram que a Companhia de Comércio portuguesa que comprava os seus produtos parasse de falsificar pesos e medidas. Queriam também escravizar os índios da floresta amazônia, já que o preço dos escravos africanos era muito alto. Para isso, achavam necessária a expulsão dos jesuítas, que impediam a caça aos nativos.

Mesmo sabendo que os colonos maranhenses não queriam a separação de Portugal, a Coroa agiu com rigor: a rebeldia não podia ser tolerada. Beckman e mais dois chefes foram condenados à morte. Para acalmar os fazendeiros, a Companhia de Comércio foi extinta e o cativeiro dos índios permitido. O acontecimento ficou conhecido como a "Revolta de Beckman".

Beckman, Antônio Parreiras 

Outra luta que envolveu colonos e comerciantes ocorreu em Minas gerais, na primeira década do século XVIII. Foi a "Guerra dos Emboabas". Mineradores paulistas pegaram em armas contra os que chegaram na região depois deles. Aquela "terra de ninguém" agora tinha dono!

- Com que autoridade esses "pintos calçudos", que mais parecem uns emboabas, querem mandar na região? E como pedem caro pelas mercadorias que nos vendem: vejam só o preço da carne! Querem ficar com o nosso ouro!

Mesmo parecendo aves pernaltas com aquelas longas botas, os emboabas, comandados pelo reinol Manuel Nunes Viana - um poderoso criador de gado na região -, tiveram mais força e expulsaram os paulistas de lá.

Para assegurar seu poder na terra, o governo português criou a Capitania Real de São Paulo e Minas do Ouro. Depois disso, os conflitos diminuíram.

Proprietários de terras x comerciantes reinóis: na mesma época da "Guerra dos Emboabas", ocorreu outro conflito no Nordeste. Foi a "Guerra dos Mascates". A Capitania de Pernambuco já não era a mais rica do Brasil: o preço do açúcar caía, porque ele era produzido também nas Antilhas. Além disso, os preços dos escravos subiam. Muitos lavradores abandonavam suas terras e entravam na "corrida do ouro", seguindo para as Gerais.

- Os senhores olindenses têm as fazendas e os conventos, os escravos e as dívidas! - diziam os comerciantes de Recife, a quem os tais senhores deviam dinheiro pela compra de escravos.

- Vamos decretar novos impostos para acabar com o topete desses mascates! - decidiram os proprietários que viviam em Olinda. Afinal, Recife nos deve obediência!

Recife, que recebia ordens da Câmara de Olinda, não podia mais aceitar essa condição. Sob a liderança dos mascates começou a lutar por sua elevação à condição de vila:

- Queremos autonomia! Chega de ser mandado por Olinda! Viva a vila de Recife!

O rei D. João V, muito ligado aos comerciantes, atendeu ao pedido dos recifenses, em 1709. A reação de Olinda foi imediata: a cidade portuária foi ocupada pelos capangas dos senhores de engenho e o bispo Manuel Costa foi nomeado governador.

- O rei deve anular o ato de elevação de Recife à condição de vila. O governo português não pode permitir que os comerciantes integrem as Câmaras Municipais: elas são lugar de gente bem! O preço dos escravos tem que ser tabelado. Não podemos perder nossas terras para quem nunca mexeu com lavoura. Queremos também que os ingleses e os holandeses possam vir ao nosso porto, livremente!

O rei absolutista e todo-poderoso de Portugal não queria aceitar tantas exigências. Por isso, enviou suas tropas, acabando com o conflito. Nenhuma das reivindicações dos olindenses foi atendida pelo novo governador de Pernambuco, Félix José Machado.

Ainda no início do século XVIII, a Capitania de Minas Gerais foi palco de um grave choque entre os mineradores e as autoridades da Metrópole.

Em 1719, o governo da Metrópole criou as Casas de Fundição, onde todo o ouro encontrado deveria ser fundido, selado e quintado. O governo português arranjava uma encrenca com os mineradores. Eles já não gostavam de entregar a quinta parte do que extraíam para os fiscais portugueses. Com as tais Casas de Fundição, como iriam fiscalizar a retirada do quinto? Isto sem falar na demora até fundir o ouro em barras, retirar a parte da Coroa e devolvê-lo.

Julgamento de Felipe dos Santos, Antônio Parreiras

Liderados por Pascoal Guimarães e Felipe dos Santos, os mineradores disseram não às Casas de Fundição. O governador da Capitania, conde de Assumar, foi muito decidido também: prendeu vários rebeldes em Vila Rica. E mandou julgar rapidamente Felipe dos Santos, que foi enforcado e esquartejado, para servir de exemplo. Quem levantasse a cabeça contra El-Rei corria o risco de tê-la cortada!

ALENCAR, Chico et alli. Brasil Vivo 1: uma nova história da nossa gente. Petrópolis: Vozes, 1991. p. 71-72.

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Pacto social e governabilidade conservadora

Foto: Eixo

Ao atuar em favor da desmobilização das forças sociais mais combativas, o lulismo descartou a possibilidade de transformações feitas com base na pressão da sociedade organizada e aceitou a lógica de governar sem a participação direta desses atores. Com isso, a conquista de maioria parlamentar tornou-se um objetivo a ser alcançado a todo custo

Por Ivan Valente*

Não é necessário grande esforço para notar o avanço das ideias conservadoras nas últimas décadas em todo o mundo. As grandes propostas de modernidade - a igualdade entre os indivíduos, a liberdade e a justiça para todos - e as transformações movidas pelas grandes utopias têm sido questionadas pela descrença generalizada, pela exacerbação do individualismo e por uma nova versão do "fim da história". Mesmo que os ideólogos do liberalismo tenham sido forçados a admitir, após o estouro da bolha imobiliária de 2008, que algo estava errado no "fantástico mundo do livre mercado", é inegável que vivemos sob a hegemonia do pensamento liberal.

A débácle do socialismo burocrático no Leste Europeu e os novos e polêmicos caminhos caminhos trilhados pelos partidos comunistas nos países asiáticos não foram suficientes para arrefecer a busca do liberalismo em afirmar-se como única forma válida de interpretar o mundo. Era preciso responder de forma contundente a processos sociais e políticos que seguem questionando o falso consenso liberal-democrático, como o importante movimento bolivariano latino-americano - que fala abertamente da conjunção entre socialismo e democracia -, a chamada "Primavera Árabe" e a resistência popular europeia à política da Troika.

O neoliberalismo, por sua vez, não foi apenas uma saída econômica diante de mais um ciclo de recessão da economia capitalista mundial. Ele veio para radicalizar a liberdade do mercado, redefinir o papel do Estado e reorganizar o conjunto das relações sociais, enfraquecendo direitos históricos da cidadania. Nesse contexto, "esquerda" e "direita" seriam conceitos superados, e a luta entre projetos antagônicos e classes seria substituída por esforços permanentes de conciliação. A polarização política e o "radicalismo" deveriam ser evitados em nome do compromisso com a democracia e a estabilidade da nova ordem mundial.

Tal ideia esvazia o espaço da política como instrumento de ação transformadora e reforça a manutenção do status quo. Com menos espaço para as forças de contestação, busca-se cristalizar o sentimento de que não há alternativas viáveis à ordem liberal. O conformismo, alimentado por poderosos instrumentos de convencimento e alienação, e o individualismo, reforçado por diversos mecanismos que subvertem o convívio e a ação coletiva, se fortalecem. Disseminando de forma competente esses valores, as elites operam arranjos institucionais com vistas a consolidar a máxima "quanto menos ruptura e mais consenso, melhor".

É verdade que as promessas do liberalismo só fizeram ampliar a desigualdade social e o potencial para novas crises econômicas. O saldo em termos ideológicos, porém, é positivo para seus defensores. Mesmo governos, partidos e movimentos que se colocaram por muito tempo contrários ao falso consenso liberal-democrático têm se deixado cooptar.

A história brasileira é marcada pela tentativa de controle das elites sobre as pressões transformadoras. Tal processo assegurou que as grandes mudanças na história do país se dessem na forma de transições conservadoras, sem experiências significativas de ruptura com caráter pedagógico para os "de baixo". Houve momentos importantes de resistência e luta popular, que conheceram a virulência repressiva das classes dominantes. Mas, da independência e a abolição da escravidão ao golpe militar de 1964, tudo teve a marca da conciliação das elites e das transições costuradas pelo alto.

Mesmo a superação da ditadura, sob a decisiva pressão do movimento democrático e de uma classe trabalhadora ascendente politicamente, se deu de forma negociada, com a derrota das Diretas Já! e a alternativa Tancredo/Sarney, que culminaria na Constituinte e nas eleições de 1989, quando as elites impediram a chegada ao poder de um governo dos trabalhadores.

É nesse contexto histórico que a eleição de Lula, em 2002, após quase quinze anos de hegemonia neoliberal, ainda tem uma forte carga simbólica. O processo conciliador e negociação já estava, entretanto, em marcha.

A última década foi marcada por alguns avanços distributivos e, paradoxalmente, por profundos recuos ideológicos. O começo do governo Lula, apesar dos pesares, gerou uma grande expectativa de mudança. Mas a necessidade de ganhar a confiança do mercado financeiro levou a política econômica a extremos, com a manutenção da trilogia "controle da inflação, manutenção do superávit primário e câmbio flutuante". Essa lógica implicava manter juros siderais, alavancando violentamente a dívida pública, que consome hoje metade do orçamento nacional.

O abandono de um programa efetivamente democrático e popular, que atacasse as bases de dominação do capital com medidas como a auditoria da dívida, a reforma urbana e agrária, a democratização dos meios de comunicação, o fim das privatizações e a reversão daquelas realizadas por FHC e o investimento público maciço nas áreas sociais, demonstrando uma inversão de prioridades, foi uma escolha consciente.

A opção por não melindrar o capital financeiro e os interesses estrangeiros levou, assim, a ações políticas bem definidas. A primeira visava ganhar o apoio dos excluídos e muitos pobres, a quem interessa uma inflação baixa, que não lhes roube o salário. A segunda tinha como objetivo neutralizar o setor mais consciente e organizado do sindicalismo, controlando suas lideranças e rebaixando sua agenda política. Ambas criaram as condições para um fortalecimento do conservadorismo.

Essa estratégia inicial levou a uma frustração dos setores médios progressistas que constituíam parte importante da base do petismo. Tal processo se expressou particularmente no funcionalismo público, duramente atacado pela reforma da Previdência em 2003. E alcançou seu ponto máximo com o escândalo do "mensalão", causando grandes desgaste na classe média como um todo.

Por meio de uma política econômica conservadora apoiada em medidas de largo alcance popular, muito eficientes para ganhar a confiança dos setores menos favorecidos, a aposta do lulismo foi combinar alguma distribuição de renda, crédito barato e consumo. Ampliando a base da pirâmide social, brasileiros foram incorporados ao mundo do trabalho e do consumo, criando a falsa sensação de ascensão social e favorecendo o discurso oficial de surgimento de uma "nova classe média". Esse discurso tem sido instrumentalizado dentro e fora do governo para favorecer a ideia de que o florescimento de uma nova classe média traz demandas que só o mercado pode atender (planos de saúde, escolas privadas, carros do ano). Aqui, a luta em defesa de uma escola pública, gratuita e de qualidade para todos e de um sistema único de saúde público, com mais investimentos estatais, perde terreno. Os trabalhadores "incorporados" ao consumo tornaram-se a base de sustentação do lulismo e nesse movimento geram valores notadamente individualistas e conservadores, próprios dos setores sociais mais vulneráveis à ideologia dominante.

Ao não atacar o modelo econômico das elites, consolidar a hegemonia do pensamento liberal e afirmar o sistema agroexportador como base de divisas para o país, o lulismo legitimou o agronegócio, recuando em qualquer proposta de reforma agrária e cedendo à pressão dos ruralistas na mudança do Código Florestal Brasileiro, um brutal retrocesso na preservação do meio ambiente. Atuando como bancada suprapartidária e conhecendo seu peso na governabilidade conservadora, os ruralistas criaram asas e agora comandam uma nova ofensiva: atacam a legislação trabalhista no campo, o combate ao trabalho ao trabalho escravo e os direitos das comunidades indígenas e quilombolas. Os retrocessos podem ir mais longe, com a pressa por aprovar um novo Código de Mineração. Nesse contexto, não foi à toa que figuras como os senadores Blairo Maggi e Kátia Abreu, notórios ruralistas, migraram para a base do governo - sendo o primeiro guindado à presidência da Comissão de Meio Ambiente do Senado.

A mesma coisa se pode dizer do recuo governamental na regulação do setor mediático e na democratização dos meios de comunicação. Intimidado pelo discurso falacioso de "volta da censura" propagado pela grande imprensa, o governo continuou financiando generosamente o setor com publicidade, desonerando grandes corporações com apoio do BNDES e entregando o patrimônio público às operadoras de telecomunicações. Ao alimentar valores do pensamento único conservador e influenciar a pauta política, o monopólio das comunicações, que concentra em poucas empresas e famílias as principais empresas do setor, é um dos maiores entraves a uma verdadeira democratização da sociedade brasileira.

Embora alguns ganhos nos direitos sociais, trabalhistas e civis tenham sido conquistados no período - notadamente por pressão dos movimentos sociais -, não está no horizonte a possibilidade de mudanças estruturais de interesse dos trabalhadores, como a reforma tributária que taxe as grandes fortunas e priorize os impostos sobre a riqueza e a propriedade em vez do consumo e da renda assalariada. Hoje, a manutenção da política tributária representa uma brutal injustiça fiscal e social, reforçando a matriz patrimonialista e a concentração de riqueza.

O mesmo se nota na dificuldade em fazer avançar a reforma política, mais uma vez enterrada no Congresso. A quem interessa acabar com o poder econômico nas eleições e fortalecer a participação popular no processo político? Aprovar o financiamento público exclusivo de campanha com punição para a doação e recepção de recursos privados já seria uma grande revolução. Estabelecer mecanismos de participação direta, como plebiscitos e referendos, e facilitar os projetos de iniciativa popular seria outro grande avanço. Mas o que fazer quando tudo se choca com a governabilidade?

Nos últimos anos, esse conceito tem sido largamente usado para caracterizar a tática de viabilizar ações de governo por meio da conquista da maioria parlamentar via a incorporação de diferentes partidos à base de apoio do Executivo. Ao atuar em favor da desmobilização das forças sociais mais combativas, o lulismo descartou a possibilidade de transformações feitas com base na pressão da sociedade organizada e aceitou a lógica de governar sem a participação direta desses atores. Com isso, a conquista de maioria parlamentar tornou-se um objetivo a ser alcançado a todo custo.

Esse chamado "presidencialismo de coalizão" - conciliação, aliás, corrente antes da chegada do PT ao governo - é formado por uma base heterogênea de partidos políticos sem projeto, programa ou ideologia. Todos, porém, ávidos por participar da divisão de espaços no aparelho do Estado, liberar emendas parlamentares ao Orçamento Público e tirar vantagem de cada proposta que tramita no Congresso, como forma de apropriação privada direta ou em defesa de interesses de grandes e médios grupos econômicos.

Trata-se de uma prática que tem relação direta com a participação dos interesses privados nas decisões do Parlamento. A principal via de corrupção hoje, todos sabem, é o financiamento das campanhas eleitorais. Nesse processo, constituem-se bancadas "suprapartidárias", que barram o avanço de qualquer medida progressista. Essas bancadas vão desde a junção de interesses econômicos (como a bancada ruralista) até a união de posições políticas ou religiosas (como a bancada do fundamentalismo cristão). O consequente enfraquecimento dos partidos e o fortalecimento de interesses fragmentários, aliados à necessidade de assegurar o controle por parte do governo dos principais postos no Parlamento, levam a excrecências como a eleição de Marco Feliciano à presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados.

Paralelamente, a governabilidade, cada vez mais dependente de partidos conservadores, rebaixa o horizonte do governo, mesmo em temas básicos da cidadania. Essa situação cria uma vergonhosa situação: enquanto medidas como a união civil de pessoas do mesmo sexo, a legalização do aborto e a descriminalização das drogas avança em países vizinhos como o Uruguai, o Brasil vive uma brutal ofensiva conservadora contra tais iniciativas - incluindo a resistência, dentro e fora do governo, à punição pelos crimes praticados pela ditadura militar.

Romper esse círculo vicioso e apresentar uma verdadeira resposta alternativa, admitindo o conflito de interesses e a necessidade da luta e da mobilização para afirmar o protagonismo das maiorias excluídas, é o grande desafio da esquerda. Mas, para isso, é preciso evitar táticas que possam enredar os setores populares em compromissos que neutralizem sua força transformadora. É verdade que vivemos um momento de baixa das lutas sociais, causado pelas opções políticas do bloco que outrora representava a resistência ao neoliberalismo.

Porém, temos experiências que demonstram que, mesmo nas regras do jogo democrático-burguês, é possível colocar em prática políticas contra-hegemônicas que fortaleçam os "de baixo". É o que vemos no Equador, na Bolívia e na Venezuela, onde políticas efetivadas nos últimos anos - elevando os salários, assegurando o acesso à saúde e educação, proporcionando alimentos a preços subsidiados, reduzindo drasticamente a pobreza, erradicando o analfabetismo e enfrentando as elites - mostraram que é possível contrariar interesses em favor de uma radical transformação social. Evidentemente, a realidade social, política e econômica do Brasil é diferente. Mas o é também porque as condições para a constituição de um projeto alternativo foram enfraquecidas em suas bases: a independência das organizações dos trabalhadores e a manutenção de um projeto de enfrentamento às elites nacionais e internacionais.

É possível reconstruir um projeto popular para o Brasil que enfrente o avanço conservador com base numa plataforma de mudanças estruturais. Mas isso só poderá ser feito amparando-se nas massas trabalhadoras e excluídas e rompendo, definitivamente, o ciclo de transições conciliadas que até aqui mantiveram as mesmas elites no comando da nação. Essa é uma tarefa urgente, que exige tenacidade daqueles que acreditam na democracia e no socialismo como forma de superar as mazelas de nosso povo.

* Ivan Valente é deputado federal (Psol-SP). Pacto social e governabilidade conservadora. In: Le Monde Diplomatique Brasil.  Ano 6 / Número 70. Maio 2013.

domingo, 23 de junho de 2013

Ler, escrever e criar na Colônia

No mundo colonial foi graças à instalação de conventos de jesuítas, franciscanos, carmelitas e beneditinos, que brotou o primeiro embrião de vida cultural. Vieram com as ordens religiosas os primeiros livros. Livros capazes de instruir e de ensinar a rezar. Manuais de confissão, livros de novenas e orações, breviários relatando a vida dos santos e catecismos tinham por objetivo ajudar a catequese e pacificar as almas. Apesar da forte presença da literatura sacra, já quando das primeiras visitas do Santo Ofício da Inquisição às partes do Brasil, apareciam denúncias de outras leituras. De leituras proibidas. Proibidas, sim, pois Estado e Igreja sempre tomaram livros e saberes como fonte de inquietação e pecado, censurando-os e perseguindo quem os lesse. Um exemplo? Em 1591, vários moradores da Bahia foram acusados de ler o romance Diana, de Jorge Montemayor, um clássico profano do Renascimento europeu. Seu tema: um picante caso de amor. Entre seus leitores achou-se uma mulher: Dona Paula de Siqueira, que muito "folgava" com o tal livro! Certo Nuno Fernandes possuía As Metamorfoses, de Ovídio, enquanto seu conterrâneo, Bartolomeu Fragoso, para escapar ao controle da censura, preferia rasgar as páginas, depois de lidas, do seu exemplar do temido Diana. Apesar de encontrarem-se no distante sertão, em São Paulo também havia alguns leitores de obras como Os Mistérios da Paixão de Cristo, sermões e até mesmo Os Lusíadas, de Camões.

Porém, conspirava contra a presença de livros o elevado número de analfabetos - categoria da qual poderíamos incluir a quase totalidade dos escravos e escravas coloniais. Enquanto uns poucos leitores disputavam obras impressas ou cópias manuscritas dos mesmos, outros se debruçavam maravilhados sobre as aventuras narradas pelos folhetos de cordel, como a Donzela Teodora, a de Roberto, o Diabo ou a da Princesa Magalona, que ainda hoje circulam pelo Nordeste e eram então enviados nas naus que singravam o Atlântico em direção à América. Entre os que sabiam ler e escrever, também não faltou quem quisesse retratar a terra e seus moradores. Administradores e sacerdotes, magistrados e mercadores produziram relatórios, descrições ou mesmo poemas com um simples intento: descrever, dominar e tirar proveito do que os cercava. José de Anchieta foi pioneiro. Produziu um dos primeiros livros escritos entre nós [...]. Tratava-se de um poema épico sobre o governador Mem de Sá com cinematográficas descrições sobre suas crueldades em relação aos indígenas. O jesuíta escreveu, também, poesias e autos teatrais, sempre tendo em vista catequizar os infiéis [...]. Dentro da mesma linha de edificação religiosa, Simão de Vasconcellos escreveu posteriormente uma crônica sobre as atividades da Companhia de Jesus no Brasil.

Paralelamente à preocupação religiosa, os livros procuravam noticiar as riquezas da terra. A mais clara informação sobre a natureza e sobre os moradores da terra de Santa Cruz nasceu da pena de um sensível senhor de engenho baiano, Gabriel Gomes Soares de Souza. [...] Resultante de um pedido da Coroa espanhola que, então, subjugava Portugal, o livro narra com minúcias o lugar que o autor adotara (era português) e onde passara da pobreza à riqueza graças ao açúcar. Para redigir seu texto, Gabriel Soares se valeu de "muitas lembranças por escrito" que anotara ao longo dos 17 anos entre nós, relatando com absoluta graça e precisão a topografia da Bahia, as plantas do Novo Mundo, a zoologia americana, a agricultura que se praticava e até as formas pelas quais nossos antepassados indígenas exerciam a medicina. Seguindo essa mesma tradição, Diálogos das grandezas do Brasil, composto por volta de 1618, é outra obra com informações sobre a terra e sua gente. Seu autor é, mais uma vez, um plantador de cana, Ambrósio Fernandes Brandão [...]. Mal passado um século de colonização, o autor já percebia a indiferença dos funcionários metropolitanos frente às realidades coloniais, assim como a indolência dos emigrados que se negavam a trabalhar, tudo empurrando aos escravos. [...]

Pouco a pouco essas descrições da terra brasileira vão dando lugar a relatos históricos. O primeiro brasileiro a escrever tal prosa foi Vicente Rodrigues Palha, na verdade, frei Vicente do Salvador [...]. Concluiu sua História do Brasil em dezembro de 1627 [...]. Seu texto é revolucionário na medida em que introduz os verdadeiros personagens de nossa história: índios, negros, mulatos e brancos, cujas histórias são contadas em tom popular. Nele, anedotas e fatos folclóricos misturam-se a ditos do rei do Congo, às peripécias de seu escravo Bastião quando da invasão holandesa à Bahia e a explicações sobre a construção dos engenhos ou sobre a pesca da baleia. Frei Vicente foi o primeiro a criticar a posição dos portugueses, alheios, então, à conquista do oeste, deixado aos bandeirantes. Critica também os monarcas portugueses que pouco caso fizeram do Brasil [...]. Os comerciantes portugueses, por sua vez, eram acusados de só virem "destruir a terra, levando dela em três ou quatro anos que cá estavam quanto podiam". [...]

O século XVII trouxe outras novidades. A luta contra franceses e holandeses suscitou novos textos históricos. Valoroso Lucideno (1648), de frei Manuel Calado; Nova Lusitânia (1675), de Francisco de Brito Freire; e Castrioto Lusitano, de frei Rafael de Jesus (1679), entre outros tantos e menores, representam, de certa forma, o sentimento localista entre os colonos, sentimento este inspirado nas tensões militares contra o estrangeiro. Contudo [...] os holandeses contribuíram para recuperar a tradição lusitana seiscentista de descrições da natureza. Isso foi possível graças a Maurício de Nassau, que trouxera consigo uma pequena corte de cientistas, como o cosmógrafo Michiel de Ruyter, os médicos e naturalistas Wilhem Piso e Georg Marcgrav, assim como artistas do porte de Frans Post, Albert Eckhout, Zacharias Wegener e Pieter Post - arquiteto do plano geral do Recife. A profusão, o colorido e as dimensões de seres absolutamente novos não cessarão a despertar a curiosidade desses intelectuais, e seus textos vão-se cobrindo de sentimento entre o espanto maravilhado e o utilitarismo.

Apesar de alguns comentários de Anchieta, coube a Piso e Marcgrav dar início às investigações sobre as ciências naturais e físicas entre nós. Cada bicho, cada planta ou mineral era cuidadosamente descrito e acrescentado ao conjunto já conhecido pelos europeus. [...]

Além desses autores, surgiram na Bahia do século XVII dois grandes nomes: Antônio Vieira e Gregório de Matos Guerra. Não eram homens isolados, pois, na mesma época, outros poetas compunham o "grupo baiano". Entre eles, Bernardo Vieira Ravasco e Manoel Botelho de Oliveira. [...]

Enquanto alguns esculpiam as coisas da terra com palavras, outros o faziam na madeira e no barro. Dos mesmos conventos que abrigaram nossas primeiras bibliotecas, saíram nossos primeiros artistas. Tal como ocorria com a literatura, majoritariamente sacra,  nossos entalhadores, escultores e pintores se dedicaram, no século XVII, a pintar temas celestiais. [...]


A crucificação de Cristo, Manuel da Costa Ataíde

A vida cultural que vai timidamente se desenvolvendo também trouxe vitalidade à arquitetura em diversas regiões do Brasil. O "barroco mineiro" alternou fachadas sóbrias com interiores altamente trabalhados. A concorrência entre confrarias e irmandades religiosas pela decoração de suas igrejas traduziu-se em resultados suntuosos. [...] Na falta de azulejos ou outros materiais de luxo, artesãos brancos, negros e mulatos alforriados respondiam com inovações. O uso da pedra-sabão - que teve em Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, seu mais genial partidário - é um exemplo disso.

A pintura, por sua vez, deveria respeitar um adecedário do emprego das cores, fixada pela Igreja: branco e preto significavam severidade; pardo e cinza, desprezo e abjeção; azul e branco, pureza e castidade; vermelho, amor e caridade; verde, penitência e esperança; e roxo, luto. [...]

[...] A nova riqueza alimentada pelo ouro e pelos diamantes empurrou para o Sudeste boa parte da incipiente vida literária. O Rio de Janeiro, escoadouro das riquezas mineiras e capital colonial a partir de 1763, assim como as cidades mineradoras, passou a sediar novas expressões estéticas. Mariana, sede do bispado de Minas, tornara-se foco de instrução graças ao seminário aí instalado, por obra de ricos proprietários interessados em garantir estudo aos seus filhos antes de enviá-los a Coimbra. Fruto desse interesse por livros e por escrever, as academias literárias começavam a se organizar. [...]

[...]

A "escola mineira" produziu intelectuais bem mais expressivos, como Cláudio Manuel da Costa [...], Basílio da Gama [...], Tomás Antônio Gonzaga [...] e José de Santa Rita Durão [...]. Quando começaram a poetar, vicejava em Portugal um estilo, o arcadismo, cujos cânones recomendavam que, tal como ocorrera com os clássicos, a arte deveria imitar a natureza, identificando-se com a vida bucólica do campo; a obra de arte tinha também que possuir fim moral e edificante. Nossos líricos somaram a tais características um "nativismo comovido" [...]. A gente e a natureza americana seguiam sendo assunto, embora com sabor distinto. [...]

[...]

Outro aspecto da cultura que se desenvolveu, durante o setecentos, foi o teatro, na forma da diversão mais popular. Atores ambulantes percorriam cidades encenando, nas praças e nos mercados, autos como Inês de Castro, a Princesa Magalona e o gilvicentino Auto da Lusitânia, e reunindo entusiasmados espectadores. Atuava-se sobre tablados armados, aos domingos, dia em que as pessoas da roça acudiam aos centros comerciais e urbanos. Fantoches, circos de cavalinhos e mamulengos, com seus palhaços e dramatizações rudimentares, faziam parte do espetáculo. [...] 

PRIORE, Mary Del; VENÂNCIO, Renato Pinto. O livro de ouro da História do Brasil. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 117-132.

sábado, 22 de junho de 2013

O porque da vertiginosa conquista hispânica

Cortéz e seus soldados atacam os astecas, Emanuel Leutze

Em um breve tempo de história - mais ou menos meio século - dezenas de milhões de americanos foram dominados por reduzidos grupos europeus. Como aconteceu? Como foi possível isso? O problema intriga os historiadores.

Dizer que as razões que explicam o fenômeno são complexas, é óbvio. Tê-las em nossas mãos, já é mais problemático. Somos capazes de entender o grande drama?

Argumentou-se que as armas de fogo e os cavalos aterrorizaram os índios a ponto de paralisá-los. O argumento é inconsistente. Isso explicaria que os 182 homens que Francisco Pizarro colocou em Cajamarca (dos quais só um terço a cavalo) derrotassem em meia hora, talvez mais de 200.000 guerreiros nativos sob o comando do inca Atahualpa? É difícil aceitar isso. Sabemos que os incas - assim como os astecas e outros povos - encaravam a guerra como uma questão permanente; que sua coragem não era inferior à de ninguém, nem à dos soldados barbudos vindos do ultramar, revestidos de couraças e com o raio da morte em suas mãos. Sabemos o que foi a defesa de Tenochtitlán pelos astecas durante dois anos e meio, e não ignoramos que Cortéz venceu, não propriamente porque os arcabuzes e canhões lhe davam superioridade, mas porque contava com um considerável exército de índios que odiavam os astecas.

Não são poucos os historiadores que assinalam o que usualmente chamaríamos "presságios". [...] No Peru, México e outras áreas da América pré-colombiana corriam lendas ou profecias sobre a próxima chegada, do oriente, de deuses bárbaros, em templos flutuantes, montados em centauros terroríficos e treinados no manejo do trovão e do raio.

Sob o reinado de Huayna-Capac, no Peru, determinados fenômenos naturais foram interpretados como o prognóstico de tragédias que se aproximam. Meteoros vermelhos cruzam os céus, terremotos sacodem violentamente a terra e derrubam montanhas, tempestades violentas devastam várias regiões. E, o mais grave: a aparição da lua rodeada por um tríplice círculo luminoso, que intrigará profundamente aos astrônomos do Incário.

O próprio Huayna-Capac, fica impressionado e manda chamar o astrólogo Llayca para decifrar o significado de sinais tão inquietantes. Llayca responde: a) o sangue dos povos do Incário será amplamente derramado; b) uma guerra fratricida acabará com a dominação dos incas; c) todo o conhecido terá um final bem próximo.

Tudo isso - e que posteriormente é confirmado pela conquista - é lido e interpretado por Llayca no tríplice círculo da lua.

A relativa passividade de Montezuma e Atahualpa nos deixa perplexos... O fato de aceitarem a presença dominadora da tropa hispânica não deve ser visto pelo lado da covardia, mas também deve considerar-se a existência de uma convicção solidamente enraizada em suas consciências: a inevitabilidade da tragédia, prevista, anunciada, profetizada.

Ambos os imperadores se submetem, como se desafiar o destino - e os espanhóis parecem representá-lo - fosse absolutamente inútil. O fatalismo inerente às religiões nativas (e não somente a elas, é claro) deve ter jogado um papel decisivo na paralisia que sobreveio repentinamente em seus seguidores. Uma faca de dois gumes.

Talvez o fatalismo tenha sido cultivado pelos grupos dirigentes e pelo imenso setor sacerdotal como uma maneira de incentivar o messianismo: incas e astecas tiveram que representar-se como designados por uma onipotência superior para dominar. Em nome de seus deuses puseram-se a conquistar e subordinar povos diferentes. Em seu nome impuseram tributos, aumentaram riquezas e poder e tornaram válida a dominação de seus próprios povos. A religião foi sendo adaptada a finalidades que hoje estão muito longe de ser conceituadas como sendo exclusivamente religiosas. Muitos esforços e energias foram despendidos para construir o que a posteridade chamou Confederação Asteca e Império Inca. Talvez sem o papel extraordinariamente mobilizador da religião, não teriam adquirido a dimensão que sabemos que tiveram. Mas, assim como o destino revelado pelos deuses mostrava as vitórias, é possível que esse desígnio superior fosse interpretado a partir de determinado momento como o presságio de uma catástrofe desejada pela vontade onipotente.

Não era concebível desafiar o "além" que não podia ser conhecido, fosse ele favorável ou contrário em suas determinações. Insistimos: uma faca de dois gumes, capaz de gerar fantásticas energias coletivas ou paralisá-las.

Mas esse fenômeno não foi unânime, universal. Os araucanos e outros povos (de menor desenvolvimento material e espiritual que os incas e astecas) mostraram grandes resistências. Incorporaram às suas capacidades o uso do cavalo e das armas de fogo, valendo-se disso igual ou melhor que os conquistadores.

O que ocorreu no México e no Peru é significativo. Os mais fortes foram os primeiros a serem derrotados; os mais inaptos resistiram com uma determinação proporcional à suas forças. O recurso ao fatalismo como fator explicativo não parece fora de propósito, mas como veremos, isso não explica tudo. No entanto, recordemos que a ocupação do templo de uma cidade cercada e cobiçada significava a sua derrota e o triunfo de um novo Deus. Quantos deles não aceitaram isso quando da invasão dos conquistadores sem estar militarmente derrotados!

Sabemos também que a vitória dos incas e astecas não terminava com os deuses dos vencidos, ficando esses num plano secundário em relação à divindade triunfadora. Só que para os cristãos conquistadores não significava a mesma coisa: a adoração ao seu Deus implicava em acabar com os deuses dos vencidos. Mais ainda: acabar com os cultos, templos e lugares sagrados. Eliminar tudo isso da consciência dos índios é outra coisa. Nisso, o triunfo foi bem menor, se é que em alguns casos a derrota não foi total. Apagar da consciência de milhões de indivíduos um mundo de significados e crenças que regulavam até os mínimos atos da vida cotidiana, foi infinitamente mais difícil que arrasar os objetos materiais do culto.

Temos agora uma pergunta intrigante: Por que povos menos desenvolvidos resistiram mais ferozmente aos brancos? Seguindo ainda o exemplo dos araucanos, eles nunca constituíram  um império. Formavam um conjunto de tribos que mantinham entre si relações episódicas de paz e guerra, de aliança e ruptura. Talvez por isso sua religião, crenças, consideravam menos o elemento fatalista existente nas religiões dos grandes dominadores. Como não chegaram a um estágio de desenvolvimento ou situação que os levasse a sentir-se dominadores, legitimando esse sentimento mediante a intervenção de uma vontade superior, provavelmente o espaço que isso lhes deu para manifestar sua liberdade foi muito maior. Não precisaram de um Deus para, em seu nome e maior glória, lançar-se à conquista e à subordinação de outros povos. Isso determinou que seu universo religioso excluísse a guerra como algo ditado por uma vontade superior. Os homens brancos não surgiram - nem foram percebidos ou concebidos - como enviados do "além". Eram simplesmente invasores, inimigos brutais, ousados invasores.

Em poucas palavras: crenças que estavam a serviço de uma dominação - e que tendiam a expandir-se e aprofundar-se - representaram, obviamente, as formas mais adequadas para a mobilização das energias conquistadoras. Mas o mandato que elas continham seguramente resultou de um processo histórico que também os araucanos talvez haviam chegado a realizar, transformaram-se no seu contrário em virtude do elemento aguçadamente fatalista e messiânico que continham. Crenças e concepções de tribos mais isoladas deviam conter forçosamente - como condição de sobrevivência - um poderoso fator auto-defensivo.

Estas explicações são corretas? Achamos, pelo menos, que elas são plausíveis.

No entanto há outro aspecto que convém destacar e que já foi mencionado. Enquanto dominadores, incas e astecas enfrentavam a resistência silenciosa dos povos que deviam pagar-lhes tributos e que tinham que aceitar imposições ultrajantes como, talvez, aquela que se referia ao deus dos vencedores. Tanto no México como no Peru os espanhóis contaram com a eficaz colaboração de comunidades indígenas que se conservavam independentes, ou que estavam lutando de alguma maneira para livrar-se das garras de um poder alheio. Totonecas e tlaxcaltecas foram providenciais aliados de Hernán Cortéz; também a guerra fratricida no meio inca foi importante para Pizarro e sua tropa. A chegada dos brancos barbudos, com suas armaduras, montados a cavalo e manejando armas de fogo parece ter sido festejada - e ao que tudo indica, o foi no México - como uma ajuda do céu para acabar com o poder que vinha de Tecnochtitlán. E se no final, todos terminaram submetidos aos espanhóis e pagaram um preço duríssimo, é outra história. Os índios, e vamos chamá-los de dissidentes, ignoravam o que os esperava quando a conquista começa. De fato, as duas mais importantes estruturas políticas do continente demonstraram ser muito mais artificiais do que se poderia supor. Baseavam-se na força e na passividade relativa que a religião triunfante conseguia impor - nem sempre, já sabemos - aos vencidos. É bom lembrar que em ambos os casos tratava-se de estruturas políticas relativamente recentes, em processo de construção e afirmação, mais a asteca que a inca. Mas em essência, ambas débeis. A unidade do Incário e da Confederação mexicana eram superficiais, não tendo raízes sólidas e penetrantes nas sociedades. Não existia, em os ambos casos, esse fenômeno a que chamamos Nação. Tribos unificadas através da coação militar e da ideologia religiosa, não perderam contudo sua identidade tribal, caracterizada pela adotação aos seus próprios deuses, mantendo costumes diferenciados, usando idiomas ou dialetos diferentes, preservando a heterogeneidade das aptidões.

Quando a cabeça de ambos os impérios é cortada, a estrutura toda desmorona. O caráter autocrático e extraordinariamente centralizado da dominação, particularmente no Incário, devia resultar no que a história nos ensina. Funcionários, sacerdotes e militares obedeciam as ordens que vinham de cima, começando pelo magistrado supremo laico e religioso, que se prolongava para baixo através de sucessivos estratos de sacerdotes, funcionários e militares que comunicavam as determinações entre si até fazê-las chegar ao povo, as massas de camponeses. Não existia o que hoje chamamos espírito e identidade nacional. Estado e Nação são fenômenos diferentes. Na América pré-colombiana encontramos Estados e só por um abuso de linguagem alguns estudiosos falam de Nações. Geralmente a resistência dos índios é mais uma reação contra a violência dos conquistadores que defesa de uma soberania e uma identidade nacional. Não existe a noção de soberania. O que podemos aceitar é a noção de legitimidade, que será implícita. A maioria dos dominados pelos incas e astecas consideravam a dominação como ilegítima. Não que a tenham tornado explícita, como poderiam fazê-los nossos cientistas políticos atuais. Mas o repúdio sórdido ou manifesto, calado ou espetacular ao poder alheio, e o não reconhecimento deste poder era a maneira de expressar sua falta de legitimidade.

POMER, León. História da América hispano-indígena. São Paulo: Global, 1983. p. 83-85.

quinta-feira, 20 de junho de 2013

Tradição Guarani

Os grupos da Tradição Guarani que habitavam o litoral catarinense também são conhecidos como Carijó (denominação dada pelos colonizadores portugueses, a partir do século XVI), cuja última leva migratória chegou à região durante o período pré-colonial. Apesar de autores apontarem que os dados sobre a sua origem são contraditórios e imprecisos, conta-se que eles partiram da Amazônia em direção ao Sul, utilizando para isso os rios Paraná e Uruguai.

Como os grupos da Tradição Itararé, os Guarani também se destacam pela cerâmica, de grande variedade de formas e tamanhos. No entanto, apresentam pelo menos duas diferenças fundamentais. A primeira é que as peças produzidas pelos Guarani, além do uso em afazeres do dia-a-dia, também eram utilizadas em rituais da tribo, como no caso das "urnas funerárias". E a segunda é o fato de que as peças mais elaboradas eram sempre decoradas, com fundo branco ou vermelho e superfície com linhas vermelhas e pretas. Os motivos apresentavam linhas em zigue-zague, onduladas e aspiradas e triângulos.

Além das peças em cerâmica, os Guarani também produziam objetos a partir de outras matérias-primas como madeira, ossos, dentes, conchas, pedras e fibras vegetais. Entre esses objetos, encontram-se lâminas e pontas de flechas, e objetos para adornos como colares.

Apesar de também praticarem a pesca e a caça, os Guarani eram prioritariamente agricultores e cultivaram produtos como mandioca, cará, abóbora, milho, algodão, pimenta, inhame e tabaco (este último deduzido pela presença, em muitos sítios arqueológicos, de pequenos "cachimbos" de cerâmica). Segundo pesquisas, os Guarani foram responsáveis pela dispersão, no Sul do continente, de várias plantas oriundas da região amazônica.

O declínio dos povos da Tradição Guarani não só na Ilha de Santa Catarina, mas em toda a região Sul, teve como ponto crucial a chegada dos colonizadores europeus, sobretudo por volta do século XVII, quando a ocupação passou a ocorrer com maior frequência. Além de indefesos diante da tecnologia bélica dos invasores, os Guarani sucumbiram também diante de doenças como gripe, varíola, sarampo, malária, tuberculose, tifo, entre outras, que foram responsáveis pela morte de muitos índios. Restou aos Guarani a tentativa de sobreviver em pequenos grupos, mudando frequentemente o local de seus assentamentos.

Passado presente: Índia guarani


Ainda hoje, descendentes dos índios Guarani, vivem na região da Grande Florianópolis. Eles estão em pequenas "áreas indígenas", localizadas às margens da rodovia BR-101, nos municípios de Palhoça e Biguaçu, onde produzem e comercializam peças de artesanatos (cestos de vime, arcos e animais talhados em madeira). Parte do que é produzido também é comercializada nas ruas do centro de Florianópolis.

GONÇALVES, Alexandre et alli. Aventura arqueológica na Ilha de Santa Catarina. Florianópolis: Lagoa Editora, 2003. p. 12-14.

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Tradição Itararé

Apontados como os primeiros habitantes da Ilha de Santa Catarina, os Pescadores, Caçadores e Coletores deixaram como testemunho de seus assentamentos os sambaquis, montes formados por conchas e que serviam para sua moradia e proteção. Para tanto, escolhiam locais próximos do mar, de onde provinha a maior parte de seus alimentos, e de fontes de água doce. Com uma economia baseada na pesca, caça e coleta, estima-se que esses grupos utilizavam instrumentos de pedra polida e/ou lascada, como machados, batedores de alimentos, além de confeccionarem zoólitos (representações de animais em pedra) e outros adereços.

* Tradição Itararé. Não há dados concretos em torno da chegada dos grupos da Tradição Itararé do planalto, sua região de origem, à Ilha de Santa Catarina. Estima-se, porém, que seus primeiros vestígios no litoral tenham surgido por volta de dois mil anos atrás. Nos locais habitados pelos grupos de Tradição Itararé, como a Praia da Tapera, um dos poucos sítios datados, de 1.140 anos atrás, foram detectados os primeiros vestígios de cerâmica, o que se tornou característica principal da presença desse povo.


Tradição Itararé: vasilhame cerâmico

As peças cerâmicas confeccionadas eram, em sua maioria, recipientes para o preparo e consumo de alimentos, com tamanho entre 20 centímetros de diâmetro e 30 centímetros de altura, e paredes de fina espessura com coloração variando do laranja ao cinza-escuro, raramente decoradas. Além disso, os grupos da Tradição Itararé produziram artefatos líticos (lâminas de machados, alisadores, percutores e tembetás), artefatos ósseos (pontas, furadores, anzóis e vértebras perfuradas) e restos faunísticos (ossos de peixes, mamíferos, aves e répteis e conchas marinhas).

O fato de a cerâmica ser uma forte característica do grupo da Tradição Itararé poderia significar que seus membros praticavam a agricultura como forma de subsistência. No entanto, essa hipótese é descartada por arqueólogos, diante do fato de que os esqueletos dessa tradição não apresentavam cáries, o que indica a ausência de carboidrato na dieta alimentar do grupo. Assim, a alimentação da Tradição Itararé baseava-se, principalmente, na exploração de peixes, complementada com mamíferos terrestres e marinhos, aves e répteis. Eles se alimentavam também, mas em menor escala, de moluscos e crustáceos e, por isso, acumulavam menos conchas em seus assentamentos, diferentemente dos Pescadores, Caçadores e Coletores, em cujo local de habitação havia a predominância desse rejeito, elemento marcante na formação dos sambaquis.

Alguns autores, segundo a arqueóloga Maria Madalena do Amaral, tendem a relacionar os grupos de Tradição Itararé aos Jês do Sul. "Os grupos de Tradição Itararé seriam os ascendentes pré-coloniais dos grupos historicamente conhecidos como Kaingang e Xokleng por causa da semelhança da produção cerâmica, tanto no que se refere ao processo de manufatura quanto às formas dos vasilhames", explica a arqueóloga.

GONÇALVES, Alexandre et alli. Aventura arqueológica na Ilha de Santa Catarina. Florianópolis: Lagoa Editora, 2003. p. 10 e 12.