"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

A questão do "outro". Escravidão indígena e africana. Resistências

Relevo do templo de Abu Simbel representando negros e asiáticos prisioneiros do faraó Ramsés II

O preconceito é tão antigo quanto a humanidade. Documentos do Egito antigo relatam, por exemplo, que no reinado de Snefru, da IV Dinastia, por volta de 2680 a.C., o faraó viu suas tropas regressarem com 7 mil prisioneiros oriundos da Núbia, os quais passaram a ser escravizados. O número de escravos era relativamente pequeno e, embora não haja documentação que comprove que a escravidão era resultante do racismo - como existiu na história moderna -, havia tensão, e o "estrangeiro" era visto com reservas. A sociedade egípcia via seu país como a terra dos deuses e nutria certo desprezo por outras terras.

Já na Grécia antiga cunhou-se o vocábulo "bárbaro" para se referir ao outro. Heródoto de Halicarnasso, considerado o "Pai da História", que viveu no século V a.C., ao relatar o conflito entre gregos e persas, estabeleceu uma distinção muito clara: os gregos eram homens livres, enquanto os persas eram escravos, pois tinham de se submeter a uma autoridade despótica. Entre os gregos, Heródoto via a organização, a ordem e a racionalidade; por outro lado, para ele, os persas representavam a desorganização, o caos e o mistiscismo. A pesquisa histórica, porém, revela-nos que na sociedade grega havia a escravização de gregos, que, mesmo em Atenas, a democracia era para poucos (escravos, mulheres e estrangeiros estavam alijados do processo); que Esparta tinha um governo oligárquico e totalitário e que na maioria das cidades gregas predominavam regimes tirânicos. Quanto ao imperialismo persa, em comparação com outros regimes imperialistas da Antiguidade, caracterizou-se por certa "tolerância" para com os vencidos. Isso não significa que entre os persas não tenha havido preconceito, mas revela que toda colocação maniqueísta peca por suas limitações.

A exemplo dos gregos, na Roma antiga os cidadãos também se consideravam superiores aos outros povos. Nas regiões conquistadas, procuraram difundir a romanização. Não eram, contudo, inflexíveis, pois muitas vezes incorporaram aspectos culturais dos povos vencidos. Em relação à Grécia, por exemplo, os romanos a conquistaram pelas armas, porém foram profundamente influenciados pela cultura helenística.

É importante destacar que, no mundo clássico, pessoas de qualquer etnia, condição social, nível intelectual ou credo religioso podiam ser escravizadas. Na Roma Imperial, por exemplo, era possível encontrar-se entre os escravos um médico grego, um gladiador originário da Arábia, uma prostituta germânica ou uma dançarina africana. Não havia na escravidão o componente étnico que se tornou dominante no mundo moderno.

Na Idade Média, no mundo europeu, ser cristão era essencial para ter direitos mínimos. Os judeus eram segregados, tendo de viver em bairros separados e usar sinais distintivos. Na França de Luís XI (1214-1270), que foi canonizado pela Igreja, tornando-se São Luís, o símbolo dos judeus era uma estrela amarela, que reapareceu na Alemanha nazista (1933-1945).

Os que postulavam concepções que não se coadunavam com os dogmas da Igreja eram chamados de heréticos. Para combatê-los, foi criada a Inquisição, que funcionou em países católicos até o começo do século XIX. Os pagãos eram discriminados e perseguidos. O imperador Carlos Magno (742-814), por exemplo, monarca muito religioso, mandou executar 500 guerreiros saxões, porque estes não queriam se converter ao catolicismo, considerado por ele como a "verdadeira fé". Os eslavos foram tratados com extrema violência, especialmente pelos Cavaleiros Teutônicos, ordem de monges cavaleiros existente na Idade Média.

Na Idade Moderna, com a conquista da América, os povos nativos foram dominados econômica, política e culturalmente. Suas terras foram tomadas, seu modo de vida alterado e sua cultura, desprezada. Espanhóis, portugueses, franceses, holandeses e ingleses consideravam-se proprietários de uma terra onde já moravam outros povos. Para isso, fizeram uso da força para subjugar e destruir os povos originários. Os colonizadores buscavam riquezas, pouco se importando com os povos que ali viviam. Por dominarem determinadas técnicas, acreditavam que a civilização que representavam era superior. No plano da religião, por exemplo, os membros da Igreja Católica consideravam que deveriam "salvar a alma dos indígenas", sem, contudo, entender que esses povos já tinham suas próprias crenças e práticas religiosas. Os europeus que chegaram à América se horrorizavam com práticas como os da religião asteca, que exigia o sacrifício de pessoas ao deus da guerra (Uitzilopchtli), bem como os hábitos dos tupinambás e outros povos, que praticavam o canibalismo, ou ainda os costumes dos maias, que eram ferozes guerreiros. No entanto, não reconheciam intolerâncias presentes em sua própria religião como as praticadas pela Inquisição espanhola (queimando "hereges, judaizantes, sodomitas e bruxas" em concorridos autos de fé), ou durante as guerras religiosas que ensanguentavam a França, culminando, por exemplo, no massacre de huguenotes na "Noite de São Bartolomeu" (24 de agosto de 1572). Como você pode perceber, a cultura europeia não era nem superior nem inferior à dos ameríndios, era apenas diferente.

O que caracteriza todos esses exemplos citados é o desprezo ao outro.

No território que os europeus convencionaram chamar de Brasil, nações inteiras desapareceram em virtude da escravização, guerras e doenças. Contudo, houve resistência ao longo de toda a nossa história. No século XVI, a Confederação dos Tamoios colocou em xeque a dominação portuguesa de uma ampla região que corresponde mais ou menos aos atuais estados de São Paulo e do Rio de Janeiro. No século XVII, no Nordeste, ocorreu aquela que os portugueses chamaram de "Guerra dos Bárbaros", que na verdade foi uma guerra de resistência efetivada pelos nativos, pois o colonizador português avançava sobre suas terras.

Fazendo uso de um velho conceito jurídico de que existem guerras justas, a ação dos colonizadores nessa guerra, que objetivava submeter esses povos considerados por ele como de "hábitos abomináveis, cruéis e bárbaros", foi justificada como sendo uma guerra justa. No início do conflito, por serem mais numerosos e conhecerem o território, os "tapuias" tiveram vantagens em sua resistência. Porém, após o final do século XVII, com a adoção de um comando único e da política da terra arrasada, com a escravização e a degola dos rebeldes, os rumos da guerra mudaram e os indígenas foram vencidos.

A resistência dos povos que viviam na América antes da chegada dos portugueses ocorreu em todos os períodos da história do Brasil. [...]

Em todos os períodos da história do Brasil [...] os indígenas foram desrespeitados no direito à vida e à liberdade. Em muitos conflitos, a tônica foi a posse da terra, pois, ao expulsar ou matar os grupos indígenas, europeus e seus descendentes poderiam usufruir desse pedaço de chão sem resistências. Isso ocorreu em todo o território que hoje forma o Brasil. Podem ser citados vários exemplos, como o dos imigrantes que, ao chegarem à região Sul do país, foram autorizados pelo imperador a dizimar as populações nativas e se apossar das terras para colonizá-las e fazê-las produzir. Há indícios de armas biológicas, que nesse caso eram roupas infectadas com varíola presenteadas aos indígenas.

A questão das terras indígenas só foi mais bem regulamentada na Constituição de 1988, mas, apesar dos avanços, ainda hoje encontramos diversos problemas em relação à posse efetiva dessas terras. A liberdade de viver dentro de seus costumes e de possuir sua terra finalmente está sendo reconhecida, pelo menos em âmbito jurídico.

[...] Embora ainda ocorram invasões e arbitrariedades, os indígenas têm se organizado e lutado pelos seus direitos.

[...]

No caso específico da escravização de africanos, fenômeno que marcou a história brasileira, ela ocorreu desde a Antiguidade. Egípcios, assírios, babilônicos, persas, gregos, romanos, cartagineses, bizantinos, árabes e outros povos já faziam incursões pelo continente em busca de cativos. Os diversos impérios africanos também faziam uso do trabalho de escravizados. Porém, foi com o tráfico atlântico que a escravidão ganhou os contornos que a caracterizaram a partir do século XVI. [...] Do século XVI ao XIX, mais de 12,5 milhões de africanos foram trazidos para a América. Desses, cerca de 4,9 milhões vieram para as terras que hoje formam o Brasil, ou seja, mais de 45% do total de escravizados foram trazidos para o nosso país.

O apogeu do tráfico de escravos ocorreu em meados do século XVIII. Porém já no final desse século começou a decadência, em virtude da Revolução Francesa (1789) e da Revolução Haitiana. No Brasil, o tráfico só foi formalmente proibido em 1850, e em 1888 foi abolida a escravatura.

Mas, afinal o que significava ser escravizado?

"A escravidão era uma forma de exploração. Suas características específicas incluíam a ideia de que os escravos eram uma propriedade, que eles eram estrangeiros, alienados pela origem ou dos quais, por sanções jurídicas ou outras, se retirara a herança social que lhes coubera ao nascer; que a coerção podia ser usada à vontade; que a sua força de trabalho estava à completa disposição de um senhor; que eles não tinham direito à sua própria sexualidade e, por extensão, às suas próprias capacidades reprodutivas, e que a condição de escravo era herdada, a não ser que fosse tomada alguma medida para modificar essa situação (caso do Brasil com a Lei do Ventre Livre de 1871).

Enquanto propriedade, os escravos eram bens móveis; o que significa dizer que eles podiam ser comprados e vendidos. Os escravos pertenciam aos seus senhores, que, pelo menos teoricamente, tinham total poder sobre eles. Instituições religiosas, unidade de parentesco e outros grupos na mesma sociedade não protegiam os escravos perante a lei, ainda que o fato de os escravos serem também seres humanos fosse algumas vezes reconhecido. Por serem bens móveis, os escravos podiam ser tratados como mercadorias, e muitas vezes eram colocadas restrições à venda de escravos, desde que houvesse algum grau de aculturação. Essas restrições podiam ser puramente morais, como eram nas Américas, onde pelo menos teoricamente era considerado errado separar famílias quando as vendas estivessem acontecendo, embora na realidade os proprietários de escravos fizessem o que bem entendessem." (LOVEJOY, Paul. A escravidão na África: uma história de suas transformações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. p. 29-30)

Os escravizados adotaram várias formas de resistência, das quais sem dúvida a mais comum era a fuga, daí a formação de quilombos em praticamente todo o território nacional. O Quilombo dos Palmares, na Serra da Barriga, atual estado de Alagoas, durante o século XVII, é o exemplo mais conhecido. A data de 20 de novembro, que marca a morte de Zumbi, principal líder de Palmares, foi adotada para a comemoração do Dia Nacional da Consciência Negra, instituído em 2003. A Constituição de 1988, no artigo 68 das Disposições Constitucionais Transitórias estabelece: "Aos remanescentes das comunidades de quilombo que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhe os títulos respectivos".

Sem dúvida a pior herança que a escravidão deixou no Brasil foi o racismo. Um racismo nem sempre explícito, o que levou alguns mais ufanistas a proclamar que em nosso país havia uma "democracia racial". O racismo dissimulado e outras vezes não tão dissimulado assim esteve presente - e infelizmente ainda está - em nossas relações sociais.

Juridicamente, o racismo é crime no Brasil desde a Lei Afonso Arinos de 1951. A Constituição de 1988, em seu artigo 5 inciso XLII, passou a considerar a prática do racismo crime inafiançável e imprescritível. Apesar do rigor da lei, as condenações têm sido raras, conforme revela uma pesquisa efetuada pelo Núcleo de Direito da Democracia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e pelo curso de Direito da Fundação Getúlio Vargas.

[...]

Em maio de 2003, o governo federal criou a Secretaria Especial de promoção de Políticas para a Igualdade Racial, que tem procurado desenvolver políticas públicas visando reparar desníveis sociais por meio de ações afirmativas compensatórias. Um exemplo dessas políticas é o estabelecimento de cotas para a entrada de afrodescendentes nas universidades públicas.

MOCELLIN, Renato; CAMARGO, Rosiane de. História em debate. São Paulo: Editora do Brasil, 2010. v. 3. p. 271-278.

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