"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 24 de setembro de 2011

Brasil: a sociedade colonial

Engenho de açúcar pernambucano do século XIX, Henry Koster


Texto 1. A sociedade colonial brasileira sofreu poucas modificações estruturais ao longo dos seus trezentos anos.

Quais as razões dessa imutabilidade?

Nesse largo período a forma de produção da riqueza da sociedade como um todo manteve-se baseada no trabalho escravo. Em outras palavras, as condições sociais foram determinadas pela forma de trabalho, que praticamente não se modificou até a segunda metade do século XIX.

* A vida no engenho. O engenho estava localizado na zona litorânea. Era ali que se passava toda a vida da colônia. O proprietário, senhor de engenho, era a autoridade máxima, pois detinha poder praticamente absoluto sobre todos os moradores da sua propriedade. Todos se submetiam à sua autoridade, inclusive os poucos homens livres, como os mascates (vendedores ambulantes), pois o engenho era o seu grande comprador.

Outros homens livres que também integravam a sociedade colonial eram os lavradores que produziam cana-de-açúcar em terras arrendadas pelos senhores. Esses lavradores, apesar de dependentes dos senhores, chegavam também a possuir escravos.

A camada dominante da sociedade colonial repudiava o trabalho manual, atividade quase exclusiva de escravos. O cronista Luís Vilhena comenta essa atitude num texto do começo do século XIX:

"Por que não há de cavar no Brasil aquele que em Portugal só vivia de sua enxada? [...] Por que há de querer mandar quem nada mais sabe que obedecer? Por que há de ostentar de nobre quem sempre foi plebeu?"

- A casa grande. Nas terras do engenho, o senhor mandava erguer um solar para a sua moradia. Era a chamada casa-grande. Na casa-grande o senhor estabelecia com os outros membros da família e demais moradores ligados ao engenho uma relação patriarcal. O pátrio poder, isto é, o poder dos senhores patriarcais, era ilimitado, caracterizando uma verdadeira tirania. Tudo era decidido por ele, o senhor de engenho, que tinha no seu primogênito o único herdeiro desse poder.

Os homens livres que viviam nas dependências e imediações da casa-grande eram os agregados. Sem papel muito definido na sociedade colonial, sua relação de subordinação ao senhor era uma garantia de sobrevivência.

Por não ter nenhuma herança de sangue, que caracterizava a nobreza europeia, os senhores e suas famílias ostentavam um luxo que muitas vezes não condizia com suas condições econômicas. Era uma forma de manter uma posição de destaque nessa sociedade.

Os escravos domésticos, que viviam em dependências secundárias da casa-grande, eram as mucamas (jovens escravas), criados, moleques de recado etc. As mulheres dos senhores de engenho, quando saíam, faziam-se acompanhar de um pequeno séquito de escravos e costumavam portar jóias para ostentar riqueza.


"A vida sexual era marcada por dois extremos: as mulheres brancas ensinadas a pensar o ato sexual com seus maridos não como fonte de prazer, mas sim uma obrigação matrimonial com o objetivo direto e claro de geração de filhos, enquanto as negras, fontes de uma eterna mística que lhes adjetivava atributos de sensualidade e perversão aguçadores dos desejos dos brancos, eram utilizadas como objetos de prazer para o senhor e seus filhos, dando origem a uma mentalidade permissiva à violência sexual contra as mulheres originárias das classes trabalhadoras, ainda hoje forte no Brasil." (AQUINO, Rubim Santos Leão de et all. Sociedade brasileira: uma história através dos movimentos sociais. Rio de Janeiro: Record, 2008. p. 131.)


- A senzala. Num barracão próximo à casa-grande, localizava-se a moradia dos negros escravizados, a senzala. Na senzala os negros dormiam amontoados e sofriam os mais variados maus-tratos. A humilhação e o castigo corporal tinham por objetivo destruir a identidade e a personalidade dos negros, facilitando assim a sua submissão e o aproveitamento máximo da sua força de trabalho.

O açoite pretendia fazer com que o negro se auto-representasse como vadio, traiçoeiro, maldoso e que, portanto, merecia o castigo. Isso tudo era enfatizado pelas diferenças raciais, em que a cor da pele estabelecia uma rígida hierarquia na sociedade: o branco era o superior, logo abaixo vinha o moreno, que era melhor que o mulato; em último lugar estava o negro, que era inferior a todos.


Feitor castigando escravo, Jean-Baptiste Debret


"[...] o mundo da senzala era o da exclusão. Impedidos de constituírem família, isolados de seus laços tribais e de parentesco, os escravos acabavam por perder suas estruturas familiares e mesmo culturais. [...]" (AQUINO, Rubim Santos Leão de et all. Sociedade brasileira: uma história através dos movimentos sociais. Rio de Janeiro: Record, 2008. p. 131.)

Essa situação de inferioridade a que os homens relegavam os negros era reforçada pela ideia negativa que se tinha das atividades manuais. De modo geral, quem sofria mais com esse tipo de discriminação eram os escravos do eito, isto é, os que trabalhavam direto na lavoura.

* Violência e resistência. Uma das formas de resistência à escravidão mais empregada pelos negros era a fuga. Ou fugiam sozinhos, correndo o risco de ter em seu encalço os capitães-do-mato - jagunços treinados na perseguição aos fugitivos -, ou fugiam em grupos. Esta última forma resultava quase sempre na formação dos quilombos, uma ou mais aldeias localizadas em terrenos de difícil acesso e bastante protegidas.

Nos quilombos os negros tentavam, e quase sempre conseguiam, reconstruir a organização social que tinham na África. Havia dificuldades para tanto, pois quase nunca coincidia de os negros fugidos serem originários de um mesmo grupo étnico. Mas reinava um espírito de sobrevivência e de comunidade. [...]

Outra forma de revolta era a violência pura e simples contra o feitor, que era o responsável pela disciplina. Muitas vezes os negros recorriam ao suicídio como protesto extremo contra a violência dos brancos.


"O negro entra na sociedade brasileira como cultura dominada, esmagada. E as marcas da escravidão persistem no disfarçado preconceito racial e na situação miserável da maioria dos negros em nossa sociedade. Não se pode pensar em Brasil sem levar em conta toda essa história". (ALENCAR, Chico et all. História da sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1996. p. 33.)

* A capela e a vila. Também a vida religiosa no Brasil colônia se desenvolvia principalmente no interior dos engenhos, em capelas e pequenas igrejas de fé católica. Essas construções tinham uma função social, pois era nas ocasiões de festas religiosas que os membros da sociedade tinham a oportunidade de se encontrar. De modo geral, o clero colonial era subordinado aos interesses dos senhores de engenho.

Com exceção de alguns centros, como Salvador, Recife e Rio de Janeiro, praticamente não havia vida urbana na colônia. As vilas eram centros da administração portuguesa e colonial.

Texto 2. A colonização das terras portuguesas na América exigia a organização de uma economia lucrativa e duradoura. A simples exploração do pau-brasil, apesar de ter se estendido por séculos, não garantia a estabilidade necessária para isso. Assim, o açúcar acabou por se tornar o principal produto da economia colonial até o século XIX, devido inicialmente a diversas condições favoráveis, principalmente no Nordeste, e a uma grande aceitação do produto nos mercados europeus.

Em torno da atividade canavieira desenvolveram-se também a pecuária e o fumo. O gado era fundamental para o transporte e servia como força motriz das máquinas dos engenhos. O tabaco tornara-se um produto importante, já que, na África, era trocado por escravos (escambo).

A África, o continente negro, fornecia um tipo de mercadoria especial. Por séculos, inúmeras embarcações cruzaram o oceano para abastecer o Novo Mundo com africanos, que, com suas vidas e seu trabalho, garantiram a colonização. A plantation, uma estrutura de produção original, lançava suas bases: grandes propriedades com mão-de-obra escrava dedicadas à cultura de um único produto voltado ao mercado externo.

A colonização gerou uma verdadeira civilização do açúcar. Afinal, com o plantio da cana e a proliferação de engenhos, não foram só as paisagens das áreas litorâneas, onde se dava o cultivo, que mudaram. Toda a antiga visão idílica, que apontava semelhanças entre o Novo Mundo e o Paraíso bíblico, foi substituída pelas reflexões e impressões causadas pela escravidão.

Os engenhos não eram apenas fábricas incríveis, mas verdadeiros infernos, com caldeiras que pareciam lagos ferventes, trabalho noturno e gritos desesperados de escravos. Numa melhor posição social, trabalhadores livres desempenhavam funções especializadas. O Brasil preparava-se para ser, segundo a visão de um cronista do período colonial, o inferno dos negros, o purgatório do branco e o paraíso dos mulatos.

Grande parte da América estava integrada ao intenso comércio do Atlântico, que envolvia gêneros tropicais, manufaturas e escravos numa extensa rede mercantil, montada pelas metrópoles europeias, denominada antigo sistema colonial. (CAMPOS, Flávio de; DOLHNIKOFF, Miriam. Atlas História do Brasil. São Paulo: Scipione, 1993. p. 8.)

Interior de uma casa cigana, Jean-Baptiste Debret


Texto 3. A camada dos desclassificados ocupou todo o 'vácuo imenso' que se abriu entre os extremos da escala social, categorias 'nitidamente definidas e entrosadas na obra da colonização'. Ao contrário dos senhores e dos escravos, essa camada não possui estrutura social configurada, caracterizando-se pela fluidez, pela instabilidade, pelo trabalho esporádico, incerto e aleatório. Ocupou as funções que o escravo não podia desempenhar, ou por ser antieconômico desviar mão-de-obra da produção, ou por colocar em risco a condição servil: funções de supervisão (o feitor), de defesa e policiamento (capitão do mato, milícias e ordenanças), e funções complementares à produção (desmatamento, preparo do solo para o plantio). (SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados do ouro. Rio de Janeiro: Graal, 1982. p. 63.)


Referências:

ALENCAR, Chico et all. História da sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1996. p. 33.
AQUINO, Rubim Santos Leão de et all. Sociedade brasileira: uma história através dos movimentos sociais. Rio de Janeiro: Record, 2008. p. 131.
CAMPOS, Flávio de; DOLHNIKOFF, Miriam. Atlas História do Brasil. São Paulo: Scipione, 1993. p. 8
PEDRO, Antonio et all. História da civilização ocidental. São Paulo: FTD, 2005. p. 193-194.
SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados do ouro. Rio de Janeiro: Graal, 1982. p. 63

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