"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 1 de janeiro de 2017

As consequências da grande guerra 1: as subversões sociais

Campo de mortos, Albin Egger-Lienz


"Nós, as civilizações, sabemos agora que somos mortais...”
(Valery)

A guerra teve sobre a ordem social e as relações entre grupos sociais conseqüências incalculáveis, que não se terão exaurido em 1939.

Em primeiro lugar, a guerra criou um tipo social novo: o do ex-combatente. Dezenas de milhões de homens voltam aos lares, marcados por quatro anos de guerra; e, entre eles, estabelece-se uma solidariedade de sentimentos e interesses. Há, doravante, uma mentalidade de “ex-combatente”, feita de altivez, fidelidade à lembrança dos mortos, apego à unidade (unidos como no front) e hostilidade instintiva às divisões partidárias, aos políticos e às instituições parlamentares. É também um poderoso grupo de pressão e até mesmo, em certos casos, uma força política, quando o mal-entendido entre o regime e os antigos combatentes atinge certo grau de gravidade.

Do social passamos então ao político. Na França, várias ligas recrutam partidários entre os ex-combatentes: é o caso, por exemplo, das Cruzes-de-Fogo (Croix-de-feu). Na Alemanha, o Capacete de Aço, os ex-combatentes das tropas irregulares, que depois de 1919 prosseguiram numa luta sem esperanças contra os poloneses ou nos países bálticos, e o partido nacional-socialista jogam com a solidariedade dos ex-combatentes. Na Itália, o fascismo também buscará inúmeros adeptos entre os antigos combatentes.

Ao lado dessa conseqüência direta, a guerra e a inflação conjugadas precipitaram evoluções, acentuaram desigualdades ou disparidades na escala social, beneficiaram grupos, prejudicaram outros, acusaram discordâncias e envenenaram relações.

A guerra enriqueceu produtores e intermediários, fabricantes de guerra, comerciantes. É o fenômeno dos novos-ricos, que ocupa um lugar tão proeminente na imprensa e na literatura do após-guerra; toda uma fauna de aproveitadores, muitas vezes improvisados fornecedores de guerra, embora nada os tivesse preparado para fabricar granadas ou sapatões para o exército, e que são os descendentes dos municionários de antanho. Não tem melhor reputação do que seus antepassados: toda a gente embirrava com eles por haverem ganho dinheiro em detrimento dos que se deixavam matar. O sucesso material dessa categoria de industriais de guerra, mercadores que especularam e traficaram, obriga ao reexame das crenças tradicionais na superioridade do trabalho, na virtude da poupança, e abala a estabilidade dos valores que constituíam o decálogo da moral liberal e burguesa do século XIX.

No outro campo, no campo dos empobrecidos, das vítimas da guerra e da inflação, figuram todos os que, tendo rendas fixas, não as puderam reavaliar e sofreram o contragolpe da depreciação monetária. É o caso dos rendeiros, tão numerosos na França, na Bélgica e na Inglaterra no século XIX: muitas pessoas viviam apenas do que lhes rendiam suas parcas propriedades. A mobilização da poupança pelo mecanismo da obrigação bolsista e dos fundos do Estado multiplicara os rendeiros. Atingidos pelos efeitos da depreciação monetária, são vítimas também da bancarrota dos Estados em que tinham confiado e aos quais haviam emprestado suas economias. A Revolução Russa engole os bilhões que a França entregou à Rússia desde 1890 e que eram a contrapartida da aliança militar franco-russa. A caixa otomana já não está em condições de garantir os pagamentos. Na Hungria, na Bulgária, o desmembramento dos Estados e a queda dos regimes arruínam milhões de pequenos poupadores. Calcula-se que há na França cerca de dois milhões de portadores de fundos estrangeiros. Os que, no princípio da guerra, num rasgo de patriotismo, também haviam levado seu ouro ao Estado para garantir os empréstimos e tinham recebido, em troca, simples pedaços de papel, estão agora sem recursos.

Nos países vencidos, a situação dessas categorias sociais é ainda agravada pela revolução política: o caso extremo é o da Rússia, em que elas se acham juridicamente despojadas do seu emprego e das suas rendas. Grande número delas vê-se reduzido a emigrar: o fenômeno da emigração social e política assume certa amplitude. Os russos brancos, às dezenas de milhares, vêm fixar-se nos países da Europa ocidental, que acolhe uma população flutuante de apátridas, desapossados de sua nacionalidade, que não têm nem solicitam a do país que os acolheu, e para os quais é preciso imaginar uma fórmula jurídica nova: a do passaporte Nansen, que lhes dá um estado civil.

Tampouco se poupou o mundo rural: em conjunto, a agricultura foi uma das vítimas da guerra e da inflação. Ao contrário do que acontecerá na Segunda Guerra Mundial, caracterizada pela penúria e pelo mercado negro, os preços dos produtos agrícolas não seguem o ritmo da inflação; os preços dos cereais e dos outros produtos da terra permanecem bem aquém dos preços dos produtos industriais. A guerra acelerou o êxodo rural. As necessidades da indústria de guerra, das manufaturas de armamentos, criaram uma convocação de mão-de-obra; toda uma população desarraigada, arrancada ao seu gênero de vida habitual, à sua aldeia, procura trabalho e alojamento.

A Europa do após-guerra conhece uma grave crise de habitação, mormente nos países em que a derrota acentua o fenômeno; o caso mais típico é o da Áustria, cuja capital, Viena, abriga, sozinha, uma quarta parte da população total do país.

A guerra dissociou as estruturas tradicionais. Acarretou a extensão do trabalho das mulheres, ou melhor, já que a proporção não mudou tanto, a modificação dos setores: a mão-de-obra feminina, até então empregada nas tarefas domésticas, começa a trabalhar nas fábricas.

Todas essas subversões explicam que o fim da guerra tenha dado novo impulso a uma intensa pressão de agitação social. Os anos de 1919 a 1921, ou 1922, conforme os países, são marcados, até entre os vencedores, por uma efervescência de caráter revolucionário. O descontentamento social é atiçado pelo exemplo da revolução russa, revezada, por sua vez, pelas revoluções que afetam a Europa Central, a Hungria, a investida espartacista na Alemanha, as jornadas de insurreição de Berlim e de Munique. A onda de greves que avassala a Europa não poupa país algum; a França vive em 1920 uma situação de greve quase geral, que paralisa os transportes e os grandes setores industriais; a Itália conhece, além disso, uma agitação agrária.

Mercê dessa agitação, a classe operária obtém, de início, algumas conquistas sociais, como o dia de oito horas na França (1919). Mas o movimento, que provoca a profunda inquietação dos ricos e das classes médias, temerosos da bolchevização da Europa, não tarda a abortar. Em toda a parte se teme que os países venham a cair nas mãos do comunismo. Por isso mesmo, a agitação acaba deflagrando um fenômeno de reação contrária.


RÉMOND, René. O Século XX. De 1914 aos nossos dias. São Paulo: Cultrix, 1993. p. 37-40. (Introdução à história de nosso tempo 3).

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