"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Os libertinos. A libertinagem dos costumes (Parte 5)

O acordo perfeito, Jean-Antoine Watteau

Mas o fato de seguir a natureza, de buscar a voluptuosidade, era facilmente interpretado, em muitos, pela sensibilidade barroca como desencadeamento dos instintos, como paixão de uma liberdade infrene, como rejeição de quaisquer limites. As menoridades, as regências, o tempo de Maria de Médicis, o de Ana d'Áustria, são épocas de galanterias escabrosas, de loucas aventuras, em que gentis-homens como o Conde Bellegarde junto de Henrique IV, os Duques de Guise, o Marechal de Roquelaure, dados às emboscadas, aos saques, às violações, aos incêndios, movidos por ásperas paixões, vivem em orgias furiosas, rixas, duelos, bebedeiras e blasfêmias. Jogam, renegam a Deus [...]. É da moda, entre certa juventude, considerar a religião uma trapaça. No sítio de La Rochelle, alguns oficiais zombaram tanto de um de seus companheiros que falara de Deus, que o obrigaram a solicitar licenciamento. O mesmo acontecia durante a Fronda. A irreligião tornava-se notória entre a nobreza que cercava Gastão de Orléans e Condé. Qual o seu número? Mersenne arquejava: "Só em Paris campeiam 50.000 ateus, no mínimo." Boucher, por volta de 1630, deplorava: "um milhão de espíritos perdidos". Gritos de dor, sem valor estatístico. De 1623 a 1625, houve uma verdadeira crise. Em dois anos apareceram o Romance de Francion, a Musa Amalucada, o Gabinete Satírico, o Parnaso dos Poetas Satíricos, a Quintessência Satírica. Os seus temas giravam em torno da equivalência da devoção e da hipocrisia, do direito do prazer triunfar sobre a regra. Estabeleceu-se o pânico. Os devotos acreditaram numa conjuração. "O ateísmo" tornava-se um fato reconhecido, catalogado, uma força a combater.

MOUSNIER, Roland. Os séculos XVI e XVII. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. p. 342. (História geral das civilizações, 9).

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