"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

terça-feira, 18 de outubro de 2016

Harém: a vida entre prazeres e intrigas (Parte 3)

A pérola do mercador, Alfredo Valenzuela Puelma 

Em uma sociedade na qual a origem étnica tinha pouco significado (a diversidade das origens das mulheres o comprovava), na qual o nascimento se desvanecia diante do mérito (os sultões preferiam as escravas às princesas), o harém funcionava como um instrumento de promoção social. Chamar a atenção do senhor, compartilhar seu leito e dar-lhe um herdeiro garantia à feliz eleita um destino excepcional. Assim, não era surpreendente que, por vezes, as famílias oferecessem suas filhas ao grão-turco, na esperança de que elas vivessem "entre diamantes e esplendores", como era a ideia corrente no Cáucaso. Apesar da abolição da escravatura, proclamada no Império Otomano na segunda metade do século XIX, caucasianas continuaram a ingressar por sua própria vontade no harém.

O ponto mais alto dessa pirâmide, apoiada sobre a multidão anônima de escravos do sexo feminino, era ocupado pela sultana valide, a mãe do sultão reinante, título ambicionado entre todos. Ela era a verdadeira senhora do harém. Ela administrava com a ajuda dos eunucos negros, cuidava de suas finanças, organizava festas e cerimônias, enfim, ordenava toda a vida social da instituição.


Kisler Aga, chefe dos eunucos negros e primeiro detentor do Serraglio, Francis Smith

Suntuosamente sustentada por seu filho, ela possuía um patrimônio considerável, que não parava de crescer graças aos presentes oferecidos pelo alto pessoal político do império e também pelos embaixadores estrangeiros. O primeiro ritual que acompanhava a ascensão ao poder do novo sultão consistia em acolher a sua mãe no pátio do palácio e em saudá-la respeitosamente. Tal cerimônia evidenciava a importância da sua posição. Mais ainda, enquanto durasse o reinado de seu filho, a sultana valide via-se tentada a fazer crescer sua autoridade ao se atribuir um importante papel político.

Lugar de prazeres e centro de uma vida cortesã refinada, o harém podia ser também, de acordo com a personalidade ou a idade do monarca, um ninho de intrigas e de tráfico de influência e até mesmo o cenário de dramas sangrentos. A concorrência era brutal entre as mulheres que disputavam os últimos favores do senhor. [...]

A pouca idade ou a mediocridade dos sultões autorizaram as sultanas mães a controlar os assuntos do Estado, à imagem de Kösen Valide, que exerceu o poder de fato durante 30 anos, sob os reinados de seus dois filhos e de seu neto, antes de, por sua vez, vitimada pelas intrigas palacianas, ser estrangulada em 1651 [...]. Clientelismo, luta de clãs, disputas entre os grão-vizires, traições e assassinatos foram algumas das ignomínias que apimentaram a vida no harém,

Por muito tempo esse foi um mundo fechado. Contudo. no início do século XIX, durante o reinado do sultão reformador Mahmud II (1784-1839), concubinas e favoritas obtiveram a autorização de passear pela cidade ou pelos campos próximos para se distrair, desde que devidamente cobertas e acompanhadas por eunucos vigilantes.

Enquanto a evolução dos costumes dificultava a poligamia entre as elites otomanas - apenas uma ínfima minoria dos homens casados de Istambul tinha mais de uma esposa - o harém imperial contava ainda com 370 mulheres reunidas em torno do último grande sultão, Abdulhamid II (1842-1909), em seu novo palácio de Yildiz, às margens do Bósforo.

A revolução dos Jovens Turcos, que eclodiu em 1909, assinalou o fim do harém e a dispersão de suas pensionistas. Algumas ficaram encantadas de imediato com a liberdade reencontrada, enquanto outras, aterrorizadas pelo mundo exterior, do qual haviam estado separadas por tanto tempo, guardaram a nostalgia de um universo protegido.

Jean-François Solnon. Harém, a vida entre prazeres e intrigas. In: Revista História Viva. Ano XI / Nº 123 / p. 49-51.

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