"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 9 de outubro de 2016

Francisco de Bourbon: noivo com rendas (Parte 2)

Parte 2: A rainha dissoluta e o seu marido gay


Retrato do rei Francisco de Bourbon, rei consorte de Espanha por seu matrimônio com a rainha Isabel II de Espanha. Artista desconhecido 

A cerimônia nupcial celebrou-se com grande pompa e circunstância no dia 10 de Outubro de 1846, com Francisco de Assis adornado e enfeitado com as suas melhores vestes e a rainha resplandecendo, vaidosa, nos seus corpulentos dezasseis anos acabados de completar, ambos com um ar de resignação no olhar húmido. O povo de Madrid celebrou como convinha o primeiro casamento de uma rainha desde o de Isabel com Fernando, em 1496, que, para cúmulo, se tinha celebrado em segredo. Nessa noite, depois de terminados os festejos, ouvia-se pelas ruas uma cantoria desafinada e jocosa que descrevia assim o casal real: "Isabelona, tão frescalhona e dom Paquito, tão 'mariquito'".

Dentro do palácio, os protagonistas confirmavam a cançoneta. Francisco de Assis apresentou-se na alcova real com uma camisa tão carregada de bordados e rendas, que provocou o sarcástico comentário que abre a Parte 1. A noite não deu para muito mais e, na manhã seguinte, saíram ambos com forçados sorrisos de circunstância. O passar das semanas, que se transformou em meses, não trouxe qualquer novidade ao ventre da rainha e pela corte começou a correr o rumor que Francisco, para além das suas particulares tendências, também era impotente. Uma criada de quarto ventilou a confidência de o real esposo não ter força no seu... e que o tinha visto a urinar sentado na sanita. O engenho popular não tardou a inventar uma nova rima a esse respeito:

"Paquito adocicado,
De creme parece ser;
Até urina sentado
Tal como uma mulher..."

Apesar de continuar a enfeitar-se, Francisco de Assis tentou manter uma atitude prudente e formal no desempenho do papel de marido real. Também é provável que, de vez em quando, tentasse uma cópula, cujo fruto teria contentado a corte, o povo e talvez a própria interessada. Mas Isabel não tinha nascido para piloto de ensaios e as suas hormonas, em pleno desenvolvimento, pediam-lhe outro tipo de guerra. Lançou-se numa vida cada vez mais libertina, oferecendo o seu corpo adolescente e robusto às alegrias que não encontrava com Francisco. Talvez ele tivesse suportado com alívio esta situação se a rainha tivesse mantido a compostura em público. Contudo, Isabel não só não dissimulava a sua conduta adúltera, como também se permitia censurar o marido, gozando com os seus cornos, a sua impotência e os seus gostos afectados.

Alguns meses depois do casamento, Isabel II tomou por amante o general Francisco Serrano, duque da Torre, ministro da Guerra e herói da guerra carlista. Numa recepção do palácio, Serrano soltou um comentário ofensivo sobre a situação conjugal de Francisco, que não perdoou a Isabel tê-lo aplaudido ruidosamente. A partir deste incidente, quebrou-se a trégua entre ambos, que passaram a ocupar quartos separados. A rainha aproveitou a ocasião para aumentar escandalosamente a lista de amantes, incluindo o seu professor de canto, o compositor de zarzuelas Emilio Arrieta; o sedutor profissional Emilio Marfiori, a quem nomeou conselheiro do reino e ministro do Ultramar; o aristocrático duque de Bedmar e, entre muitos outros, o oficial de engenharia catalão Puig i Moltó, presumível pai de Afonso XII.

A conduta libertina de Isabel trouxe-lhe inevitavelmente problemas com o Vaticano, que chegou a ameaçá-la veladamente com a excomunhão. O assunto sanou-se graças aos bons ofícios do padre Antonio María Claret, confessor da rainha e futuro santo, que utilizou toda a sua influência junto de Pio IX. Isabel  prometeu emendar-se e devolveu à Igreja uma série de propriedades e prerrogativas perdidas com os governos liberais. A Santa Sé estabeleceu uma concordata com Espanha, em 1851, e diz-se que, quando um cardeal recordou ao pontífice a fama da rainha, este concordou sorridente e suspirou enquanto assinava. "Si, puttana; má pia".

TOURNIER, Paul. Os Gays na História. Lisboa: Estampa, 2006. p. 208-9.

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