"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

História e ficção ou a realidade aos sonhos

O poeta Anacreon com suas Musas, Norbert Schrödl

[...] a história e a literatura tiveram uma origem comum nos primórdios remotos da própria linguagem, quando o xamã das comunidades fazia vibrar, com seu canto dançado, toda a memória mítica tribal, armazenada em unidades rítmicas, evocada e revivida em espetaculares coreografias coletivas. O modo pelo qual esse amálgama original vai aos poucos se diferenciando, se decompondo em formas autônomas, pode ser vislumbrado já na evolução das Musas da mitologia grega. De divindades inicialmente associadas à inspiração divina, passaram, depois, a ser sucessivamente identificadas com a memória, a música e a poesia. Só bem mais tarde vieram a ser, cada qual dessas nove divindades, assimiladas a formas artísticas particulares. Desde esse momento, a separação dos modos de elaboração das linguagens se tornou como que um vício crescente da nossa cultura, em consonância com a contínua diferenciação e segregação dentre os grupos de homens no interior da sociedade.

Calíope ensinando Orfeu, Alexandre-Auguste Hirsch
(Musa da Poesia Épica)

Já o próprio Aristóteles, na sua Poética, ressaltava a importância desse desmembramento das formas comunicativas, nele introduzindo entretanto uma notável originalidade, emanada do advento perturbador do discurso leigo na cultura. Afirma ali o filósofo: "Com efeito, não diferem o historiador e o poeta por escreverem verso ou prosa (pois que bem poderiam ser postas em verso as obras de Heródoto, e nem por isso deixariam de ser de história, se fossem em verso o que eram em prosa) - diferem, sim, em que diz um as coisas que sucederam, e o outro as que poderiam suceder".

A Musa Clio, Pierre Mignard
(Musa da História)

[...] Anteriormente, na cultura presidida pelas Musas, o padrão de fundo, envolvendo todas as linguagens, era o mito. Ele tornava toda narrativa histórica numa reedição circular das condições postas nas origens e toda narrativa ficcional num enredo enleado com os temas eternos da mitologia. Sua lei, a da cultura subordinada às Musas, era a da eterna repetição, da imaginação engastada no ritmo, do enlevo pela sedução mística da música, viesse ela da lira de Apolo ou dos tambores e flautas de Dionísio. "Sua voz incansável flui de suas bocas (de Musas) em entonações prazerosas, e essa harmonia enfeitiçadora, na medida em que se difunde, leva sorrisos ao palácio de seu pai (Zeus)...", reza a tradição. O próprio tempo obedecia à cadência irresistível dessa música e a marcha dos eventos se compunha dos desdobramentos contínuos, repetitivos, dessa pulsação cósmica. É por isso que essas deusas cantantes "sabiam tudo o que é, o que foi e o que será..."

Erato e sua lira, John William Godward
(Musa da Poesia Erótica)

Com o advento da cultura leiga, torna-se impossível, justamente, "saber tudo o que é, o que foi e o que será". Em compensação, abre-se uma área virgem na imaginação, onde os homens podem especular sobre o que poderia ter sido. Esse é o privilégio exponencial da literatura em chave leiga, assim como a irredutibilidade das contingências é o preço pago para a instauração da narrativa histórica, como uma prática regida por esse mesmo diapasão leigo. Pode-se dizer que, ao se separarem, uma ficou presa no labirinto do aleatório e a outra se safou liberta, levando nas mãos todas as chaves de portas que não existem.

As Musas: Clio, Euterpe e Thalia, Eustache Le Sueu
(Clio, Musa da História, Euterpe, Musa da Poesia Lírica e Thalia, Musa da Comédia)

Postas assim as coisas, contudo - ao contrário da conclusão a que nos podem induzir as aparências -, a história e a ficção, mais do que definirem diferentes modalidades da linguagem, estabelecem antes diferentes moralidades do discurso. Isso devido ao ativismo ético que se tornou a quintessência das culturas gnósticas, como a nossa, essa compulsão para a ação como recurso compensatório para o desencantamento do mundo e a disciplinação do corpo para o trabalho. Kafka percebeu com cristalina clareza o desequilíbrio desse dilema moral da nossa cultura. "Ninguém se pode dar por satisfeito com o Conhecimento puro e simples, antes devendo esforçar-se por agir de acordo com ele; e como a força para tanto não lhe é de igual modo fornecida, vê-se a criatura na contingência de consumir-se, arriscando-se a mesmo assim não obter a força necessária, conquanto não lhe reste senão essa possibilidade..."

As Musas Melpomene, Erato e Polyhymnia, Eustache Le Sueur
(Melpomene, Musa da Tragédia, Erato, Musa da Poesia Erótica e Polyhymnia, Musa da Poesia Sacra e Geometria)

Há em particular uma parábola de Jorge Luis Borges, denominada "História dos Dois Que Sonharam", que procura ilustrar essas diferentes moralidades, fazendo-as reverberar em sentidos opostos, no âmago de um contexto gnóstico espesso. A ambiguidade se manifesta já nas raízes da narrativa, Borges a atribui como transcrição literal ao historiador árabe El Ixaqui, mas indica ao mesmo tempo que ela provém de uma fonte ficcional, o livro das Mil e uma Noites, no qual ela seria, o que é naturalmente falso, a história correspondente à 351ª noite.

Polyhymnia, Charles Meynier
(Musa da Eloquência)

Trata-se da estranha história de um homem pio e generoso, chamado El Magrebi, que vivia no Cairo. El Magrebi era muito rico, mas também benevolente, o que lhe consumiu toda a fortuna, exceto a casa que herdara do pai. Sonhou então uma noite com um homem gordo, que tirando uma moeda de ouro da boca lhe falou que sua fortuna estaria na cidade de Isfajan, na Pérsia. Acatando a determinação do sonho, El Magrebi enfrentou mil dificuldades e riscos, até chegar à distante Isfajan. Chegou tão exausto que caiu em sono profundo no pátio de uma mesquita. Naquela noite um bando de ladrões atravessou a mesquita para roubar uma casa ao lado. Afugentados pelos moradores e pela polícia noturna porém, eles fugiram passando de novo pela mesquita, onde a polícia encontrou o pobre El Magrebi.

Terpsichore, Giovanni Baglione
(Musa da Dança e do Canto)

Sendo a polícia incapaz de provar sua culpa ou ele incapaz de provar sua inocência, foi espancado quase até a morte, ficando desfalecido por dois dias. Quando acordou, o capitão de polícia lhe perguntou quem era e o que fazia na cidade. Ele contou a história do sonho. O capitão riu até se dobrar e depois lhe disse: "Homem desatinado e ingênuo, três vezes eu sonhei com uma casa na cidade do Cairo e cujo fundo existe um jardim e no jardim um relógio de sol e depois do relógio uma figueira e depois da figueira uma fonte, e debaixo da fonte um tesouro. Não dei o menor crédito a essa mentira. Tu entretanto, filho de uma mula com um demônio, erraste de cidade em cidade guiado apenas pela fé em teu sonho. Que eu não volte a te ver em Isfajan. Toma essas moedas e vai-te".

Thalia, Giovanni Baglione
(Musa da Comédia)

El Magrebi voltou ao Cairo e sob a fonte no jardim da sua casa, que aparecera no sonho do capitão, encontrou o tesouro anunciado, Pode parecer impróprio que a história pessoal de um único homem, que não interferiu no destino dos povos, seja o assunto de um historiador. Mas toda narrativa é atravessada por uma intenção moral. No caso desta, tanto a moralidade da ficção quanto a da historiografia ficam expostas. El Magrebi, o sonhador obstinado, se parece com o fantasma inocente do literato, enquanto o capitão, que ri dos sonhos dos outros e dos seus próprias, insinua as feições do espectro cínico do historiador. Se reparamos, Borges os neutraliza porque é filho dos dois, suas histórias não têm heróis.

Apolo, Deus da Luz, da Eloquência, Poesia e Artes com Urania, Charles Meynier
(Urania, Musa da Astronomia e Astrologia)

Nicolau Sevcenko. História e ficção ou a realidade aos sonhos. In: YASBEK, Mustafa (Org.). Ecos do tempo: histórias da história. São Paulo: Clube do Livro, 1988. p. 149-153.

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