"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Estética no fim do medievo: O luxo e a moda

Blanca Maria Sforza, Giovanni Ambrogio de Predis, cerca de 1493. [Dama medieval com vestuário luxuoso e cabelo trançado.]

Mais ainda do que os pontos de honra, a cupidez provocava muitas brutalidades. Nesta época em que se desmoronavam os rendimentos senhoriais e em que o luxo penetrava cada vez mais as classes abastadas, a vaidade impunha faustosas generosidades testamentários e a liberalidade continuava uma virtude essencial do gentil-homem. Era preciso, portanto, "manter seu estado" a qualquer preço. A inveja e a avareza, tal como a prodigalidade eram "rainhas e senhoras". Todos os serviços eram pagos, a começar pelo militar. "Os homens de armas - escrevia Froissart - não vivem de perdões." Como, por outro lado, esperam de guerra saques e resgates, os cavaleiros convertem-se facilmente em estradiotos. Assim, embora Eustáquio d'Auberchicourt, cujas façanhas Froissart admira, se apodere de uma praça por recreio, para conquistar o amor de sua senhora, já Croquart, enriquecido pela guerra, sobe de pajem a senhor.

Nesta classe nobiliária, onde há muitos recém-chegados, a juventude rica aturde-se no luxo, ridicularizado, contudo, pela sátira burguesa do Contrefait de Renart:

A gente alegre movimenta-se.
Um joga dados, outro se diverte.
Um justa, outro guerreia.
Todos são grandes e gordos.
Não sabem donde lhes vêm os bens.

As extravagâncias da moda, o novo gosto pelos tecidos caros, pelas sedas e vestes forradas não são apanágios de uma classe privilegiada. Logo depois da Grande Peste, afirma o florentino Villani, as "mulheres mais humildes ostentam os vestidos das damas da aristocracia que morreram". Na Inglaterra certas leis suntuárias tentam, em vão, graduar o luxo do vestuário segundo a posição e a fortuna de cada um. A moda masculina inaugurara, logo no início do século XIV, os trajes bipartidos, em que as véstias, os calções e o chapéu eram de cores diferentes do lado direito e do lado esquerdo. Por volta de 1340 acrescentou-se a isso o uso de véstias curtas e justas: só as pessoas sérias, clérigos, magistrados, professores e médicos continuavam fiéis aos trajes compridos. Na segunda metade do século, a camisa de lã fina dá lugar à de pano; as peles raras utilizam-se na confecção de chapéus e no enfeite de certos trajes feitos de tecido mais leve e tintos em cores vivas e variadas, capazes de exprimir os matizes convencionais dos sentimentos. A silhueta das pessoas torna-se estranha: as mulheres puxam os cabelos para trás, a fim de libertar completamente a testa, mas usam na cabeça um hennin alto e pontiagudo, ou um chapéu parecido com o dos astrólogos, ornado com um véu comprido e esvoaçante; o senhor de La Tour-Landry critica os decotes audaciosos, as caudas longas, que é necessário segurar no braço e as cinturas apertadas até o sufocamento. Mais singular ainda é o aparato masculino: ombros falsos almofadados, cintura apertadíssima, véstia justa ao corpo e plissada. Tudo isso dá ao busto uma forma trapezoidal içada numas pernas fragéis, com calções colantes. Calçam sapatos de bico arrebitado - esporões de animais monstruosos, segundo Eustáquio Deschamps. Este traje completa-se com uns chapelões altos ou redondos, de tecido ou pele. A barba, que voltara à moda, com duas pontas "afigadas", desaparece no fim do século; os cabelos compridos e ondulados, no início, são mais tarde cortados em calote circular. João de Condé troça dessa forma de vestir numa composição oportunamente intitulada Do macaco:

Os jovens que agora chegam / apresentam-se fantasiados. / Fazem-se com tecidos diversas medidas, / cortes e aplicações; / e outrora os que vestiam estes tecidos / passavam todos por arautos; / agora, vestem-se grandes e pequenos... / Presentemente entraram na moda / mangas curtas, com um bico à frente, / muito estreitas entre os braços. / E cortam-se os bons tecidos / em faixas e em quartos... / Outros cingem-se tão baixo / que o cinto fica sobre os rins.

Petrarca já vilipendiara estas modas "desonrosas", e Urbano V e Carlos V proscreveram, naturalmente em vão, os sapatos de bico arrebitado. No século XV as coisas ainda se complicaram mais, acumulando-se as joias, os tecidos caros, sobretudo sedas e lamés dourados e prateados. O luxo do guarda-roupa que acentuava ainda mais o contraste entre a fortuna e a miséria das massas, correspondia, entretanto, a uma aspiração comum aos homens desse tempo por uma vida melhor, em busca de uma certa forma de beleza de que a literatura e a arte representam, melhor do que as excentricidades da moda, os movimentos mais autênticos.

PERROY, Édouard. A Idade Média: o período da Europa feudal, do Islã turco e da Ásia Mongólica (séculos XI-XIII). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994. p. 303-305. (História geral das civilizações, 7).

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