"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 6 de julho de 2014

Influência da América sobre a Europa

Da América chegaram à Europa diversas plantas novas, que deviam contribuir para transformar a civilização européia, o milho, a batata, o feijão, que, até meados do século XIX, foi o único legume que na Europa nunca sofreu os ataques de praga, pois sua larva não o acompanhara na travessia do Atlântico, o morando graúdo, o tomate, a quina, o amendoim, que se desenvolveu em seguida na África tropical, a coca e finalmente um narcótico leve, o tabaco. Já no século XVII, entre seus intoxicados, gozava o tabaco a fama de afastar as preocupações, de franquear os condutos e facilitar a circulação dos humores, de preservar dos resfriados, de desopilar o baço etc. Em muitos países era um monopólio do Estado e fonte de apreciável recurso fiscal.

Pipestone Quarries, Catlin

Sobretudo, a América alterou profundamente a vida européia com seus metais preciosos e sua repartição, por meio do grande comércio marítimo, entre as sociedades européias ainda apoiadas sobretudo na terra e na agricultura. [...] Lembremos simplesmente que, por sua influência sobre o movimento dos preços, os metais preciosos da América ritmavam toda a vida econômica, social, política e, por intermédio desta, toda a vida intelectual e religiosa da Europa nos séculos XVI e XVII. Toda a vida da Europa ficou em função da atividade das minas da América.

O conhecimento dos índios americanos apenas lentamente difundiu-se e influiu no pensamento. Tomemos o exemplo da França. Inicialmente, os homens do século XVI estavam mal informados a respeito das descobertas. Informações orais chegam com a volta das expedições. Apresentavam um caráter prático, acima de tudo, e não ultrapassavam o setor das cidades litorâneas. Para além recebiam-se apenas vagos rumores. Maior influência tiveram os índios que todos os capitães, nomeadamente, desde 1504, Jacques Cartier e Villegaignon, levaram consigo para provar a veracidade de seus relatos. Em 1550, na festa brasileira dada por ocasião da entrada de Henrique II em Ruão, figuravam 50 Tupinambás e 250 marinheiros capazes de representar o papel de selvagens. Em 1557, Henrique II distribuiu, aos grãos-senhores, indígenas enviados por Villegaignon. Em 1562, em Ruão, três Tupis-Guaranis foram presenteados a Carlos IX. Montaigne tentou conversar com eles por meio de um intérprete. Em 1564, quando da entrada do rei em Troyes, figuravam no desfile os representantes de diferentes nações selvagens. Muitos índios ficaram na França, integraram-se na civilização cristã pelo batismo, na sociedade mediante o casamento. O filho do Rei Arosca, o brasileiro Essonerico, fixou-se na Normandia, herdou o nome, títulos e parte dos bens de seu padrinho Binot Paulmier de Gonneville. Tais fatos provam a aptidão intelectual dos índios para assimilar a civilização européia e testemunham a favor da unidade da espécie humana e de seu futuro. Isto não significa que, se os índios viessem em grande número, a sociedade branca deixaria de ter reflexos de defesa contra estes concorrentes às herdeiras, às terras e títulos, e que esta mesma sociedade não segregasse as raças. De qualquer maneira, estes índios divulgavam certo conhecimento relativo à sua região de origem.

Narrativas de viagem aparecem a partir de 1515. Mas não permitem distinguir claramente que se tratava de um continente novo e as assertivas pareciam confirmar, para o leitor, as narrativas da Idade Média. Jacques Cartier, provavelmente, sem se dar conta disso, sugeriu a Donnacona as afirmativas deste sobre as pessoas que não comem, só têm uma perna e voam de árvore em árvore. Em 1575, o cosmógrafo Thevet declarava que, na América do Sul, havia homens que atingiam 12 a 15 pés de altura. Descrevia, baseado nos companheiros de Magalhães, um animal com cara de criança que apenas se alimentava de vento. E chegava a afirmar ter possuído um destes animais, durante um mês. Tais relatos não exerceram qualquer influência sobre os escritores. O público preferia as lendas medievais ou as descrições do Império Turco e das Índias Orientais. Publicou-se o dobro das obras e dez vezes mais brochuras sobre os turcos, que então ameaçavam a Europa e a cristandade, do que sobre a América.

Os franceses interessaram-se mais pela América quando os projetos de Coligny a fizeram entrar nas lutas religiosas. Mas procuravam nela menos conhecimentos do que material para polêmica e continuaram a interessar-se ainda mais pelo Império Turco e pela Ásia. Entre 1580 e 1609, editam-se 80 brochuras sobre os turcos, 100 sobre os demais asiáticos e 40 sobre a América. Não obstante, as cartas de Nicolas Barre, companheiro de Villegaignon (1556), as obras do franciscano André Thevet (1557-1584), a Viagem, publicada em 1578, do pastor Jean de Léry, que se demorou dez meses na Ilha dos Franceses em 1557-1558, vulgarizaram as informações dadas pelos intérpretes, 20 a 25 franceses que haviam adotado os costumes indígenas e os apresentavam de maneira favorável. Obnubilados pela lenda da idade do ouro, desejosos de dar uma lição a seus compatriotas considerados maus cristãos, os humanistas buscaram nestes escritos, nos de Las Casas e de sua progenitura espiritual, nas conversas, falseadas pelos intérpretes, que puderam manter com os índios levados à França, os elementos da lenda do “bom selvagem”.

Montaigne é o mais notável desses autores. No capítulo “Do Costume”, utiliza os selvagens para mostrar as contradições humanas, escarnecer da família, da propriedade e da religião, declarar os costumes e a moral como outros tantos preconceitos. Recusa-se a ver que não existem contradições, mas simplesmente reações naturais a situações diferentes.

No “Dos Canibais”, declara a sociedade selvagem como a mais pura, por haver permanecido mais próxima das leis naturais. Escreve que os índios não se servem de vinho, que não praticam o comércio, que são dados ao ócio, que dançam para se distrair, que suas guerras são desinteressadas e empreendidas com o objetivo de conquistar glória. Esquece, é claro, sua tendência à embriaguez, sua sodomia, é indulgente para com seus incestos e desculpa sua antropofagia institucional, sob o fundamento de que os europeus, levados pela paixão, chegaram a queimar vivos os seus inimigos. Para ele, os selvagens deveriam servir-nos de modelos: nós é que somos os bárbaros.

O “bom selvagem”, este personagem mítico, que vive em liberdade, seguindo sua natureza, guiado por seu prazer, ocioso, despreocupado inocente, sem malícia, sem propriedade, sem governo, alegre, feliz, estava destinado a uma espantosa fortuna. Caber-lhe-ia abrir caminho para os libertinos Pierre Charron, La Mothe Le Vayer, contribuir para o abalo dos espíritos e para a crise do século XVII, inspirar em seguida os “filósofos” e os anticolonialistas do século XVIII, para triunfar com Jean-Jacques Rousseau. A corrente de ideias provenientes da América contribuiria para orientar a civilização européia, movida pelo ouro e pela prata americanos.


MOUSNIER, Roland. Os séculos XVI e XVII: a Europa e o mundo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. p. 141-144. (História geral das civilizações, v. 10)

NOTA: O texto "Influência da América sobre a Europa" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

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