"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Os toltecas e chichimecas

Os toltecas, tribos nahuas do norte, penetraram  na Mesoamérica e construíram, no ano 908, um Estado que tinha por capital Colhuacán. Depois de um agitado período de convulsões internas, após o assassinato do soberano Mixcáatl (947), seu filho Topiltzin é confirmado como novo rei-sacerdote, estabelecendo-se na cidade de Tula, ou "cidade das canas", adotando o título de Quetzalcoatl.


Os atlantes de Tula
Foto: Cesarth

Topiltzin-Quetzalcoatl assumiu a tarefa de levar ao seu povo os princípios clássicos da civilização teotihuacana. Melhorou os costumes guerreiros de seu povo, reformou a religião, eliminando ritos sangrentos, e aumentou a produção agrícola da região. Nessa tarefa enfrentou os adoradores da antiga divindade tolteca, Tezcatlipoca.

A luta que se estabeleceu, segundo a tradição, entre o novo e o velho terminou com a vitória desse último grupo. O jovem rei se dirigiu para a península de Yucatán (região maia), onde o encontramos com o nome de Kukulcán. Foi o introdutor das ideias teotihuacanas entre os maias, um grande reformador dos costumes e da organização sócio-econômica e política [...].

Em 1194, o Estado tolteca estava chegando ao fim, debilitado por lutas internas e pela destruição de Tula, conseguida por uma nova invasão de tribos nahuas. Chamados "os artífices" ou "os civilizados" pelos astecas, os toltecas introduziram os metais na Mesoamérica. Quase todos os deuses da Confederação Asteca fizeram aqui sua aparição.

Com a destruição de Tula e a desarticulação do Estado tolteca provocada pela invasão de tribos nahuas chichimecas, começou na Mesoamérica um período de instabilidade que durou aproximadamente 250 anos, só terminando com a presença dos astecas.

Seguir a história das invasões chichimecas é seguir a história de cada tribo, de cada cidade destruída, dos múltiplos e efêmeros Estados que se destruíram mutuamente. Tomemos um exemplo do final do período. Em 1348 a cidade chichimeca de Atzacapotzalco, no vale do México, destruiu a cidade rival de Colhuacán, da tribo colhuas, uma das quais é sua antiga tributária, Tenochititlán, capital dos astecas, da tribo mexica.

PEREGALLI, Enrique. A América que os europeus encontraram. São Paulo: Atual, 2011. p. 21-22.

NOTA: O texto "Os toltecas e chichimecas" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Quetzalcoatl

Qual é a mensagem de Quetzalcoatl? Sua história é a busca incansável da realização humana. Quetzalcoatl não é um deus que desce à terra para salvar os homens nem um deus que outorga favores. Quetzalcoatl é um fim, o fim do aperfeiçoamento interior, é um homem que se transforma em deus após conseguir libertar-se do condicionamento da matéria. Ao transformar-se, mostra aos demais homens o caminho dessa transfiguração.


Quetzalcoatl

Seu pensamento considera imprescindível escapar da determinação da matéria. Como? Libertando as faculdades criadoras do homem e não as destrutivas. A libertação se efetua sobre a natureza, considerada objeto do trabalho humano, trabalho criativo que a transforma em cerâmicas, esculturas, murais, etc. A cerâmica teotihuacana é caracterizada por uma infinidade de pequenas estátuas de homens em suas atividades transformadoras da natureza. De igual forma, os conjuntos arquitetônicos da cidade tinham essa mesma finalidade. Quanto aos sacerdotes de Quetzalcoatl, estavam submetidos a uma severa austeridade, possuindo um ritual que implicava uma espécie de "comunhão", "confissão dos pecados" e cremação dos corpos para alcançar a imortalidade, parecido ao ritual cristão.

PEREGALLI, Enrique. A América que os europeus encontraram. São Paulo: Atual, 2011. p. 20-21.

NOTA: O texto "Quetzalcoatl" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Mineração e demografia na América Colonial

...os fazendeiros, donos de lojas, proprietários de estâncias e compradores de gado costumam vender seus trabalhadores juntamente com as propriedades. - O quê? Esses trabalhadores indígenas e empregados são livres ou escravos? - Não importa. Pertencem à fazenda e devem continuar nela a servir. Este indígena é propriedade do meu senhor.

Jerónimo de Mendieta. História eclesiástica indiana, 1595-1596.

[...]

Os espanhóis que buscaram o Novo Mundo deixaram atrás de si uma sociedade caracterizada por aristocratas rurais, uma pequena burocracia, reduzidos centros urbanos e uma grande massa de camponeses e trabalhadores rurais. Seu procedimento lógico foi a recusa à criação de fazendas familiares em um mundo colonial que já dispunha de vastas extensões de terra e amplos contingentes de agricultores ameríndios, habilidosos e subservientes - terras e mão-de-obra que se constituíram em presas de guerra. Passaram imediatamente a exigir o acesso à mão-de-obra e aos suprimentos de víveres. Em síntese, passaram à exploração das populações indígenas, colocando-as como vassalos da monarquia espanhola. Os indígenas aravam, semeavam e procediam à colheita nas terras dos novos senhores espanhóis. Inexistindo animais de carga, carregadores indígenas eram compelidos, aos milhares, a transportar às costas as mercadorias entre as diversas regiões.

As consequências imediatas da conquista e ocupação das áreas mais densamente povoadas da civilização ameríndia foram desastrosas. O somatório de doenças epidêmicas (varíola, sarampo, febre tifóide), superexploração do trabalho e debilitação física resultante, choque cultural induzido pela remodelação de uma sociedade comunal em termos individualistas e orientados para o lucro, acabou por produzir, no século XVI (e no início do XVII) um dos declínios demográficos mais desastrosas jamais registrados pela história mundial. Entre 1492 e 1550, a conquista literalmente aniquilara a população indígena caribenha, a primeira a ser submetida e dizimada. No México central, uma população de aproximadamente 25 milhões, em 1519 (segundo cálculos recentes) achava-se reduzida a pouco mais de 1 milhão em 1605. Nos Andes centrais - para os quais dispomos de poucos estudos de história demográfica - parecem ter-se repetido os mesmos padrões gerais de destruição geográfica decorrente da ocupação espanhola. Um contingente populacional calculado entre 3,5 e 6 milhões (em 1525) foi reduzido para 1,5 milhão (por volta de 1561) somente retornando ao índice de 6 milhões cerca de 1754. O choque cultural (ao longo do século XVI), a corveia ou a mita (ao longo desse e do século seguinte), a escravidão por dívidas (no século XVIII) constituem a sequência de fatores geralmente aceita como explicação para o declínio da população ameríndia.

A destruição demográfica na América tornou-se, sem sombra de dúvida, fator de fundamental importância na recessão da atividade mineira desenvolvida no México, e no Peru após 1596 e que perdurou, no México, por cerca de 100 anos. A produção mineira decaiu constantemente e suas repercussões fizeram-se sentir nas grandes propriedades fundiárias, próximas ou distantes, que se haviam desenvolvido em torno dos enclaves mineiros, voltadas para o fornecimento de milho e trigo, favas, forragem, mulas, burros e cavalos, carne de porco e carneiro, couro cru e tecidos de baixa qualidade.


Trabalho indígena  em fazenda de cana-de-açúcar. Detalhe de mural do pintor mexicano Diego Rivera

Os proprietários das minas e os comerciantes transferiram seus investimentos para a terra, acelerando a formação do latifúndio. Sem o incentivo (ou estímulo) fornecido pelas minas (sua produção de prata, força de trabalho e dependentes), as grandes propriedades tenderiam a se tornar relativamente auto-suficientes. Para a elite econômica e social, proprietários de minas e proprietários de estância, a maior preocupação consistia na manutenção de um fluxo de oferta de mão-de-obra adequada e de confiança. As comunidades indígenas próximas foram pressionadas, através da apropriação de suas terras, para fornecer essa mão-de-obra. Essas pressões foram igualmente efetivadas através do encorajamento à residência nas propriedades, em troca de pequenas importâncias a título de tributos ou pequenos impostos. Uma vez estabelecidos nas propriedades, os indígenas recebiam novos adiantamentos relativos à alimentação e bebida, sacramentos de batismo, casamento e morte. A escravidão por dívidas passou a constituir a principal modalidade de recrutamento e manutenção da mão-de-obra. Outros vínculos, além das importâncias em dinheiro, ligavam o patriarca-proprietário rural a seus dependentes semi-servis. A fazenda passou a tornar-se um local de refúgio para aqueles ameríndios que considerassem as pressões comunitárias insuportáveis; a estes, a fazenda oferecia uma certa forma de segurança. O indígena oferecia seu trabalho e fidelidade, recebendo em troca rações diárias, tratamento médico primitivo, conforto religioso e uma posição inferior estabelecida. A fazenda - em seu duplo papel de unidade produtora e núcleo social patriarcal - sobreviveu, até 1910, como legado colonial no México e, até mais tarde, na Guatemala, Equador, Bolívia e Peru. As comunidades ameríndias, igualmente, buscaram sobreviver - através da tradição, linguagem, vestimentas e consenso grupal - a essa sociedade e economia expansionistas, capitalistas, monetarizadas, características das pressões exercidas pelo mundo do homem branco sobre a terra e a mão-de-obra indígenas - um padrão igualmente familiar aos estudiosos das reservas indígenas nos Estados Unidos.

STANLEY, J. S.; STEIN, B. A herança colonial na América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. p. 32-33, 36-38.

NOTA: O texto "Mineração e demografia na América Colonial" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

sábado, 22 de fevereiro de 2014

Revolução Mexicana

O descontentamento com a desigualdade social crescia em todos os setores populares, exprimindo-se de forma mais dinâmica nas greves operárias conduzidas por anarco-sindicalistas e, sobretudo, nos levantes espontâneos de camponeses, comandados por caudilhos; esmagados ambos com a mais feroz repressão. As classes médias urbanas de empregados agitavam-se em movimentos de inspiração liberal e sua facção intelectual pregava a revolução socialista.

Uma situação francamente revolucionária só se criou em 1910, quando a este descontentamento generalizado se somaram dois fatos novos. Primeiro, uma grave dissensão no patriciado político motivada pelo continuísmo de Porfírio Diaz que, aos oitenta anos, pleiteava sua reeleição depois de exercer cinco mandatos presidenciais consecutivos. Segundo, e principalmente, o surgimento de duas lideranças camponesas autênticas: a de Emiliano Zapata, no estado de Morelos, ao sul, e a de Francisco Villa, em Chihuaha, ao norte, ambos à frente de exércitos armados de machetes e escopetas, já não apenas clamando pela devolução das terras aos seus verdadeiros donos, mas expulsando os latifundiários das fazendas e distribuindo a terra aos lavradores.


Pancho Villa - 3º à direita - junto com outros revolucionários em 1913.

Sucedem-se, nas cidades, as proclamações libertárias contra a reeleição e pelo sufrágio efetivo; pelas liberdades públicas, pela educação popular; por todas as reivindicações sociais então em voga, como a jornada de oito horas, o salário mínimo pago em dinheiro, a proteção ao trabalho do menor, a indenização por acidentes de trabalho, a igualdade de pagamento para mexicanos e estrangeiros; e, ainda, pela obrigatoriedade de fazer produtivos os latifúndios por parte dos proprietários, sob pena de confisco para distribuição aos camponeses sem terra.

[...] Simultaneamente, porém, se alastraram as insurreições camponesas cujos líderes, não se contentando com a satisfação das aspirações presidenciais de Madero, exigiam a reforma agrária. Zapata lança o Plan de Ayala, declarando que não deporia as armas até que se devolvesse aos ejidos e aos camponeses todas as terras de que haviam sido despojados pelos fazendeiros. Inicia-se, assim, a verdadeira revolução social mexicana que convulsionaria todo o país e prosseguiria em lutas sangrentas até 1919.

RIBEIRO, Darcy. As Américas e a Civilização: Estudos de Antropologia da Civilização. Petrópolis: Vozes, 1979. p. 131.

NOTA: O texto "Revolução Mexicana" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Camponeses revolucionários no México zapatista

Aparentemente os camponeses, que constituíam a maioria da população e eram quase todos analfabetos e miseráveis, lutavam unicamente para reconquistar as terras que lhes tinham sido usurpadas pelos latifundiários. O chefe mais importante do movimento camponês, Emiliano Zapata, havia escrito:

A revolução sustentada pelos sulistas definiu, de maneira clara e sem reticências de qualquer espécie, as três grandes bandeiras da questão agrária: restituição de terras ao povo ou cidadãos e expropriação e confisco, por motivo de utilidade pública, dos bens dos inimigos do Plan de Ayala.

Fruto das aspirações camponesas, o ideário zapatista foi exposto, com a simplicidade de seus autores, nesse plano que data de novembro de 1911 e pode ser considerado o primeiro documento revolucionário - excluindo alguns escritos do anarquista Ricardo Flores Magón - que colocou o problema da terra e dos trabalhadores no centro da luta social. Insistentemente se atribui ao movimento zapatista um caráter localista, conservador e até reacionário, por reivindicar um direito comunitário pré-hispânico. Entretanto foi ele que levantou como bandeira insurrecional uma questão nacional, que unia todos os deserdados do país, os milhões de camponeses expropriados e humilhados durante quatrocentos anos. O zapatismo teve o mérito de desencadear a revolução entre as massas camponesas que até aquele momento eram apenas iludidas pelo discurso emocionado dos madeiristas (partidários do general Madero).


Zapatistas no sítio El Jilguero

Em um manifesto de agosto de 1914, os zapatistas colocavam a razão de sua rebelião, da revolução camponesa, em termos de luta de classes:

O camponês tinha fome, era miserável, sofria exploração; e se empunhou armas foi para obter o pão que a avidez do rico lhe negava para apossar-se da terra que o latifundiário, egoisticamente, guardava para si, para reivindicar sua dignidade, ultrajada, perversamente, todos os dias. Lançou-se à revolta não para conquistar ilusórios direitos políticos, que não matam a fome, mas para conseguir um pedaço de terra que lhe possa proporcionar alimentação e liberdade, um lar feliz, e um futuro de independência e engrandecimento.

Contudo, a revolta não visava apenas derrotar o latifundiário, o comerciante, o homem rico, que sufocavam a existência do camponês, mas construir uma sociedade mais justa, igualitária, onde o trabalhador se reencontraria consigo mesmo e com seu próprio trabalho; uma sociedade baseada no trabalho coletivo de indivíduos concretos, que não se deixariam explorar pela classe burguesa. No mesmo documento, os camponeses manifestavam-se contrários a esse tipo de sociedade, ilusória e mentirosa, que os humilha e asfixia, prende-os à miséria e os violenta:

Todas essas belezas democráticas, todas essas grandes palavras com que nossos avós e nossos pais se deleitaram perderam seu poder mágico de atração e sua significação para o povo. Ele já percebeu que com eleições ou sem eleições, com sufrágio universal ou sem ele, com ditadura porfiriana ou com democracia maderista, com imprensa amordaçada ou com libertinagem de imprensa, sempre e de todas as formas, ele continua ruminando suas amarguras, sofrendo misérias, engolindo humilhações infindáveis; por isso teme, com razão que, os libertadores de hoje tornem-se iguais aos caudilhos de ontem que na cidade de Juarez abdicaram de seu belo radicalismo e no Palácio Nacional lançaram ao esquecimento suas sedutoras promessas.

A revolução camponesa, por sua ação e seu ideário, forçou o movimento maderista e em seguida o constitucionalismo carrancista a voltarem-se para a problemática social, reorientando todo o processo mexicano para a ultrapassagem da meta político-administrativa. [...] os líderes constitucionalistas Carranza e Obregón compreenderam que a única forma de neutralizar a revolução camponesa seria a adoção de suas bandeiras, o que lhes permitiria acabar com as lideranças do movimento. Carranza, especialmente, percebeu de imediato o sentido da revolução mexicana como o confronto irremediável entre as duas classes fundamentais da sociedade naquele momento.

A partir dessa constatação, o zapatismo, principalmente, transformou-se em um espinho atravessado na garganta da burguesia. Esta viu-se obrigada a desenvolver um projeto político-social que veio a ser, sem dúvida alguma, o mais poderoso sistema de dominação e controle político de toda a história da América Latina. A "democracia" mexicana, em que o presidente da República, como um monarca de tempos passados decide, entre outras coisas, quem será o seu sucessor, nasceu com a revolução e em consequência da necessidade que a burguesia tinha de esmagar, para sempre, a revolução camponesa.

BRUIT, Hector H. Revoluções na América Latina. São Paulo: Atual, 1988. p. 23-26.

NOTA: O texto "Camponeses revolucionários no México zapatista" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Noches de harén

Odalisca, Henri Matisse

La escritora Fátima Mernissi vio, en los museos de Paris, las odaliscas turcas pintadas por Henri Matisse.

Eran carne de harén: voluptuosas, indolentes, obedientes.

Fátima miró las feschas de los cuadros, comparó, comprobó: mientras Matisse las pintada así, en los años veinte y treienta, las mujeres turcas se hacían ciudadanas, entraban en la Universidad y en el Parlamento, conquistaban el divorcio y se arrancaban el velo.

El harén, prisión de mujeres, habia sido prohibido en Turquia, pero no en la imaginación europea. Los vistuosos caballeros, monógomos en la vigilia y poligamos en el sueño, tenian entrada libre a ese exótico paraíso, donde las hembras, bobas, mudas, estaban encantadas de dar placer al macho carcelero. Cualquer mediocre burócrata cerraba los ojos y en el acto se convertia en un poderoso califa, acariciado por una multitud de vírgenes desnudas que, ballando la danza del vientre, suplicaban la gracia de una noche junto a su dueño y señor.

Fátima habia nacido y crecido en un harén.

GALEANO, Eduardo. Espejos: una historia casi universal. Buenos Aires: Siglo XXI Editores & Siglo XXI Iberoamericana, 2008. p. 261-262.

NOTA: O texto "Noches de harén" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

As fronteiras da América portuguesa e os tratados de limites

Em 1680, Dom Manuel Lobo, governador do Rio de Janeiro, fundou a Nova Colônia do Santíssimo Sacramento, na margem direita do estuário platino, em frente à cidade de Buenos Aires.


Painel de azulejos representando a fundação da Colônia do Santíssimo Sacramento.
Foto: Fulviusbsas

As fonteiras da América Portuguesa se ampliavam e não por acaso. Interesses econômicos inspiravam essa ação militar: a burguesia mercantil portuguesa queria continuar a colocar no mercado portenho as manufaturas europeias - especialmente tecidos ingleses - e produtos brasileiros, como tabaco, açúcar e algodão.

Esse ativo comércio de contrabando, através do qual se recebia a prata peruana, era acobertado legalmente pelo asiento, que fora suprimido com a Restauração, em 1640.

Os estancieiros gaúchos também tinham interesses na fundação da colônia, uma vez que queriam diminuir a concorrência platina aos seus couros no mercado do Rio de Janeiro.

Para o Estado português, a Colônia do Sacramento era vista como um marco fronteiriço importante, pois permitiria o acesso às regiões mineradoras hispano-americanas, através de Buenos Aires.

Montava-se, na verdade, um centro de contrabando anglo-português: também a burguesia inglesa queria chegar com seus manufaturados, diretamente, ao mercado platino, rompendo o monopólio espanhol. A população de Buenos Aires, por sua vez, estava interessada em "furar" as rotas Santa Fé-Córdoba-Mendonza-Santiago-Valparaiso e Corrientes-Assunção-Potosi-Arica.

"O contrabando de prata e a caça ao índio levaram um crescente número de colonos portugueses à região ocupada atualmente pelos estados do Paraná e de Santa Catarina. Foi dessa forma que surgiram os povoados de Paranaguá (1648) e Curitiba (1668)." ARRUDA, José Jobson. História Total 1: Brasil: Período Colonial. São Paulo: Ática, 1998. p. 105.

Fundação de Curitiba, Theodoro de Bona
[Inicialmente, o povoado de Curitiba, assim como o porto de Paranaguá, esteve sujeito à jurisdição de São Paulo. Apenas em 1853 foi criada a província do Paraná.]

Ameaçada em sua política colonialista, a Espanha vai atacar e ocupar a colônia, a partir de 1680 mesmo.

A Coroa portuguesa desenvolve um grande esforço de colonização no extremo Sul, para acabar com o isolamento da Nova Colônia do Santíssimo Sacramento, cujo povoado luso mais próximo era Laguna, a 150 léguas. Em 1737, na entrada da lagoa dos Patos, é fundado o Forte do Rio Grande de São Pedro.

Fundação da vila do Rio Grande, na lagoa dos Patos, José de Francesco. 
[O povoamento do Rio Grande do Sul pelos portugueses teve início em 1737, quando José da Silva Pais ali desembarcou, à frente de uma expedição. Na entrada do canal da lagoa dos Patos, foi fundada a vila do Rio Grande.]

Como a simples força militar de apoio fosse insuficiente, Dom João V financia, a partir de 1740, a vinda de 4.000 açorianos, dando a cada família um pequeno lote de terra, armas, instrumentos de trabalho agrícola, sementes, alimentos e até vacas e cavalos.

Entre as vilas que surgiram nessa área de ocupação tão original, de lavra do trigo e da vinha em pequenas propriedades, destaca-se Porto dos Casais, atual Porto Alegre, às margens do rio Guaíba.

Tudo isso favoreceu a ocupação do Rio Grande, "o Continente". As estâncias gaúchas já se estendiam pelos vastos pampas. Mas a oeste, na margem esquerda do rio Uruguai, os jesuítas espanhóis voltavam a organizar suas reduções: nasciam os Sete Povos das Missões Orientais do Uruguai. Novos conflitos se anunciavam.

A superação prática de Tordesilhas e os atritos entre colonos espanhóis e portugueses levaram as coroas ibéricas a negociar tratados de limites:

Tratado de Lisboa (1681). Trata da devolução da Colônia do Sacramento, ocupada pelos espanhóis no ano de sua fundação. O apoio da Inglaterra foi decisivo para Portugal conseguir essa vitória diplomática. A saída das forças espanholas só se dá, efetivamente, em 1683.


Mapa da Colônia do Sacramento feito por Tomás López em 1777

Tratados de Utrecht (1713 e 1715). O primeiro é firmado com a França e decide que o rio Oiapoque seria reconhecido como limite natural entre a Guiana e a capitania do Cabo do Norte. O segundo trata da segunda devolução da Colônia do Sacramento e, obviamente, é assinado com a Espanha. Define-se que o "cerco" espanhol a Sacramento seria delimitado pela distância alcançada por uma bala de canhão, acionado do centro do povoado. A colônia continuaria sendo uma "ilha" portuguesa cercada de espanhóis por todos os lados... A Inglaterra foi mediadora em ambos os tratados. E obteve da Espanha os direitos de asiento e de navio de permiso (um navio por ano nos portos das colônias espanholas) - brecha no bloqueio comercial - no mar das Antilhas.

Tratado de Madri (1750). Este tratado procurou considerar, pela primeira vez, a realidade americana, isto é, levar em consideração a ocupação efetiva realizada aqui. Alexandre de Gusmão, paulista membro do Conselho Ultramarino, defendeu vários princípios vitoriosos. Portugal recebia os Sete Povos e passava a Colônia do Sacramento para o domínio espanhol. O princípio do usucapião (ou uti possidetis, isto é, a terra pertence a quem a ocupa) foi utilizado nos demais casos assim como a demarcação por limites naturais. Rios e canais limítrofes teriam navegação comum e sempre se tentaria isolar as colônias americanas dos conflitos europeus. Portugal garantia o controle da maior parte da bacia amazônica enquanto a Espanha controlava a maior parte da bacia do Prata.

Foi muito mais fácil aos "sereníssimos" reis ibéricos pôr termo às disputas passadas e futuras no papel do que acabar efetivamente com os conflitos e fazer cumprir o tratado. Os interesses no intercâmbio com o Prata, a Guerra Guaranítica, desenvolvida pelos missionários e índios dos Sete Povos contra os exércitos de Portugal e Espanha, onde se destacou o cacique Sepé Tiaraju, morto em 1752, e o envolvimento das coroas em campos opostos, na Guerra dos Sete Anos, a partir de 1758, levaram à anulação das decisões de Madri.

Tratado de Santo Ildefonso (1777). O expansionismo espanhol chegou até a ilha de Santa Catarina. Esse tratado a devolve a Portugal, ficando a Espanha com o Sacramento e com a região dos Sete povos.

Tratado de Badajós (1801). Os gaúchos atacam os Sete povos e expulsam os jesuítas espanhóis. A nova situação de fato pede negociações. Este último tratado do período colonial é, praticamente, um retorno às resoluções de Madri.

ALENCAR, Francisco [et all]. História da sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1996. p. 63-65.


NOTA: O texto "As fronteiras da América portuguesa e os tratados de limites" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

sábado, 15 de fevereiro de 2014

"Teúdas e manteúdas" no Brasil imperial

[...] até o período em que se deu a Independência, vivia-se na América portuguesa num cenário com algumas características invariáveis: a família patriarcal era o padrão dominante entre as elites agrárias, enquanto, nas camadas populares rurais e urbanas, os concubinatos, uniões informais e não legalizadas e os filhos ilegítimos eram a marca registrada. A importância das cidades variava de acordo com sua função econômica, política, administrativa e cultural. Alguns números ilustram os contingentes demográficos: São Paulo contava com cerca de 20 mil habitantes, Recife, com 30 mil, Salvador, com 100 mil, e o Rio de Janeiro, graças à vinda de portugueses seguindo d. João VI em seu exílio tropical, era a única a contar com mais de 100 mil residentes. A população urbana, contudo, crescia, alimentando uma forte migração interna (campo-cidade) e externa (tráfico negreiro). Apesar dos problemas de abastecimento, higiene e habitação, as cidades atraíam pela enorme oportunidade que ofereciam de mobilidade social e econômica.


Quando a América ainda era portuguesa, cochichos, piscadelas e sinais com os dedos: sedução pela janela. Huma história, 1822. Henry Chamberlain

Com todas essas transformações, é bom não perder de vista que, de acordo com vários viajantes estrangeiros que aqui estiveram na primeira metade do século XIX (Saint-Hilaire, Tollenare, Debret, Rugendas, Koster, Luccock, Maria Graham), a paisagem urbana brasileira ainda era bem modesta. Com exceção da capital, Rio de Janeiro, e de alguns centros onde a agricultura exportadora e o ouro tinham deixado marcas – caso de Salvador, São Luís e Ouro Preto -, a maior parte das vilas e cidades não passava de pequenos burgos isolados com casario baixo e discreto, como São Paulo, Curitiba e Porto Alegre.

Mesmo na chamada corte, o Rio de Janeiro, as mudanças eram mais de forma do que de fundo. A requintada presença da Missão Francesa pode ter deixado marcas na pintura, ornamentação e arquitetura. Mas as notícias dos jornais Gazeta do Rio de Janeiro (1808-1822) e Idade de ouro do Brasil (1811-1823), órgãos da imprensa oficial, ou mesmo a inauguração do Real Teatro de São João, onde se exibiam companhias estrangeiras e onde soltavam seus trinados artistas como a graciosa Baratinha ou as madames Sabini e Toussaint, não eram suficientes para quebrar a monotonia intelectual. Além do popular entrudo e dos saraus familiares, o evento social mais importante continuava a ser a missa dominical.


O importuno, Almeida Junior

Os viajantes que por aqui passaram na primeira metade do século XIX concordavam num ponto: "a moralidade reinante no Rio de Janeiro se apresenta bem precária", como dizia o mineralogista inglês Alexander Caldcleugh. Já o francês Freycinet queixava-se dos vícios de libertinagem. Afinal, tratava-se de um país onde "não e difícil encontrar-se todo tipo de excessos". E seu conterrâneo Arago cravava: "o Rio era uma cidade onde os vícios da Europa abundavam". Eles tomavam como vícios os concubinatos e adultérios, correntes sobretudo nas camadas mais pobres da população, em que se multiplicavam as "teúdas e manteúdas". Para a chamada "poligamia tropical" não faltaram explicações associadas ao clima quente, como a dada por J. K. Tuckey:

"Entre as mulheres do Brasil, bem como as de outros países de zona tórrida, não há intervalo entre os períodos de perfeição e decadência; como os delicados frutos do solo, o poderoso calor do sol amadurece-as prematuramente e, após um florescimento rápido, deixam-nas apodrecer; aos quatorze anos tornam-se mães, aos dezesseis desabrochou toda a sua beleza, e, aos vinte, estão murchas como as rosas desfolhadas no outono. Assim a vida das três destas filhas do sol difere muito da de uma europeia; naquela, o período de perfeição precede muito o de perfeição mental, e nesta, uma perfeição acompanha a outra. Sem dúvida, esses princípios influenciam os legisladores do Oriente em sua permissão da poligamia; pois na zona tórrida, se o homem ficar circunscrito a uma mulher precisará passar quase dois terços de seus dias unido a uma múmia repugnante e inútil para a sociedade, a não ser que a depravação da natureza humana, ligada à irritação das paixões insatisfeitas os conduzisse a livrar-se do empecilho por meios clandestinos. Essa limitação a uma única mulher, nas povoações europeias da Ásia e das Américas, é uma das principais causas de licenciosidade ilimitada dos homens e do espírito intrigante das mulheres. No Brasil, as relações sexuais licenciosas talvez igualem o que sabemos que predominou no período mais degenerado do Império Romano."

Outra explicação, dessa vez dada pelo conde de Suzanet, em 1825, afirmava que as mulheres brasileiras gozavam de menos privilégio do que as do Oriente. Casavam-se cedo, logo se transformando pelos primeiros partos, perdendo assim os poucos atrativos que podiam ter tido. Os maridos apressavam-se em substituí-las por escravas negras ou mulatas. "O casamento é apenas um jogo de interesses. Causa espanto ver uma moça, ainda jovem, rodeada de oito ou dez crianças; uma ou duas, apenas, são dela, outras são do marido; os filhos naturais são em grande número e recebem a mesma educação dos legítimos. A imoralidade dos brasileiros é favorecida pela escravidão e o casamento é repelido pela maioria, como um laço incômodo e um encargo inútil. Disseram-me que há distritos inteiros em que só se encontram dois ou três lares constituídos. O resto dos habitantes vive em concubinato com mulheres brancas ou mulatas."

"Nascer do outro lado dos lençóis" era o eufemismo empregado para designar bastardia. E não foram poucas as famílias assim constituídas. João Simões Lopes, o visconde da Graça, estancieiro, comerciante e chefe do partido conservador em Rio Grande, tinha uma vida nada convencional na segunda metade do século XIX. Casado, mantinha na mesma rua em que morava, três casas abaixo, sua amante. Quando sua esposa deu à luz um filho, quase na mesma semana nascia-lhe outra da "teúda e manteúda" Vicência Ferreira Lira. Teve, com cada uma delas, dez filhos, sendo pai de doze de um primeiro casamento do qual ficou viúvo. O arranjo não causava discórdia. Nas missas de domingo, a legítima esposa ficava de um lado da igreja e a concubina, do outro. Todos muito devotos!

DEL PRIORE, Mary. Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil. São Paulo: Planeta do Brasil, 2011. p. 62-65.

NOTA: O texto "Teúdas e manteúdas no Brasil imperial" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

A situação de índios e negros na América hispânica pós-independência

Vista de Tampico, Tamaulipas. Litografia de Frédéric Mialhe

No tempo das lutas pela independência na América espanhola, a palavra “liberdade” tinha diferentes significados. Para as elites coloniais que liam os textos iluministas, liberdade tinha principalmente uma dimensão política e econômica. Esse grupo desejava autonomia para ampliar os seus negócios e atuar no comércio internacional sem a intervenção da metrópole.

Para os escravos, liberdade significava o fim da condição de cativo. Já para os índios, a palavra estava associada à supressão dos tributos coloniais e ao fim do trabalho compulsório, que havia dissolvido as comunidades originais ou alterado drasticamente seu funcionamento.

As lutas pela emancipação na América espanhola não conseguiram conciliar as diferentes visões de liberdade. Os movimentos de independência contaram com a participação de índios e negros, mas foram liderados pelos brancos, que já exerciam funções na administração colonial ou atuavam no comércio interno ou externo. Por isso, os novos Estados nacionais foram organizados para defender os interesses desses grupos dominantes.

As independência não significaram o fim do trabalho escravo na América hispânica. Muitos defensores da independência política das colônias espanholas eram senhores de escravos, o que explica a lentidão em abolir a escravidão em grande parte do território. A maioria dos novos países adotou políticas gradativas para extinguir o trabalho escravo antes de abolir definitivamente a escravidão.

A Venezuela proibiu a escravidão em 1816 e a Colômbia em 1818. Contudo, nesses países os ex-escravos do sexo masculino, com idade entre 14 e 60 anos, foram obrigados a prestar o serviço militar. Aqueles que recusassem ficavam sujeitos à servidão. A abolição definitiva nos dois países só ocorreu na década de 1850, assim como no Equador, na Argentina e no Peru.

Após a independência, alguns tributos coloniais cobrados das comunidades indígenas foram abolidos formalmente, mas em alguns territórios essas medidas não foram respeitadas.

No processo de inserção dos novos Estados nacionais na economia internacional, os índios tornaram-se mão de obra barata para a agricultura e a mineração, atividades voltadas para a exportação. As terras indígenas foram vistas como uma barreira à expansão agrícola; por isso, muitas foram expropriadas e incorporadas pelos grandes proprietários rurais.

Os direitos de cidadania tampouco foram estendidos aos índios. Em muitos países hispano-americanos, os índios foram excluídos da participação política e sua condição piorou após a independência. Os movimentos de resistência indígena nos séculos XIX e XX quase sempre foram derrotados ou obtiveram vitórias restritas.

Atualmente, segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), existem entre 40 e 50 milhões de indígenas na América Latina, vivendo principalmente na Bolívia, no Peru, no México e na Guatemala. A grande maioria é pobre, com baixos índices de escolarização.

Apesar de as atuais políticas democráticas reconhecerem a multiplicidade étnica das sociedades latino-americanas e leis defenderem os direitos dos povos indígenas, ainda há muito a ser feito para que esses direitos sejam efetivamente respeitados e garantidos.


BRAICK, Patrícia Ramos. Estudar história: das origens do homem à era digital. São Paulo: Moderna, 2011. p. 157-158.

NOTA: O texto "A situação de índios e negros na América hispânica pós-independência" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Presença estrangeira no Antigo Egito

Joseph, Lawrence-Alma Tadema

Os faraós sempre apresentaram o Egito como uma terra inexpugnável, numa espécie de mistificação que tinha a ver com o poderio militar e com a autoridade religiosa de que eles gozavam. À integridade do território, eles procuravam garantir castigando exemplarmente aqueles que tentavam violá-la. Mas, a realidade era bem diferente. O Egito foi sempre um país poroso, cuja prosperidade atraía seus vizinhos famélicos. No Alto Egito, os planaltos desérticos eram cortados em todas as direções por pequenos cursos d’água que conduziam ao vale do Nilo.

No Baixo Egito, os líbios haviam se acostumado a se espalhar pelo delta. A leste, as zonas pantanosas eram assombradas por populações marginais, e o “caminho de Hórus” ligava o Egito à Palestina. Paradoxalmente, foi o lado do Mediterrâneo que permaneceu o menos atraente para os visitantes.

Em tais condições, houve permanentemente uma presença no seio da civilização do Vale do Nilo, sob diferentes formas e em constante interinfluência.

Se as invasões provocaram traumas, o Egito se acomodou mais ou menos às infiltrações, às imigrações involuntárias ou provocadas, simplesmente porque o país sofria de uma falta crônica de mão-de-obra.

Ao contrário do Egito contemporâneo, de demografia explosiva, sua população era pouco numerosa – e os faraós insistiam em ser construtores infatigáveis. Eles com freqüência eram obrigados a recrutar estrangeiros já instalados no Egito, ou trazidos à força para o país. O episódio bíblico das doze tribos de hebreus encaminhadas para a construção de uma cidade repousa portanto sobre a realidade.

Os estrangeiros não estavam destinados apenas para a fabricação de tijolos, ou para serem chicoteados na construção dos grandes monumentos faraônicos. Eles podiam, por sua competência, atingir as mais altas funções. Assim, um semita foi vizir sob Amenófis III. Um outro supervisionou a construção do templo funerário de Ramsés II. A história de José tem portanto um pano de fundo autêntico. Os egípcios toleravam os particularismos das comunidades estrangeiras. Pelo menos até um certo limite. Se os judeus de Elefantina viram-se às voltas com a hostilidade dos habitantes, não foi por causa de uma pulsão racista, mas sim porque eles pretendiam sacrificar um cordeiro em uma cidade cuja divindade mais importante era um... carneiro!


Pascal Vernus. Estrangeiros construíram o Egito. In: Revista História Viva. Grandes temas, nº 46. p. 67.

NOTA: O texto "Presença estrangeira no Antigo Egito" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

domingo, 9 de fevereiro de 2014

O outro lado de 1808

“O imaginário popular ilustra o período joanino com palácios, carruagens, banquetes, vestidos volumosos e leques. Mas a realidade, relegada até pela própria história, era bem diferente.

Em contraste à riqueza que aportou no Rio de Janeiro em 1808, as condições urbanas da cidade e de vida da sua população eram extremamente precárias, e com o aumento repentino das demandas, as carências ficaram mais evidentes: faltava água, comida e moradia. [...]

Rua Direita, Félix-Émile Taunay

Não havia sistema de esgotos. Os restos da casa, do banheiro à cozinha, eram jogados na praia para que as marés lavassem, e tudo era transportado em tonéis em ombros escravos. As ruas eram escuras e perigosas. A água potável era escassa e o abastecimento de alimentos era deficitário, principalmente o de carnes, cujo consumo era um luxo só presente em poucas ocasiões festivas no ano [...].

A vinda da corte e o crescimento da cidade da cidade levaram a um aumento rápido da população de escravos. Em apenas três anos, o número de cativos passou de 9.602 para 18.677, o que fez com que as ruas cariocas ficassem repletas de negros, escravos ou livres. Os negros eram cerca de três quartos da população.”


COSTA, Guilherme Martins; LEMLE, Marina. O outro lado de 1808. Revista de História da Biblioteca Nacional, 14 fev. 2008.

NOTA: O texto "O outro lado de 1808" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Fundación de la taberna

Taberna, Eduard Munch

Cuando Irak era Babilonia, manos femeninas se ocupaban de la mesa:

Que la cerveza nunca falte,
la casa sea rica en sopas
y el pan abunde.

En los palacios y en los templos, el chef era hombre. Pero en la casa, no. La mujer hacia las diversas cervezas, dulce, fina, blanca, rubla, negra, añeja, y también las sopas y los panes. Y lo que sobraba, se oferecia a los vecinos.

Con el paso del tiempo, algunas casas tuvieron mostrador y los invitados se hicieron clientes. Y nació la taberna. Y fue lugar de encuentro y espacio de libertad este reino chiquito, esta extensión de la casa, donde la mujer mandaba.

En las tabernas se incubaban conspiraciones y se anudaban amores prohibidos.

Hace más de tres mil setecientos años, en tiempos del rey Hamurabi, los dioses trasmiteron doscientas ochenta y dos leyes al mundo.

Una de las leyes mandaba quemar vivas a las sacerdotisas que participaran en las conjuras de las tabernas.


GALEANO, Eduardo. Espejos: una historia casi universal. Buenos Aires: Siglo XXI Editores & Siglo XXI Iberoamericana, 2008. p. 10.


NOTA: O texto "Fundación de la taberna" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Os perigos do clima e das doenças no medievo

Um período de temperaturas elevadas interveio durante a Idade Média, e os dois séculos entre os anos 1000 e 1200 foram talvez tão quentes quanto a década de 1990 veio a ser no norte da Europa. Colheitas foram feitas em terras que, por serem tão frios nos verões, um dia tinham sido vistas como inúteis para aragem. As vinhas deram frutos além do atual limite de cultivo de uvas; até o extremo norte da Inglaterra chegou a produzir vinho para beber.

A ilha da Islândia foi ocupada ao primeiro sinal de um período mais quente. Situada no contorno do Círculo Ártico, mas lucrando bastante do aquecimento vindo da Corrente do Golfo, a ilha foi ocupada por alguns religiosos da Irlanda e, depois, em 874, pelos vikings vindos da Noruega. Os vikings sacudiram o norte da Europa exatamente na mesma época em que os árabes islâmicos agitavam o Mediterrâneo, e os maoris ocupavam a Nova Zelândia. Embora os ataques belicosos dos vikings sejam famosos, seus povoamentos foram eficientes e, com o tempo, as cidades e distritos vikings se estenderam desde as cidades de comércio de Kiev e Novgorod, na Rússia, até à costa da França, Escócia, Irlanda, Ilhas Órcadas (ou Orkney), Ilha de Man e Islândia.

Até mesmo a gelada Groenlândia, a maior ilha do mundo, parecia ser um prêmio onde, nesses anos mais quentes, os vikings poderiam pastar suar ovelhas e defumar os peixes que pegavam no mar. No ano 985, pequenos navios zarpavam da Islândia para a Groenlândia com aproximadamente 400 colonizadores, bem como ovelhas, cabras, vacas, cavalos e, provavelmente, pilhas de feno. A maioria eram noruegueses, mas havia um contingente de irlandeses também. Ancorando na costa mais ao sul da Groenlândia, os colonizadores prosperaram no clima cada vez mais quente. No verão, cortavam a grama alta, deixavam-na secar em montes dispostos em fileiras e empilhavam em celeiros de feno, possibilitando alimento suficiente para o rebanho durante o inverno escuro.

A população da Groenlândia cresceu chegando a 4000 ou 5000, em menos de um século e meio. A pequena república viking chegou a ter um convento, um mosteiro, mais 16 igrejas e uma catedral presidida pelo bispo da Groenlândia. Era o tipo de povoamento movimentado do qual suas famílias fundadoras tinham orgulho: parecia provável que duraria por 10.000 anos.

A Groenlândia e a Islândia eram uma ponte de passagem pelo gelado Atlântico Norte; a América estava do outro lado da ponte. Os primeiros desembarques europeus no continente americano foram feitos por expedições vikings exatamente quando a Gronelândia estava sendo ocupada. As mulheres partiram com os colonizadores para a Terra Nova e, segundo dizem, uma das expedições composta de dois navios foi conduzida por Freydis, uma mulher que tinha no machado sua arma pessoal contra os inimigos.


Leiv Eiriksson descobre a América do Norte, Christian Krohg

Nada veio desses povoamentos; os índios americanos não tinham motivos para receber bem os vikings. A terra, com exceção das peles dos animais, não tinha nenhuma mercadoria que empolgasse os comerciantes. Se Cristóvão Colombo, cinco séculos depois, tivesse descoberto essa mesma costa em vez de pisar nos solos das perfumadas Antilhas, ele não seria mais lembrado que os vikings, que construíram cabanas e pastaram seus rebanhos nas margens da Terra Nova.

As estações quentes, após somente alguns poucos séculos, começaram a alterar-se. Até a ilha mediterrânea de Creta entrou numa fase mais fria, por volta do ano 1150. Na Alemanha e Inglaterra, o frio chegou talvez um século depois, e os anos entre 1312 e 1320 foram não só frios como também chuvosos, ao contrário do normal. Como uma boa parte dos grãos tinha de ser reservada para a semeadura do ano seguinte, uma colheita insuficiente impunha fome a muitas pessoas. Em 1316, talvez uma em cada 10 pessoas de Ypres morreu de fome ou subnutrição; em alguns lugares, a carne humana servia de alimento.

Procissões religiosas que aconteciam no oeste da França refletiam as estações ruins. Algumas traziam inúmeras pessoas esqueléticas e descalças, algumas das quais praticamente nuas. Colheitas insuficientes afetavam o abastecimento de roupas baratas, bem como de comida barata, pois os pobres faziam suas roupas da planta do linho, que também sofria com as estações ruins. Na verdade, a terra que normalmente era usada para cultivar o linho poderia ser extremamente necessária para o cultivo de grãos.


Miniatura em um livro de orações do início do século XV. Papa Gregório I (590-604) leva uma procissão em torno da proximidade de Roma, a fim de rezar pelo fim da praga. Em primeiro plano duas vítimas caíram, uma criança e um monge.

Com o passar das décadas, o clima da Groenlândia e do Atlântico Norte ficou mais frio. Os celeiros que antes estavam cheios de feno, agora tinham aberturas de ar. Só três pilhas de feno eram recolhidas, onde antes havia quatro ou cinco. Os navios que se aproximavam, vindos da Europa ou da Islândia, encontravam blocos de gelo flutuando em lugares onde o mar se apresentava aberto, ao contrário de outras épocas. Os colonizadores da Groenlândia esperavam em vão pelos antigos verões de que seus antepassados tanto falavam. As fazendas e as igrejas foram abandonadas. Os jovens eram poucos e casamentos tornaram-se uma raridade. Em 1410, os colonizadores sobreviventes embarcaram em navios que ficavam à espera e rumaram para a Islândia e Noruega. A base europeia nessa terra gelada havia durado menos de 400 anos. [...]

A fase do clima mais quente havia aumentado a taxa de crescimento da população na Europa; entre 1000 e 1250, ela cresceu rapidamente. Em seguida, vieram anos gelados, colheitas mais enxutas e um crescimento mais lento da população. Houve mais anos de fome e mais chance de epidemias. A Europa provavelmente via-se pronta para a Peste Negra.

A Peste Negra de 1348 não foi a única. É provável que tenha atingido a Ásia e a África alguns séculos antes, mas não deixou nenhum registro detalhado de sua casuística. Uma epidemia semelhante atingiu o Império Romano entre 165 e 180 d.C. e indiretamente promoveu o cristianismo, pois muitos romanos ficaram impressionados com a visão dos cristãos dando pão e água às vítimas que se achavam enfermas demais para se moverem. Aproximadamente três séculos depois, outra epidemia, a peste bubônica, veio da Índia. Atingiu Constantinopla em 542 e abriu seu caminho a golpes de foice até a Europa. A maior parte dos que morreram dessa primeira fase da "peste negra" foi condenada dentro de seis dias a partir do momento em que mostravam os primeiros sintomas - dor de cabeça, alta temperatura e o aparecimento na pele de um caroço, aproximadamente do tamanho de um ovo ou de uma laranja pequena. Curiosamente, as vítimas que apresentavam caroços maiores em sua pele tinham pais probabilidade de sobreviver. A China e o Japão também sofreram muitos casos com epidemias que talvez se parecessem com a Peste Negra. Dizem que a cidade chinesa de Kaifeng chegou a perder várias centenas de habitantes durante uma epidemia em 1232. Se a cidade ficou tão arrasada, as áreas rurais a seu redor devem ter sido devastadas de forma semelhante pela doença.


A praga, Arnold Böcklin

Uma peste é como um turista compulsivo: ela cria ânimo quando um novo caminho é aberto. A invasão dos mongóis e sua presença unificadora sobre uma imensa área da Ásia ressuscitou o comércio ao longo das antigas rotas de caravanas e também serviu de entrada para a peste bubônica mover-se para o noroeste, em direção à Europa. Nos portos europeus, os ratos e as pulgas foram os portadores da peste. Após chegar à Europa em 1348, ela se espalhou rapidamente. Algumas cidades - Paris, Hamburgo, Florença, Veneza - perderam metade de sua população ou mais. Os vilarejos tinham mais chance de escapar da infecção. Ela se espalhava lentamente no inverno e, rapidamente, no verão. No total, talvez 20 milhões de europeus tenham morrido, ou uma em cada três pessoas. O monstro das pestes, a Peste Negra foi seguida em intervalos por pestes de menor vulto.

A escassez de alimentos das primeiras décadas foi substituída pela escassez de mão-de-obra. As terras aráveis já não faltavam. Em algumas regiões da Alemanha, havia mais vilarejos abandonados do que habitados, e os campos que um dia soavam alto com trabalhadores na colheita estavam agora cobertos de mato e de silêncio.

A Idade Média na Europa é geralmente considerada como tendo ido de 500 a 1500 d.C. Diferindo-se dos mil anos anteriores e dos 500 anos seguintes, a Idade Média foi mais introspectiva e menos fascinada com as conquistas individuais. O fato de essa era ter alcançado menos que o Império Romano, em termos materiais, não foi motivo de decepção. A maioria dos cristãos provavelmente acreditava que os cidadãos romanos, em seus anos de triunfo, eram essencialmente pagãos e que, por isso, muitas de suas conquistas eram de pouquíssimo valor.

Muitos dos líderes intelectuais e políticos da Europa durante a Idade Média não se sentiam inferiores ao Império Romano; acreditavam que estavam construindo seu próprio império, unidos por uma religião em comum. Chamaram-no de Sacro Império Romano e era uma prova inicial da federação europeia das últimas décadas do século XX.

BLAINEY, Geoffrey. Uma breve história do mundo. São Paulo: Fundamento Educacional, 2004. p. 116-119.

NOTA: O texto "Os perigos do clima e das doenças no medievo" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

As especiarias na Idade Moderna

Os "Mulus" colhendo pimenta preta. Ilustração francesa de As viagens de Marco Polo.

Na Antiguidade já eram conhecidas e valorizadas algumas das especiarias asiáticas que chegavam à Europa, onde eram consumidas pelas elites. Alarico, o general visigodo que em 408 sitiou Roma, exigiu como resgate para deixar a cidade, entre outras coisas, 3 mil kg de pimenta.

A pimenta (Piper nigrum), conhecida por nós como "do reino", era o principal desses produtos. Seu uso não era propriamente culinário, mas tratava-se, como a maioria das especiarias, de substância "quente", que servia para equilibrar os humores do corpo, que, segundo a medicina hipocrático-galênica, para ser saudável devia ter a tendência ao calor e à secura. Os temperamentos eram constituídos assim em função das temperaturas, as quais as especiarias (os temperos) podiam equilibrar (temperar).

As especiarias, portanto, mais que meros condimentos, eram substâncias preciosas, usadas como signo de distinção social, em um consumo suntuário, representando remédios provedores de calor e energia. Eram alimentos-droga, e a própria palavra droga vem de um termo holandês para "produto seco".

No século XV, o comércio de especiarias orientais na Europa foi objeto de guerras comerciais entre Gênova e Veneza, que venceu a disputa e dominou o comércio com os árabes e otomanos. Com a descoberta por Vasco da Gama, em 1498, do caminho às Índias Orientais pelo contorno do sul da África, pelo cabo da Boa Esperança, os portugueses passaram a predominar nesse tráfico e construíram todo um sistema de feitorias pela Ásia para garantir a posse desses tesouros vegetais. Para legitimá-los, contavam com várias bulas papais que lhes concederam, assim como para os espanhóis, o privilégio de exclusividade na exploração da África, Ásia e América, sob a justificativa da expansão da fé.

A segunda expedição portuguesa enviada para a Índia, após o retorno de Vasco da Gama, foi a liderada por Pedro Álvares Cabral, que descobriu o Brasil em 22 de abril de 1500 e depois continuou sua viagem para a Índia, onde combateu o reino local de Calicute e muitos morreram, incluindo Pero Vaz de Caminha.

Mais tarde, os portugueses derrotaram uma esquadra árabe-veneziana-indiana coligada na costa da Índia, em Diu (1509), e conquistaram sucessivamente Goa (1510), Malaca (1511), as ilhas de Amboíno, Ternate e Tidore (1514), Ormuz (1515) e se estabelecem em Colombo, no Ceilão (1519).

A primeira viagem ao redor do mundo, realizada pela expedição espanhola de Fernando de Magalhães, entre 1519 e 1522, tinha os cravos como "o principal objetivo de nossa viagem", conforme as palavras de Pigaffeta, autor do diário de bordo.

A pimenta vinha da costa ocidental da Índia, cujos reinos hinduístas de Calicute e Cochim a forneciam aos portugueses. A canela (Cinnamomum zeylanicum), do Ceilão. O cravo (Caryophylus aromaticus), das ilhas Amboíno, Ternate e Tidore, no arquipélago das Molucas, atual Indonésia. Das minúsculas ilhas de Banda, ao sul das Molucas, também procedia a noz-moscada (Myristica fragrans). Gengibre, ópio e outros produtos de menor importância completavam as cargas das naus mercantes. O padre jesuíta francês Pierre du Jaric, em 1608, exclamava: "Parece que Deus quis esconder aos homens em ilhas tão pequenas e tão remotas as iscas da glutonice".

A partir de 1595, os holandeses seguiram o mesmo caminho dos portugueses e passaram a se apossar das fontes das especiarias. Não reconheciam mais a autoridade do papa e predominaram militarmente tanto na Europa, onde venceram a guerra pela independência da Espanha, como no âmbito colonial. Numa verdadeira guerra mundial, tomaram o cravo da ilha Amboíno em 1605, fundaram Batávia, na ilha de Java, em 1609, depois tentaram se apossar do açúcar do Brasil, em 1624 e entre 1630 e 1654, e por fim tomaram o Ceilão e sua canela em 1658.

No Brasil, desde o século XVI, d. Manuel proibira o plantio das especiarias asiáticas, exceto o gengibre, mas, por outro lado, o comércio das drogas do sertão iria adquirir importância após o século XVIII, quando a quinina, a ipecacuanha (poaia), o cacau e outros produtos vegetais se tornaram importantes itens da exportação do Grão-Pará.

O holandês Gaspar Barléu escreveu, no século XVII, que as "drogas quentes", "temperadoras dos frios", eram, "a pimenta, o macis, a noz-moscada, a canela, o cravo, o bórax, o benjoim, o almíscar, o estoraque, o sândalo, a cochonilha, o índigo, o bezoar, o sangue-de-drago, a goma-guta, o incenso, a mirra, as cubebas, o ruibarbo, o açúcar, o salitre, a goma-laca, o gengibre". Também o açúcar e o tabaco são especiarias que, de produtos de luxo de consumo conspícuo, iriam se tornando aos poucos de alcance maciço, uma "vulgarização do luxo", como se refere o historiador Fernand Braudel, que destacou a importância central dessa massificação de mercadorias de luxo na formação do sistema mercantil moderno.

O comércio transoceânico de especiarias, tabaco, açúcar e outros produtos unificou pela primeira vez o globo, expandiu impérios ocidentais a um domínio inédito sobre o planeta, foi objeto de guerras e acumulou o capital da Revolução Industrial. O consumo cada vez mais intenso desses gêneros os tornou de primeira necessidade e fez de seu consumo um tempero da vida. A revolução que promoveram não foi apenas no gosto alimentar, mas na economia, nas relações internacionais e nos estilos de vida.

Henrique Carneiro. Especiarias. In: BETING, Graziella. História de A a Z: [volume] 3: Idade Moderna. Rio de Janeiro, Duetto, 2009. p. 74-75.

NOTA: O texto "As especiarias na Idade Moderna" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

As especiarias na Idade Média

A loja de especiarias, Paolo Antonio Barbieri

Derivadas da palavra latina species, que designava qualquer "espécie" de produto e, mais tarde, a partir do Baixo Império [período final do Império Romano do Ocidente], as substâncias aromáticas ou drogas de origem exótica, as especiarias suscitaram a cobiça e a fantasia de muitos ao longo de toda a Idade Média. Segundo o tratado do florentino Pegolotti, La pratica della mercatura (c. 1340), a lista das especiarias compreendia 286 produtos: eliminadas as repetições, há no total 193 espécies. Os produtos comumente utilizados na farmacopeia medieval e provenientes dos três grandes reinos - mineral (mercúrio, bórax), vegetal (anis, cardamomo), animal (âmbar, castóreo [substância segregada pelo castor]) - correspondiam a mais da metade da listagem. Depois, vinham os produtos de uso industrial, próprios para o tingimento (alume, índigo) ou utilizados na perfumaria (cânfora, almíscar), compondo 22% dos produtos listados. Finalmente, os condimentos, últimos da lista (20%), com as clássicas e conhecidas especiarias (pimenta, canela, cravo-da-índia). Além desses, constavam ainda da lista mel, laranja e açúcar, produtos que hoje não são mais considerados especiarias. Um mesmo produto podia servir indistintamente à farmacopeia, à cozinha e às manufaturas, o que dificulta sua classificação por uso e utilidade.

Mais de um quarto desses produtos, em particular as grandes especiarias orientais, provinha da Índia, da China e do Extremo Oriente. Caracterizavam-se pelo alto preço e pelo fato de já serem objeto de grande comércio entre indianos e árabes, antes de alcançarem o mercado europeu. A Pérsia e a Ásia central forneciam 13% dos produtos citados por Pegolotti, o Oriente Médio e o Egito, 20%. Da África, vinham o marfim e o incenso; das regiões pônticas (na costa do mar Negro), a sinopita e a argila vermelha da Armênia; dos países nórdicos, o âmbar, o estanho e o breu. Mas um quarto dessas especiarias recenseadas provinha, sobretudo, das regiões mediterrâneas, produtos de sua atividade extrativa, agrícola e artesanal.

A importância das especiarias na cozinha medieval foi por muito tempo creditada à necessidade de conservar os alimentos, ou à influência árabe, Todavia, um conhecimento mais apurado dos livros de receitas e das contas privadas passou a levar em consideração também os fenômenos de moda e gosto e a diversidade no uso dos condimentos segundo os países e os diversos meios sociais. O consumo diversificou-se, crescendo conforme subia a escala social. Um tanto abandonadas pela arte culinária do final da Idade Média, as especiarias continuaram como base da farmacopeia até a "revolução química" do século XIX. As receitas populares, reminiscências de receitas doutas esquecidas ou modificadas, utilizavam os "simples", mas os receituários e antidotários, expressão das teorias da polifarmácia herdada dos gregos e dos árabes, faziam uso intenso das especiarias em associações complexas.

Com o intuito de desenvolver o comércio das especiarias entre o Extremo Oriente e o Mediterrâneo, três grandes rotas intercontinentais foram, simultânea ou sucessivamente, utilizadas: o golfo Pérsico, nos primeiros tempos do Islã; o mar Vermelho e o Nilo, sob os fatímidas;  e as duas rotas mongóis da seda e das especiarias, atingindo o mar Negro no início do século XIV. A partir de 1350 e até o final da Idade Média, Alexandria e Beirute foram os grandes mercados desses produtos do Oriente. Sua supremacia só seria contestada em 1498, com a chegada às Índias de Vasco da Gama, que, pelo contorno da África, inaugurou a rota portuguesa das especiarias.

Michel Balard. Especiarias. In: BETING, Graziella. Coleção história de A a Z: [volume] 2: Idade Média. Rio de Janeiro, Duetto, 2009. p. 47-48.

NOTA: O texto "As especiarias na Idade Média" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.