"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 26 de janeiro de 2014

Jogos e cidadania entre os romanos

Outro aspecto da participação da cidadania na vida política consistia nos jogos de gladiadores. Pode parecer estranho relacionar cidadania e esses jogos sangrentos, mas esses espetáculos foram importantes na afirmação da cidadania. Os jogos de gladiadores têm origem muito antiga, tendo surgido com os etruscos. Na origem, eram lutas entre guerreiros em honra de um soldado valoroso morto em combate. Tinham, desde o início, um aspecto religioso, pois celebravam a vitória da vida sobre a morte. Com o passar do tempo, as lutas de gladiadores, juntamente com as caçadas e as execuções de condenados, passaram a fazer parte de um ritual de caráter a um só tempo religioso e legal. Em geral, os jogos eram realizados no Fórum, o mercado, ou, a partir de fins da República romana (século I a.C.), em anfiteatros. Era sempre a luta da civilização contra a barbárie, o humano contra o animal, o justo contra o injusto, um meio público de mostrar que a sociedade domina as forças da natureza e da perversão social.


Polegares para baixo, Jean-Léon Gérôme

Ao contrário do que se vê em filmes, a luta de gladiadores não se destinava à mera diversão do povo, nem a luta até a morte. Ao final de cada combate, o perdedor devia retirar o capacete e oferecer o pescoço ao vencedor, que não podia tirar-lhe a vida de motu próprio. Também não cabia a magistrado ou ao imperador decidir o destino do perdedor: apenas os espectadores podiam fazê-lo. A decisão, assim, estava nas mãos da multidão, a testemunhar um ato de soberania popular que só teria equivalência, no mundo moderno, com os referendos ou plebiscitos, em que todos se manifestam. O princípio da soberania popular manifestava-se, na arena, de forma direta e incisiva. Se nas eleições as mulheres não tinham direito ao voto, na arena todos podiam manifestar-se, prerrogativa que a cidadania moderna atingiria apenas no século XX. A condenação à morte tampouco era o resultado de um simples capricho, da mera avaliação de superioridade física de um lutador sobre outro. O principal quesito para que o perdedor fosse poupado era ter mostrado valentia.


Afresco. Anfiteatro em Pompeia. Século I d.C.

Os romanos possuíam o conceito de "humanidade" (humanitas), que tinha conotações que ultrapassavam a "urbanidade" (urbanitas). Humanitas implicava educação liberal, elegância de costumes, hábitos da classe alta. Assim, alguns historiadores consideram que a arena de espetáculos não servia apenas como lugar de integração de romanos ricos e pobres, mas também para separar os civilizados, que frequentavam os espetáculos, dos bárbaros.


Mosaico: luta de gladiadores. Século IV d.C.

Daí a ubiqüidade de arenas em cidades fronteiriças do mundo romano, daí sua localização próxima ao limite físico que separa o recinto urbano amuralhado do campo, daí sua presença no mundo de fala grega, como sinal de identidade romana, talvez mais eloqüente do que o domínio do latim - pois se, no Oriente, poucos dominavam o latim, muitos podiam, por meio dos espetáculos, tomar parte do ritual de identificação com a romanidade. Em toda parte, em cidades grandes ou pequenas, no Mediterrâneo ou nas fronteiras, a arena representava um lugar de afirmação da cidadania e da justiça. Nem todos os romanos tinham os mesmos sentimentos quanto aos jogos de gladiadores; havia quem os condenasse e mesmo os que os aprovavam tinham interpretações diversas sobre seu significado. Em qualquer caso, contudo, a palavra final estava nas mãos daqueles que ali se reuniam, homens e mulheres, ricos ou pobres.

Pedro Paulo Funari. A cidadania entre os romanos. In: PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla Bassanezi [orgs.]. História da cidadania. São Paulo: Contexto, 2005. p. 71-72.

NOTA: O texto "Jogos e cidadania entre os romanos" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

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