"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Maçonaria e descolonização

1. Maçonaria: História e Ideologia. As origens primeiras da maçonaria são remotas e um tanto obscuras, havendo notícias de caráter lendário que as situam no antigo Egito, e algumas notícias históricas que marcam sua presença na Europa da Baixa Idade Média. De uma maneira geral, congregava artesãos, principalmente ligados à construção ("masson" = pedreiro), que se uniam para defesa de seus interesses; ao longo do tempo, porém, passou a desenvolver ritos e símbolos secretos, esotéricos, só acessíveis aos iniciados, diferenciando seus membros do restante da população.

No entanto, sua presença mais evidente na Europa se daria a partir do século XVII, e sua irradiação "se insere num dado contexto social, mental e político, que se diria preparando para acolher a 'boa-nova' dos pedreiros-livres".

Durante o seu desenrolar a seita espalhou-se por toda a Europa, seguindo as rotas comerciais e fixando-se, primeiramente, nos portos e nas grandes cidades. Em pouco tempo, Londres, Roma, Paris, Berlim, Haia, Lisboa foram ligadas pela confraria laica dos irmãos, cujos propósitos se conformavam na contração da "cidade nova", figurada segundo o ideário burguês da Ilustração.


Iniciação de um candidato. 
Gravura do final do século XVIII

Impulsionada pelas tensões e questionamentos do Antigo Regime no século XVIII, a maçonaria logo se definiu como uma sociedade de caráter eminentemente político e prático. Enquanto os intelectuais da Ilustração mantiveram-se num debate ao nível das ideias, os maçons incorporaram seus valores e difundiram-nos através de uma organização que visava a transformação da sociedade. Das ideias à prática, entretanto, não deixou de assumir aspectos contraditórios, como notou, excelentemente, Paul Hazard: "Paradoxo: indivíduos que voltam as costas à Igreja frequentam uma capelinha escura. Indivíduos que não querem mais ritos ou símbolos recorrem aos símbolos e aos ritos: a iniciação, as colunas, a tela pintada que representava o templo de Salomão, a estrela flamejante, o esquadro, o compasso, o fio de prumo. Indivíduos que não querem mais mistérios, mais véus, que chegam a pedir que as negociações entre os Estados sejam feitas à vista de todos, comprometem-se ao segredo absoluto [...]. Racionalistas, vão procurar em épocas recuadíssimas os elementos de um misticismo que posteriormente, e nalguns deles, substituirá a razão. Anti-sectários, fundam uma seita. Todavia, para além das aparências, aquilo que neles se topa é o espírito do século." 

A maçonaria definiu-se pelo propósito de construir uma nova sociedade, mediante "a guerra sem quartel aos tiranos, aos déspotas e aos privilégios; pelo deísmo - e por esse culto 'iluminado' ao grande arquiteto do universo, a que Voltaire, entre outros, havia chegado já, muito antes de ter sido recebido, em apoteose, no grau de aprendiz, na loja parisiense das Nove Irmãs (1778). Identificando-se também com os princípios liberais, a seita encontrou um terreno fértil para sua expansão junto à burguesia em ascensão. De tal forma que "a maçonaria é adotada e aceita por todos os que não querem passar por reacionários em fins do século XVIII e princípios do XIX".

2. A Maçonaria em Portugal. O estabelecimento da primeira loja maçônica em Portugal deu-se entre os anos 1735 a 1743, pela ação de um suíço e um francês, Jean Custon e Jacques Mouton, que acabaram sendo sentenciados em 1744 pela Inquisição. Foi somente no governo de D. José I que se abrandou a repressão antimaçônica e pôde expandir-se ela para fora de Lisboa, em cidades como Funchal e Coimbra. No governo de D. Maria I, retornou a perseguição sistemática aos pedreiros-livres, quando as notícias da revolução francesa faziam tremer os monarcas absolutistas. Entretanto, por esse momento, sua penetração já se deva entre indivíduos das camadas mais abastadas e intelectuais, das quais não se excluía parte do clero. No decurso das invasões francesas (1807-1810), criaram-se as condições para a proliferação das lojas maçônicas na metrópole. Apesar de voltarem a sofrer novas perseguições e proibições em 1810 e 1818, homens importantes da política portuguesa já haviam sido ganhos pelos seus ideais, dentro de sua prática de não apenas transformar seus membros em revolucionários, mas também de atrair pessoas que detivessem parcelas do poder, ou, então, deixar-se utilizar por aqueles que viam nela a possibilidade de realização de seus propósitos.

Posteriormente, nas lutas liberais e, num outro estágio, republicanas, a maçonaria teve um papel vital pela sua contribuição ideológica e na formação de uma atmosfera intelectual propícia que tornou possível a instauração do liberalismo em Portugal.

3. A Maçonaria na América Colonial. Apesar da fraternidade universal apregoada pela maçonaria, ela sempre mostrou uma impressionante facilidade em nacionalizar-se, quer dizer, em adaptar sua ação às condições específicas regionais. Sua eficiência em boa parte se deveu a essa capacidade mimética ideológica e prática, como assinalou Joel Serrão: "As ideias aspirações dos pedreiros-livres concretizaram em obras - na efetiva construção política da cidade nova, talhada não só pelo figurino iluminista burguês, mas também de acordo com as raízes da histórica local em que se inserem [...] Ora, no momento em que procedem a tal inserção, os pedreiros-livres caem sob a alçada da história."

Também na América colonial a maçonaria soube dar um corpo próprio, ideológico e organizacional à luta dos colonos. Nessa região tornou-se ela eminentemente libertadora, embora com isso continuassem combatendo indiretamente o absolutismo das nações europeias. "O papel da maçonaria - sintetiza Caio Prado Jr. - foi articular uma situação própria e interna de uma colônia europeia à política geral da Europa. A Maçonaria só se interessa pela colônia na medida em que contribui para atingir um dos redutos do absolutismo europeu, contra quem, de uma forma geral, ela se dirigia. Tratava-se, no caso, da monarquia portuguesa. Coisa semelhante se passa, aliás, com as demais colônias americanas. Daí o interesse da maçonaria em apoderar-se e manejar uma situação que se desenhava nas colônias da América e que, de uma forma ou de outra, poderia servir aos seus propósitos."

Junto com as obras e com as ideias da Ilustração a maçonaria penetrou e expandiu-se por toda a América, e a ela filiaram-se libertadores, como Benjamim Franklin, Jefferson, O'Higgins, San Martín e Miranda. A Inglaterra esteve particularmente empenhada na difusão dessa sociedade nas colônias espanholas. Esse interesse não deixava de ligar-se ao de sua expansão comercial na região: "Não podemos nos esquecer que os interesses comerciais dos mercadores e fabricantes das cidades de Liverpool e Birmingham se achavam quase nas mãos da maçonaria inglesa. Aliás, a Inglaterra havia colocado representantes em quase todos os portos da América, mais ou menos encobertos, que constituíam verdadeiros agentes, ligados ao contrabando, introdução de negros e operações em diversos ramos." Isso era visível no porto de Cádiz: "Em tal cidade os ingleses haviam instalado a direção de suas relações mercantis com a América, na base de um regulado contrabando de permissões [...]. As lojas dividem-se e têm seus focos principais nos portos; entre os mercadores e marinheiros expande-se facilmente a maçonaria." Se em Portugal e no Brasil predominou a maçonaria francesa, na Espanha e suas colônias predominou a penetração das sociedades de origem inglesa, o que nos permite adiantar e ver a maçonaria também como um dos instrumentos utilizados pelas grandes nações competidoras (França e Inglaterra) para a disputa comercial, para furar os esquemas de alianças que se estabeleciam (como as existentes entre França e Espanha, e Inglaterra e Portugal) e para solapar as bases coloniais das nações rivais. Neste sentido, participou das lutas de independência da América espanhola: "Os grandes chefes maçônicos latino-americanos terão na Inglaterra e nas lojas inglesas a sua iniciação, bem como o apoio externo de que necessitam para a realização de seus fins. Apoio que não se processa de forma radical, pela posição da política inglesa, principalmente na fase de luta contra Napoleão, mas que se torna efetivo pelo fato de funcionarem livremente na Inglaterra, organizações ocupadas em fins libertadores."

4. A Maçonaria no Brasil. Em Portugal e no Brasil coube à maçonaria francesa a sua difusão, já que nessas regiões os interesses ingleses estavam assegurados, não encontrando quase obstáculos à sua penetração comercial, o que não quer dizer que não tenham surgido lojas maçônicas de influência inglesa. Alguns núcleos de orientação inglesa se implantaram no Brasil, porém, mostraram-se muito mais conservadores que os de orientação francesa, principalmente quanto às proposições de independência. As ligações políticas entre Grã-Bretanha e Portugal mantinham aquela afastada de uma intervenção direta na luta de independência, como fizera na América espanhola.

Vêm de mais ou menos 1788 as primeiras notícias de lojas maçônicas no Brasil. Introduziram-se elas com as ideias iluministas adquiridas por estudantes brasileiros na Europa. Estes, após concluírem seus cursos na Universidade de Coimbra, completavam os estudos na França e Inglaterra. Particularmente em Montpelier, que era considerada um dos focos maçônicos franceses e por onde passaram José Joaquim da Maia, Álvares Maciel, Domingos Vidal Barbosa etc.

Se na Europa a difusão da maçonaria coincidiu com um momento de ascensão da burguesia, e entre ela os pedreiros-livres ganhavam seus adeptos e se fortalecem, no Brasil foi entre os filhos dos grandes proprietários rurais, e pouco mais tarde entre eles próprios, que a seita teve êxito. À medida que os interesses da aristocracia rural brasileira conflitavam frontalmente com os metropolitanos, a maçonaria e ilustração puderam dar forma e conteúdo ideológico às suas aspirações de independência. Ocorreu aí "A nossa breve Época das Luzes, coincidindo muito felizmente com um momento em que a superação do estatuto colonial abriu possibilidades para realizar os sonhos dos intelectuais. Por isso, no Brasil, a Independência foi o objetivo máximo do movimento ilustrado e a sua expressão principal; por isso, nesse momento, o intelectual considerado como artista cede lugar ao intelectual considerado como pensador e mentor da sociedade, voltado para a aplicação prática das ideias [...] Em poucos momentos, quanto aquele, a inteligência se identificou tão estreitamente aos interesses materiais das camadas dominantes, (que de certa forma eram os interesses reais do Brasil), dando-lhes roupagem ideológica e cooperação na luta."

Não nos cabe aqui reproduzir toda a discussão que existe em torno da participação ou não da maçonaria nos primeiros movimentos de independência do final do século XVIII. Muitos historiadores, principalmente os de vínculos maçônicos, procuraram aproveitar-se da confusão que se criou entre sociedade secreta e maçonaria, ou então, da participação de algum maçom nesses movimentos, para propagandear a importância da sociedade nas conjuras. As sociedades secretas no Brasil são anteriores às seitas maçônicas. Como notou Antônio Cândido, as sociedades literárias do século XVIII recorriam "ao segredo, para preservar-se, repudiando a influência francesa e incorrendo na sua ira ao querer formular uma atitude moderna: laica, civil, interessada no progresso das luzes e da sociedade". Não tinham, porém, finalidades políticas explícitas como a maçonaria. Representaram, todavia, um momento de transição, "de passagem da gratuidade à participação na vida social e da subordinação clerical ao pensamento livre; passagem do escritor marginal que se justapõe à sociedade e procura congregar-se politicamente para, desse modo participar organicamente da vida nacional".

MENDES JR., Antonio; RONCARI, Luiz; MARANHÃO, Ricardo. Brasil História Texto e Consulta 2: Império. São Paulo: Brasiliense, 1983.

NOTA: O texto "Maçonaria e descolonização" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

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