"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

A cultura jovem dos anos 50: do rock' n' roll à geração beatnik

O consumo musical, nas décadas anteriores ao surgimento do rock' n' roll, dividia-se de maneira compartimentalizada no mercado: música para brancos [...] e música para negros [...]. Grande parte da população urbana branca consumia música erudita e/ou música popular romântica [...], ou, então, músicas mais rápidas no balanço diluído das grandes orquestras brancas de swing [...]. Até então, os filhos dessa classe média branca não diferiam grandemente dos pais quanto ao gosto musical e ao estilo de vida. Só a partir do surgimento do rock' n' roll é que, efetivamente, se nota a caracterização de uma cultura jovem.

Por volta de 1950, as pequenas gravadoras exploravam dois importantes mercados específicos: o rhythm and blues negro e a música dos brancos rurais - country-and-western -, também tão marginalizada quanto a música negra, pois era a música dos brancos pobres. Da união desses dois tipos de música surgiria o estilo chamado rock' n' roll, transformando todos os esquemas das grandes gravadoras [...] e, num sentido mais amplo, a própria cultura norte-americana e mundial.

Por ser um estilo composto de elementos de origem diversa - "música negra" e "música branca" -, o rock' n' roll também seria encarado, na racista sociedade norte-americana de então, como race music (música de negro). E, exatamente por essa qualidade, ele foi incorporado por outro grupo que começava a se manifestar no cenário dessa sociedade: a juventude.

[...] o rock' n' roll funcionou como uma inversão psicológica na relação entre dominador (branco) e dominado (negro) que prevalecia na sociedade norte-americana. A cultura promovida pela juventude, a partir do rock' n' roll, seria uma forma de os jovens de classe média branca se colocarem em relação à sociedade estabelecida por seus pais, assumindo, mesmo que inconscientemente, certos valores da cultura negra como bandeira.

Apesar do estilo contestatório do rock' n' roll, essa criação de base negra (blues e rhythm and blues) foi uma mercadoria estilizada pelas grandes gravadoras e vendida ao público branco a partir de meados da década de 1950. Na grande maioria dos casos, trata-se de cópias (covers) que cantores brancos fazem, "cobrindo" material originalmente de músicos negros [...]. São óbvias, portanto, as razões por que o primeiro rock de sucesso, "Rock around the clock" (1954), era de um simpático branco de cabelos louros chamado Bill Halley, o mesmo acontecendo com a superestrela do rock' n' roll, Elvis Presley. [...] Cantando com a voz rouca e sensual de um negro, abriu caminho para a aparição, em âmbito nacional, de rock' n' rollers negros como Chuck Berry, Little Richard e Fats Domino. O rock' n' roll branco, além de Elvis, apresentou também algumas figuras brilhantes como Carl Perkins, Jerry Lee Lewis e Buddy Holly, entre outros.


Elvis Presley

A partir de então, a indústria cultural norte-americana desenvolveu-se a mil por hora. Gravadoras, rádios, cinema e televisão, percebendo o mercado que se abria com o rock' n roll e seu estilo de vida, voltaram-se para essa emergente cultura jovem, estimulando cada vez mais o seu consumo.

[...]

Apesar de chocar os padrões morais da época, o rock' n' roll dos anos 50 não era uma música politicamente engajada. Muito pelo contrário, entre seus temas principais figurava a exaltação à dança e ao ritmo da música, às histórias de colégio, além da descrição de carros e relacionamentos amorosos com as garotas. [...]

Diante de tais incompreensões, alguns grupos de jovens optavam pela delinquência juvenil, fazendo disparar as estatísticas de crime e violência. Nascidos antes do ataque, pelos japoneses, à base americana de Pearl Harbor, no Havaí, [...] que provocou a entrada dos Estados Unidos na II Guerra Mundial, eles cresceram em meio ao conflito e, de certa forma, no seu prolongamento, evidenciado no fantasma da Guerra Fria. Mesmo gozando de todos os privilégios da classe média branca norte-americana, esses jovens não podiam escapar a um sentimento de vazio existencial, produto de uma sociedade consumista e materialista; ou a um sentimento de culpa, mesmo que inconsciente, pelas desigualdades sociais e raciais dessa sociedade. Outros, oriundos de lares desajustados, reflexo da própria guerra e da vida moderna norte-americana, eram incapazes de se enquadrar no estilo de vida americano. [...]


A situação de revolta da juventude forneceu farta matéria para o cinema da época, que criou uma galeria de tipos, desde o delinquente juvenil homicida (ou suicida) até o rapaz bem-intencionado, de boa família, que por forças alheias à sua vontade, era desviado do "bom caminho". Três filmes-chave refletiram com extrema atualidade esse problema. O selvagem, de 1953, com Marlon Brando, descreve os momentos vividos por uma pequena cidade subitamente invadida por um bando de motoqueiros. É, de certa forma, uma parábola do choque entre a sociedade organizada e o potencial "selvagem" de uma juventude sem rumo. Juventude transviada, de 1955, com James Dean, revela os problemas individuais dos "rebeldes sem causa" dos anos 50. Mas é Sementes da violência, também de 1955, que expõe de modo mais didático (o tema do filme é a educação) toda a carga de hostilidade no relacionamento entre a juventude marginalizada e a sociedade. A música que anuncia o filme é "Rock around the clock", o primeiro grande hit do rock' n' roll e um verdadeiro hino de guerra dos adolescentes de então. Essa música também é utilizada como uma referência ao conflito entre professores (que representam as regras estabelecidas pela sociedade) e alunos, numa cena altamente simbólica em que os jovens rebeldes quebram toda a coleção de discos com que o bem-intencionado mestre tenta iniciá-los no jazz tradicional.

[...]

A partir dos personagens desses filmes, o cinema conseguiu retratar os dilemas de uma geração, ao mesmo tempo que ofereceu um modelo visual e ideológico para a juventude dos anos 50.

O ídolo da época foi James Dean, que fez os jovens do mundo todo imitarem suas caretas, trejeitos, roupas e corte de cabelo. [...]

O mito cinematográfico James Dean simbolizava tudo o que era jovem, moderno, norte-americano e diferente. Ele inspirava o traje (uniforme) dos jovens, que, com seu jeans apertado e sua jaqueta de couro preta, adotavam uma atitude de rebeldia contra a sociedade consumista, de resistência contra as rígidas convenções sociais do universo adulto, e se entregavam à violência, às bolinhas, ao rock' n' roll e às experiências sexuais.

Não é coincidência o fato de James Dean e o rock' n' roll terem invadido a imaginação do jovem dos anos 50. Esses dois elementos expressavam uma mudança no universo de valores da juventude, algo que esse público não entendia completamente, mas a que intuitivamente aderia, e que a indústria cultural da época começava a explorar na forma de mercadoria. [...]

Mas nem só de jovens transviados e rock' n' roll viveram os anos 50. A Guerra Fria e a cultura de consumo não contribuíram apenas para um sentimento de inquietação em relação aos adolescentes; elas também favoreceram o surgimento de um pequeno grupo de jovens universitários que, através de um movimento literário, tentavam oferecer um estilo de vida alternativo ao mundo materialista da sociedade norte-americana.

Em 1957, com a publicação de On the road (Pé na estrada), de Jack Kerouac, eclodiu no mundo burguês da América de Eisenhower um perturbador fenômeno que Kerouac chamou de beat. Esse termo podia sugerir a busca de uma "purificação do espírito" (beatitude), com influência das religiões orientais (budismo, zen-budismo etc.). Também se referia a um estilo de vida aventureiro adotado pelos que, sem eira nem beira, andavam à deriva pelas estradas da América, em busca de aventura, aproveitando-se da opulência material do estilo de vida americano. Por último, tinha ainda conotações musicais referentes ao be-bop e ao cool jazz.

Ser beat, por extensão, significava fluência, improviso, ausência de normas preestabelecidas na vida e na arte. Significava também a busca de um envolvimento profundo que traz música, balanço, liberdade e prazer, na procura da realidade marginal das minorias raciais e culturais no interior da sociedade norte-americana.

Dessa forma, o termo "geração beat" (beat generation), assim como a cultura produzida por ela, não designa um movimento estético-literário organizado em torno de um programa de objetivos preestabelecidos, mas refere-se a poetas e escritores (Jack Kerouac, William S. Burroughs, Allen Ginsberg, Lawrence Ferlinghetti, Gregory Corso, Gary Snyder etc.) que, em constante deslocamento, viviam a América dos anos 50.

[...]

Aparentemente afastados do rock (os beats nunca esconderam sua aversão pelo rock' n' roll adolescente dos anos 50), os autores beats seriam de grande importância para o rock dos anos 60, influenciando músicos como Bob Dylan, John Lennon e Jim Morrison, dados aos temas críticos do estilo de vida americano: drogas, bebedeiras, sexo livre, visões cósmicas, utopias e o cotidiano. Pode-se dizer que os poetas e escritores beats tentaram fazer a ligação direta entre a arte e a vida no mundo moderno, antecipando um dos princípios básicos dos movimentos jovens dos anos 60, que era obedecer aos instintos de uma cultura alternativa ligada ao cotidiano, independentemente do reconhecimento da cultura oficializada pela sociedade.


BRANDÃO, Antonio Carlos; DUARTE, Milton Fernandes. Movimentos culturais de juventude. São Paulo: Moderna, 2008. p. 26-34.

NOTA: O texto "A cultura jovem dos anos 50: do rock' n' roll à geração beatnik" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.


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