"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

O golpe de 64 e a ditadura militar 2: a luta armada

A verdade ainda que tardia (detalhe de painel instalado na Câmara), Elifas Andreato

"A guerrilha é uma arma do povo", disse Fidel Castro em outubro de 1967. Portanto, fazê-la sem o apoio da população "é caminhar em direção a um inevitável desastre". A guerrilha isolada afasta o povo da revolução. Esse distanciamento e a solidão ideológica levam às posições extremistas, anulando o potencial revolucionário.

[...]

A guerrilha brasileira foi "desautorizada" pelo PCB desde a viagem de Carlos Mariguela a Cuba [...] em agosto de 1967. O PCB enviou uma carta ao PC cubano, informando que Mariguela não o representava e podia ser expulso do partido por ir a Cuba sem a sua autorização. A resposta de Mariguela revela como certa militância combativa julgava a cúpula do PCB:

Uma direção pesada como é, com pouca ou nenhuma mobilidade, corroída pela ideologia burguesa, nada pode fazer pela revolução. Eu não posso continuar pertencendo a esta espécie de Academia de Letras, cuja única função consiste em se reunir. [...] Em minha condição de humanista, à qual jamais renunciarei, que não pode ser dada nem retirada pelo Comitê Central, pois o Partido Comunista e o marxismo-leninismo não têm donos e não são monopólios de ninguém, prosseguirei pelo caminho da luta armada, reafirmando minha atitude revolucionária e rompendo definitivamente com vocês.


De volta ao Brasil, Mariguela fundou a ALN. O Jornal do Brasil, de 5 de setembro de 1968, publicou a síntese de um longo artigo no qual Mariguela expunha a "estratégia global da guerrilha no Brasil". Não se tratava de uma visão sonhadora. Reconhecia que "os povos que lutam pela libertação jamais se preocupam com o tempo de duração de sua luta". Também não era muito realista, pois negava o foquismo, mas não sabia indicar outro caminho.

As ideias de Mariguela [...] refletiam a disposição das esquerdas armadas em geral: embora sem muita convicção teórica, havia uma certeza - era preciso lutar. Lutar para não se diluir na burocracia do PCB. Lutar para encontrar caminhos e, principalmente, como dizia o programa da ALN, derrubar a ditadura, acabar com o latifúndio, tomar o poder e formar um governo revolucionário.

A ALN se destacou  na guerrilha urbana, mas não foi o único grupo a combater nas cidades ou a tentar estabelecer uma teoria sobre a luta armada. Quase dois anos antes, em 1966, a AP realizava um congresso clandestino no Uruguai, aceitando a luta armada baseada na teoria do foco.

Grupos como a VPR, liderada pelo ex-capitão Carlos Lamarca, começaram a agir. Lamarca, aliás, tinha sido treinado na luta antiguerrilheira pelos norte-americanos, no Panamá. Ele lutou nas cidades e nos campos. No Vale do Ribeira, em São Paulo, rompeu um cerco de 10 mil soldados, fugindo espetacularmente depois de tomar um caminhão das forças de repressão. Já o MR-8 fez a sua estréia em 1969, sequestrando o embaixador dos Estados Unidos.

Participaram da luta armada 5 mil ou 6 mil homens, um contingente insignificante em relação à população brasileira, estimada em 100 milhões de habitantes, em 1970. Não houve, como pretendiam certo otimismo das esquerdas e o pânico do governo militar, uma "guerra civil".

O terrorismo marcou a atuação dos dois lados. O terrorismo do Estado apareceu como uma "defesa natural": uma vez que a censura à imprensa garantia o silêncio sobre a brutalidade "oficial", divulgou-se a ideia de que se combatia os fanáticos que "traíram" o Brasil. Já o terrorismo da esquerda foi mostrado com estardalhaço, sendo as suas vítimas exibidas como mártires inocentes que os comunistas imolavam, deixando órfãos e viúvas.

As esquerdas desgastaram-se muito nesse processo. Talvez por isso - ou por uma decisão tática decorrente da sua melhor organização fora das cidades - o PC do B tenha privilegiado a guerrilha no campo, sem abandonar a urbana. Surgiu, então, a principal guerrilha brasileira. Militantes do PC do B, alguns treinados na China, basearam-se no sul do Pará, dando origem à Guerrilha do Araguaia, às margens desse rio. Eles começaram a atuar na região a partir de 1967 e, em 1970, compunham um grupo de 69 guerrilheiros.

Enquanto a guerrilha na selva ia se fortalecendo, a urbana entrava em declínio. Em 1972, o PC do B tinha três "destacamentos" no Araguaia, cobrindo uma área de aproximadamente 7 mil quilômetros quadrados. Diante de tal êxito, o Exército preparou uma grande operação de "desmonte".

Para combater a Guerrilha do Araguaia, o Exército fez três campanhas, entre abril de 1972 e janeiro de 1973, empregando cerca de 10 mil homens. O número de soldados, o pesado armamento envolvido e a duração do conflito levaram muitos a pensar que se tratava uma guerra civil no Pará. Na verdade, havia o confronto entre pouco mais de sessenta guerrilheiros competentes contra uma força repressiva inepta.

Os guerrilheiros introduziram-se no sul do Pará como posseiros. [...]

Para cativar o povo, os guerrilheiros marxistas costumavam frequentar forrós e candomblés. Alguns se estabeleceram com precárias farmácias e ofereceram os seus "serviços médicos", inestimáveis na região, a quem precisasse. Também participaram das lutas contra os capangas dos latifundiários, afugentando os grileiros contratados para expulsar os posseiros.

Já as forças de repressão, facilmente identificáveis, chegaram torturando. Em Xambioá (GO), a partir de abril de 1972, soldados da Aeronáutica prenderam e torturaram posseiros - queriam "dicas" sobre os "terroristas". Na busca de informações e na "limpeza da área", invadiram casas e incendiaram roças e vendas. Houve casos de moradores espancados, amarrados e exibidos nas poucas aldeias, como exemplo aos que se negassem a cooperar.

Nem os padres escaparam da brutalidade. Existem inúmeros depoimentos sobre a ação militar na região. Cometiam-se atrocidades incompreensíveis para os posseiros [...]. As tropas federais não pouparam sequer os índios. Os suruís tiveram a sua aldeia "desmontada" e cortada por uma estrada para tráfego dos veículos militares; muitos deles foram forçados a servir de "guias" na selva.

O povo da floresta solidarizou-se com os guerrilheiros. Mas não se tratava de uma solidariedade revolucionária nem evitou o aniquilamento da guerrilha. O Exército, a Aeronáutica e as polícias federal e estaduais, ajudados pelos capangas das multinacionais e dos latifundiários, "aprenderam" a lutar. Usando metodicamente a violência, fizeram prevalecer a sua vantagem material. A proporção era de 145 soldados para cada guerrilheiro.

A repressão também recorreu ao apoio "internacional". [...] 

[...] 

A guerrilha foi vencida.

Em uma ditadura militar, orientada pela Doutrina de Segurança Nacional, levantar-se em armas contra o regime constitui um crime gravíssimo. Esperava-se que os guerrilheiros sobreviventes recebessem as mais duras penalizações. Mas isso não aconteceu.

Eles foram condenados a penas de cinco a sete anos de cadeia. Nenhum guerrilheiro respondeu pelos crimes que a Lei de Segurança Nacional punia severamente. A maioria das acusações limitou-se a "prática ilegal de militância política" ou "reorganização de partidos ilegais".

Por quê?

Porque o julgamento desses homens traria a público a Guerrilha do Araguaia. Ao governo Médici não interessava "despertar" a curiosidade interna, e principalmente, do Exterior sobre o combate. Para o governo, dentro do seu triunfalismo, a Guerrilha do Araguaia não aconteceu "oficialmente". Os sobreviventes foram "desqualificados" com penas leves; os mortos, ignorados: legalmente nunca existiram - os seus corpos despedaçados perderam-se na selva. Embora utilizando 10 mil soldados e os recursos logísticos dos latifundiários e das multinacionais, que incluíam até helicópteros, ainda hoje o Exército silencia sobre o assunto.

[...]

A violência da esquerda era consequência das dificuldades da luta armada. Por exemplo, ao se matar um guarda bancário em um dos inúmeros assaltos praticados no período: a morte de inocentes era um risco assumido, mas não desejado. As forças do Estado, porém, torturavam e matavam como norma. Exemplos claros foram a Oban e, mais tarde, o Esquadrão da Morte, criado e liderado pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury.

O Esquadrão da Morte, organização à margem da lei e de brutalidade conhecida, recebeu a proteção de oficiais, políticos e até de juízes sintonizados com a ditadura. Entre 1967 e 1974, "executou" centenas de "inimigos do Estado". Seu objetivo era o extermínio da "escória" - subversivos e criminosos comuns -, dentro de um programa de "limpeza social" de inspiração claramente fascista.

O Estado usou todos os artifícios disponíveis para mascarar a sua brutalidade como um combate civilizado contra os inimigos da pátria. O cerco a Carlos Mariguela, em 1969, por exemplo, envolveu uma série de torturas e invasões de residências, culminando com o fuzilamento do líder comunista em uma rua de São Paulo. A televisão, controlada pela ditadura, noticiou a morte de Mariguela como um ato de defesa dos representantes da lei, que teriam sido atacados pelo guerrilheiro. [...]

[...]

A guerra suja ficou do lado oficial. Antes da derrubada de João Goulart, a direita já havia optado pelo célebre "os fins justificam os meios". Conspiração, corrupção, delação - valeu tudo. Os agentes provocadores foram usados com grande eficiência, destacando-se o cabo Anselmo, que liderou o motim dos marinheiros em 1964, colaborando para a desestabilização do governo. [...]

Os revolucionários de origem marxista não queriam um processo violento. Reagiram com violência quando foram atacados - era a única saída. No geral, os comunistas não reivindicavam a violência como meio de obter a vitória. Paradoxalmente, a justificativa ou o apelo à violência surgiram em setores católicos. O padre Lages, após ser torturado pela sua luta revolucionária contra a ditadura, afirmou em entrevista ao jornal France Observateur:

Faz muito tempo que nas escolas católicas ensina-se que o povo tem o direito de matar o tirano. E o grande tirano de nossos dias é o imperialismo, são os grupos econômicos norte-americanos e aqueles que fazem o jogo desses grupos. [...] Respeitamos Marx, porém consideramos que ele não é infalível e não podia haver previsto nossa situação. É impossível acabar com o imperialismo e com os grupos econômicos que fazem seu jogo sem recorrer à violência. A não-violência é uma ideia muito poética.

Mesmo assim, o padre Lages justifica a sua violência:

À violência estabelecida temos de responder com a violência das massas, com uma revolução socialista, totalmente brasileira, humana, se bem que violenta. Porque a violência já está presente. Está em todas as partes, ao nosso redor; na fome, na prostituição de meninas, na morte dos recém-nascidos, nestes crimes praticados pelo imperialismo.

Como se vê, há violência e violência. Mas o que os militares fizeram foi algo que transcendeu à natureza da própria violência - a violência do regime militar corrompeu e ultrajou a dignidade humana.

CHIAVENATO, Júlio José. O golpe de 64 e a ditadura militar. São Paulo: Moderna, 2006. p. 167-175.

Próximo post: O golpe de 64 e a ditadura militar 3: a repressão.

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