"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 13 de julho de 2013

Guerreiros: A "honra heroica" e a "honra comum"


Combate de Ajax e Ulisses pelas armas de Aquiles. Cerâmica. Artista desconhecido. Ca. 500 a.C. 

Num artigo sobre o ideal guerreiro e aristocrático da antiga Grécia, o historiador francês Pierre Vernant concentrou a sua atenção no código de honra. Fazendo a distinção entre a “honra comum” e a “honra heróica”, ele analisou na Ilíada o destino, ao mesmo tempo “exemplar e ambíguo”, de Aquiles.


A honra heróica que orienta Aquiles, ou da qual ele é encarnação, consiste na busca de uma existência extraordinária que transcende a vida comum, numa perspectiva muito próxima ao ideal guerreiro das confrarias indígenas relatadas por Clastres. Vernant caracterizou a honra heróica do seguinte modo:

“Não são [...] nem as vantagens materiais nem o primado da condição nem as marcas de honra que têm o poder de levar um homem a se empenhar a sua psuché em duelos sem trégua onde se conquista a glória. Se apenas se tratasse de ganhar os bens que se gozam em vida e que os abandonam com ela, não se encontraria um único guerreiro, segundo Sarpedon, que não se escondesse no momento em que fosse preciso arriscar-se a tudo perder no jogo. A verdadeira razão do feito heróico reside alhures, não ressalta de cálculos utilitários nem da necessidade de prestígio social; poder-se-ia dizer que ela é de ordem metafísica; ela é própria da condição humana, condição que os deuses não fizeram apenas mortal mas também submetida, como toda a criatura deste mundo, após a floração e plenitude da juventude, ao declínio das forças e à decrepitude da idade. O feito heróico enraiza-se na vontade de escapar ao envelhecimento e à morte, por “inevitáveis” que sejam, de a ambos ultrapassar. Ultrapassa-se a morte acolhendo-a em vez de a sofrer, tornando-a a aposta constante de uma vida que toma, assim, valor exemplar e que os homens celebrarão como modelo de ‘glória imorredoura’”.

O inexorável ciclo biológico que aprisiona todos os seres vivos às mesmas leis do envelhecimento e da morte, nivela homens e animais, reduzindo-os à condição de objetos das forças naturais. Superar a morte “acolhendo-a em vez de a sofrer” significa, pois, não abdicar da condição de sujeito, no instante mesmo em que toda vontade se anula e, com ela, o próprio sujeito. Essa audaciosa e metafísica luta contra a morte consiste em sua convocação, pelo guerreiro, no momento mais improvável de sua vida: no auge de sua juventude.

A solução grega para esse ideal de perfeição absoluta encontra-se na kalos thánatos, na “bela morte”: na glória imperecível da vida breve, na morte em combate no vigor da juventude.

A honra heróica é, portanto, a exacerbação do ideal guerreiro, que acaba fazendo da guerra uma finalidade em si mesma, uma vez que se converte num valor absoluto da vida.

Ao lado da honra heróica existe a honra comum, que opera com bastante realismo a dicotomia guerreiros e não guerreiros. Nas sociedades sem classes, como as indígenas, a separação entre guerreiros e não guerreiros assumia a forma de oposição entre o masculino e o feminino, obscurecendo a oposição entre guerra e trabalho. Ao contrário, esta última ganha muita nitidez nas sociedades de classes, pois a aristocracia guerreira encontra-se desligada da produção, ao passo que a produção e o trabalho árduo deixam de ser uma função propriamente feminina para se tornar condição de existência de homens não guerreiros, isto é, de “trabalhadores”. Essa sujeição ao trabalho, de homens empobrecidos, dá origem então aos humildes. Assim, nas sociedades de classes, a oposição entre guerreiros e não guerreiros deixa de se manifestar na forma de oposição entre masculino e feminino para ganhar a forma de oposição entre guerreiros e trabalhadores.

Nos quadros de uma sociedade de classes a “honra comum”, ao contrário da “honra heroica”, tem um caráter bastante utilitário, como observou o historiador francês Jean Delumeau:

“Da antiguidade até uma data recente, mas sobretudo no tempo da Renascença, o discurso literário apoiado pela iconografia [...] exaltou a valentia – individual – dos heróis que dirigem a sociedade. Era necessário que assim fosse, ou pelo menos que fossem apresentados sob esse ângulo, a fim de justificar a seus próprios olhos e aos do povo o poder do qual estavam revestidos”.

Como se pode notar, a honra comum se caracteriza por ser um instrumento de poder, em contraste com o mundo dos humildes. O heroísmo e os feitos heróicos tinha por objetivo justificar a dominação de classes. Nas sociedades indígenas [...] as mulheres eram as frágeis e medrosas. Agora, frágeis e medrosos são os humildes, que, como as mulheres indígenas, estão submetidos ao trabalho e passaram a ser considerados indivíduos da classe baixa. Como disse o poeta romano, Virgílio: “O medo é a marca do baixo nascimento”.


Índio tapuira, Albert Eckhout

Fechando o parêntese, voltemos aos índios, para dizer que há um certo paralelismo entre o ideal da “bela morte” e a antropofagia. A “bela morte” supunha a integridade do corpo do guerreiro sem vida. Mas se impedia ao guerreiro essa honra, ultrajando o seu cadáver. Esquartejar o corpo e dá-lo aos animais ou deixá-lo entregue à putrefação e aos vermes era despojar o guerreiro da “bela morte”. O ritual antropofágico, por outros meios, chegava a resultados análogos. É verdade que o corpo do guerreiro depois da execução era esquartejado, mas devorado  pelos próprios inimigos, e não dado aos animais ou entregue à putrefação. Lembremos o horror de um índio, segundo o testemunho de Fernão Cardim, que prederia ser devorado no ritual antropofágico a ser “comido pelos bichos”. Assim, a dignidade do guerreiro foi cultuada tanto pelos gregos quanto pelos indígenas. Mas [...] os portugueses irão despojar os índios de sua “bela morte”, desfigurar o seu código de honra e, finalmente, destruir a sua identidade de guerreiros.

KOSHIBA, Luiz. O índio e a conquista portuguesa. São Paulo: Atual, 2012. p. 27-30.

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