"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

segunda-feira, 22 de julho de 2013

D. Carlota Joaquina

A família de Carlos IV, Francisco de Goya

Na madrugada de 25 de abril de 1821, antes de o dia raiar, a rainha Carlota Joaquina – acompanhada de seu marido, o rei D. João VI, do filho D. Miguel, das seis princesas e de quatro mil cortesãos (e de boa parte do Tesouro Real, mais 50 milhões de cruzados sacados sorrateiramente do Banco do Brasil) – embarcou na nau que, enfim, a levaria junto com a sua corte de volta à Europa. Reza a lenda que, ao pôr os pés no navio, D. Carlota teria batido um sapato contra o outro e dito: “Nem nos calçados quero como lembrança a terra do maldito Brasil”.


Carlota Joaquina de Bourbon, imperatriz do Brasil, rainha de Portugal e Algarves. Manuel Antônio de Castro

A rainha de fato odiava o Brasil – e os quase cinco mil dias que nele viveu não foram suficientes para fazê-la mudar de opinião. Mais do que ao Brasil, D. Carlota só odiava uma coisa: o marido D. João, com o qual estava casada havia 36 anos, mas com quem não convivia há vinte. Ainda assim, tivera nove filhos. Prole tão numerosa num casal que mal podia se olhar gerara suspeitas: dizia-se que pelo menos cinco dos nove rebentos não seriam fruto de D. João. De fato, talvez não fossem, embora nem o rei nem a rainha dessem muita importância para o fato. Além desse desinteresse mútuo, uma outra coisa D. João e D. Carlota tinham em comum: eram ambos feíssimos.


D. João VI e D. Carlota Joaquina, reis de Portugal. Manuel Dias de Oliveira

D. Carlota Joaquina de Bourbon, infanta de Espanha, rainha de Portugal e imperatriz honorária do Brasil, nasceu nos arredores de Madri em 22 de abril de 1775. Aos dez anos de idade, casou-se por procuração com D. João. Realizada por uma questão de Estado, a união foi vexatória desde o início: num dos primeiros encontros, a noiva mordeu selvagemente a orelha do noivo e jogou-lhe um castiçal no rosto. O casal só iniciou sua vida conjugal cinco anos depois do casamento, logo após a primeira menstruação da princesa. A chegada dos filhos não mudou em nada o relacionamento entre ambos. Na prática se comportavam como monarcas inimigos.


Retrato de Carlota Joaquina de Bourbon. Artista desconhecido

De certa forma, D. Carlota e D. João eram mesmo inimigos. Fiel às origens espanholas, a rainha conspirou com freqüência contra o trono português. Por isso, os historiadores luso-brasileiros gostam de descrevê-la como uma bruxa: “A mulher era quase horrenda, ossuda, com uma espádua acentuadamente mais alta do que a outra, uns olhos miúdos, a pele grossa que as marcas de bexiga ainda faziam mais áspera, o nariz avermelhado. E pequena, quase anã, claudicante... uma alma ardente, ambiciosa, inquieta, sulcada de paixões, sem escrúpulos, com os impulsos do sexo alvoroçados”, escreveu Octávio Tarquínio de Souza, em sua obra clássica, História dos fundadores do Império do Brasil.

Uma das mais cruéis descrições de D. Carlota, no entanto, foi feita pelo genial escritor inglês William Beckford, que a conheceu e deplorava “suas incessantes intrigas de todos os matizes; seus caprichos extravagantes, seus atos desumanos de crueldade”.


Retrato eqüestre de Carlota Joaquina de Espanha. Domingos Sequeira

A verdade é que, feia ou não, D. Carlota lutava pelos interesses da Espanha – em especial quando estes a favoreciam. Quando Napoleão rompeu com Madri e entronou o próprio irmão no lugar de Carlos IV, pai de D. Carlota, ela quis ser rainha do Prata. D. João bloqueou os planos. D. Carlota, então, fixou-se na casa de praia de Botafogo, onde se banhava nua. Continuou colecionando amantes (mandando matar a mulher de um deles) e começou a fumar a erva diamba (hoje chamada maconha). Amazona audaz, montava como homem. Cantava e dançava o flamenco. Não foi boa mãe, especialmente depois que seu primogênito, Antônio, morreu aos 6 anos. Seu outro favorito era D. Miguel, tido como filho do marquês de Marialva. D. Carlota nunca deu atenção para o príncipe herdeiro, D. Pedro. Ao sair pelas ruas do Rio, era precedida por um séquito de seguranças que forçavam todos os súditos a se ajoelhar. D. Carlota Joaquina morreu em Lisboa, aos 54 anos, sem jamais ter retornado à sua amada Espanha.

BUENO, Eduardo. Brasil: uma história. São Paulo: Ática, 2005. p. 143-144.

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