"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 23 de junho de 2013

Ler, escrever e criar na Colônia

No mundo colonial foi graças à instalação de conventos de jesuítas, franciscanos, carmelitas e beneditinos, que brotou o primeiro embrião de vida cultural. Vieram com as ordens religiosas os primeiros livros. Livros capazes de instruir e de ensinar a rezar. Manuais de confissão, livros de novenas e orações, breviários relatando a vida dos santos e catecismos tinham por objetivo ajudar a catequese e pacificar as almas. Apesar da forte presença da literatura sacra, já quando das primeiras visitas do Santo Ofício da Inquisição às partes do Brasil, apareciam denúncias de outras leituras. De leituras proibidas. Proibidas, sim, pois Estado e Igreja sempre tomaram livros e saberes como fonte de inquietação e pecado, censurando-os e perseguindo quem os lesse. Um exemplo? Em 1591, vários moradores da Bahia foram acusados de ler o romance Diana, de Jorge Montemayor, um clássico profano do Renascimento europeu. Seu tema: um picante caso de amor. Entre seus leitores achou-se uma mulher: Dona Paula de Siqueira, que muito "folgava" com o tal livro! Certo Nuno Fernandes possuía As Metamorfoses, de Ovídio, enquanto seu conterrâneo, Bartolomeu Fragoso, para escapar ao controle da censura, preferia rasgar as páginas, depois de lidas, do seu exemplar do temido Diana. Apesar de encontrarem-se no distante sertão, em São Paulo também havia alguns leitores de obras como Os Mistérios da Paixão de Cristo, sermões e até mesmo Os Lusíadas, de Camões.

Porém, conspirava contra a presença de livros o elevado número de analfabetos - categoria da qual poderíamos incluir a quase totalidade dos escravos e escravas coloniais. Enquanto uns poucos leitores disputavam obras impressas ou cópias manuscritas dos mesmos, outros se debruçavam maravilhados sobre as aventuras narradas pelos folhetos de cordel, como a Donzela Teodora, a de Roberto, o Diabo ou a da Princesa Magalona, que ainda hoje circulam pelo Nordeste e eram então enviados nas naus que singravam o Atlântico em direção à América. Entre os que sabiam ler e escrever, também não faltou quem quisesse retratar a terra e seus moradores. Administradores e sacerdotes, magistrados e mercadores produziram relatórios, descrições ou mesmo poemas com um simples intento: descrever, dominar e tirar proveito do que os cercava. José de Anchieta foi pioneiro. Produziu um dos primeiros livros escritos entre nós [...]. Tratava-se de um poema épico sobre o governador Mem de Sá com cinematográficas descrições sobre suas crueldades em relação aos indígenas. O jesuíta escreveu, também, poesias e autos teatrais, sempre tendo em vista catequizar os infiéis [...]. Dentro da mesma linha de edificação religiosa, Simão de Vasconcellos escreveu posteriormente uma crônica sobre as atividades da Companhia de Jesus no Brasil.

Paralelamente à preocupação religiosa, os livros procuravam noticiar as riquezas da terra. A mais clara informação sobre a natureza e sobre os moradores da terra de Santa Cruz nasceu da pena de um sensível senhor de engenho baiano, Gabriel Gomes Soares de Souza. [...] Resultante de um pedido da Coroa espanhola que, então, subjugava Portugal, o livro narra com minúcias o lugar que o autor adotara (era português) e onde passara da pobreza à riqueza graças ao açúcar. Para redigir seu texto, Gabriel Soares se valeu de "muitas lembranças por escrito" que anotara ao longo dos 17 anos entre nós, relatando com absoluta graça e precisão a topografia da Bahia, as plantas do Novo Mundo, a zoologia americana, a agricultura que se praticava e até as formas pelas quais nossos antepassados indígenas exerciam a medicina. Seguindo essa mesma tradição, Diálogos das grandezas do Brasil, composto por volta de 1618, é outra obra com informações sobre a terra e sua gente. Seu autor é, mais uma vez, um plantador de cana, Ambrósio Fernandes Brandão [...]. Mal passado um século de colonização, o autor já percebia a indiferença dos funcionários metropolitanos frente às realidades coloniais, assim como a indolência dos emigrados que se negavam a trabalhar, tudo empurrando aos escravos. [...]

Pouco a pouco essas descrições da terra brasileira vão dando lugar a relatos históricos. O primeiro brasileiro a escrever tal prosa foi Vicente Rodrigues Palha, na verdade, frei Vicente do Salvador [...]. Concluiu sua História do Brasil em dezembro de 1627 [...]. Seu texto é revolucionário na medida em que introduz os verdadeiros personagens de nossa história: índios, negros, mulatos e brancos, cujas histórias são contadas em tom popular. Nele, anedotas e fatos folclóricos misturam-se a ditos do rei do Congo, às peripécias de seu escravo Bastião quando da invasão holandesa à Bahia e a explicações sobre a construção dos engenhos ou sobre a pesca da baleia. Frei Vicente foi o primeiro a criticar a posição dos portugueses, alheios, então, à conquista do oeste, deixado aos bandeirantes. Critica também os monarcas portugueses que pouco caso fizeram do Brasil [...]. Os comerciantes portugueses, por sua vez, eram acusados de só virem "destruir a terra, levando dela em três ou quatro anos que cá estavam quanto podiam". [...]

O século XVII trouxe outras novidades. A luta contra franceses e holandeses suscitou novos textos históricos. Valoroso Lucideno (1648), de frei Manuel Calado; Nova Lusitânia (1675), de Francisco de Brito Freire; e Castrioto Lusitano, de frei Rafael de Jesus (1679), entre outros tantos e menores, representam, de certa forma, o sentimento localista entre os colonos, sentimento este inspirado nas tensões militares contra o estrangeiro. Contudo [...] os holandeses contribuíram para recuperar a tradição lusitana seiscentista de descrições da natureza. Isso foi possível graças a Maurício de Nassau, que trouxera consigo uma pequena corte de cientistas, como o cosmógrafo Michiel de Ruyter, os médicos e naturalistas Wilhem Piso e Georg Marcgrav, assim como artistas do porte de Frans Post, Albert Eckhout, Zacharias Wegener e Pieter Post - arquiteto do plano geral do Recife. A profusão, o colorido e as dimensões de seres absolutamente novos não cessarão a despertar a curiosidade desses intelectuais, e seus textos vão-se cobrindo de sentimento entre o espanto maravilhado e o utilitarismo.

Apesar de alguns comentários de Anchieta, coube a Piso e Marcgrav dar início às investigações sobre as ciências naturais e físicas entre nós. Cada bicho, cada planta ou mineral era cuidadosamente descrito e acrescentado ao conjunto já conhecido pelos europeus. [...]

Além desses autores, surgiram na Bahia do século XVII dois grandes nomes: Antônio Vieira e Gregório de Matos Guerra. Não eram homens isolados, pois, na mesma época, outros poetas compunham o "grupo baiano". Entre eles, Bernardo Vieira Ravasco e Manoel Botelho de Oliveira. [...]

Enquanto alguns esculpiam as coisas da terra com palavras, outros o faziam na madeira e no barro. Dos mesmos conventos que abrigaram nossas primeiras bibliotecas, saíram nossos primeiros artistas. Tal como ocorria com a literatura, majoritariamente sacra,  nossos entalhadores, escultores e pintores se dedicaram, no século XVII, a pintar temas celestiais. [...]


A crucificação de Cristo, Manuel da Costa Ataíde

A vida cultural que vai timidamente se desenvolvendo também trouxe vitalidade à arquitetura em diversas regiões do Brasil. O "barroco mineiro" alternou fachadas sóbrias com interiores altamente trabalhados. A concorrência entre confrarias e irmandades religiosas pela decoração de suas igrejas traduziu-se em resultados suntuosos. [...] Na falta de azulejos ou outros materiais de luxo, artesãos brancos, negros e mulatos alforriados respondiam com inovações. O uso da pedra-sabão - que teve em Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, seu mais genial partidário - é um exemplo disso.

A pintura, por sua vez, deveria respeitar um adecedário do emprego das cores, fixada pela Igreja: branco e preto significavam severidade; pardo e cinza, desprezo e abjeção; azul e branco, pureza e castidade; vermelho, amor e caridade; verde, penitência e esperança; e roxo, luto. [...]

[...] A nova riqueza alimentada pelo ouro e pelos diamantes empurrou para o Sudeste boa parte da incipiente vida literária. O Rio de Janeiro, escoadouro das riquezas mineiras e capital colonial a partir de 1763, assim como as cidades mineradoras, passou a sediar novas expressões estéticas. Mariana, sede do bispado de Minas, tornara-se foco de instrução graças ao seminário aí instalado, por obra de ricos proprietários interessados em garantir estudo aos seus filhos antes de enviá-los a Coimbra. Fruto desse interesse por livros e por escrever, as academias literárias começavam a se organizar. [...]

[...]

A "escola mineira" produziu intelectuais bem mais expressivos, como Cláudio Manuel da Costa [...], Basílio da Gama [...], Tomás Antônio Gonzaga [...] e José de Santa Rita Durão [...]. Quando começaram a poetar, vicejava em Portugal um estilo, o arcadismo, cujos cânones recomendavam que, tal como ocorrera com os clássicos, a arte deveria imitar a natureza, identificando-se com a vida bucólica do campo; a obra de arte tinha também que possuir fim moral e edificante. Nossos líricos somaram a tais características um "nativismo comovido" [...]. A gente e a natureza americana seguiam sendo assunto, embora com sabor distinto. [...]

[...]

Outro aspecto da cultura que se desenvolveu, durante o setecentos, foi o teatro, na forma da diversão mais popular. Atores ambulantes percorriam cidades encenando, nas praças e nos mercados, autos como Inês de Castro, a Princesa Magalona e o gilvicentino Auto da Lusitânia, e reunindo entusiasmados espectadores. Atuava-se sobre tablados armados, aos domingos, dia em que as pessoas da roça acudiam aos centros comerciais e urbanos. Fantoches, circos de cavalinhos e mamulengos, com seus palhaços e dramatizações rudimentares, faziam parte do espetáculo. [...] 

PRIORE, Mary Del; VENÂNCIO, Renato Pinto. O livro de ouro da História do Brasil. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 117-132.

Nenhum comentário:

Postar um comentário