"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 22 de março de 2013

Os pobres na Europa do século XVI

Os aleijados, Pieter Bruegel

[...] A causa da intensa carestia do custo de vida e das dificuldades encontradas na aquisição de trigo e pão na cidade e jurisdição de Provins era a grande quantidade de pessoas que havia nela, das cidades e dos povoados de Bray, de Sens, de Auxerre [...], de Borgonha, da Champagne, do Bourbonnais [...], pessoas que se lançaram em multidão através de toda a região de Provins, alguns para comprar trigo e pão, outros para encontrar trabalho, sem pedir outra remuneração que o pão e a sopa que lhes garantiam o sustento [...].

[...] É impossível descrever o infortúnio e a pobreza dessa época miserável, e creio que todo aquele que ler esta ou qualquer outra história escrita sobre essa carestia e esse período de fome não conseguirá crer. Dentro das muralhas da cidade de Troyes, na Champgne, apareceu um grande número de estrangeiros pobres que não pertenciam à cidade nem à referida região, e os habitantes da cidade não sabiam que medida tomar. Para se desfazer deles fizeram proclamar pelas ruas que tais estrangeiros não poderiam permanecer na cidade mais do que vinte e quatro horas, medida acatada pelos estrangeiros pobres.

Porém, além deles, havia na cidade uma quantidade ainda maior de pobres que pertenciam à própria cidade e aos povoados que a circundavam, até o ponto em que os ricos começaram a temer que se produzisse uma revolta ou uma sublevação dos pobres contra eles e, visando conseguir expulsá-los da cidade, os homens ricos e os governadores da cidade de Troyes se reuniram em assembléia, dispostos a encontrar uma solução para o problema. A resolução deste conselho foi a de que se tinha de expulsar os pobres da cidade e não admiti-los mais. Para tanto, mandaram assar pão em quantidade para distribuí-lo entre os pobres, os quais seriam reunidos numa das portas da cidade sem que soubessem o que se tramava e, distribuindo a cada um a parte correspondente de pão e uma moeda de prata, os fariam sair da cidade por aquela porta, que seria imediatamente fechada após passar o último dos pobres, e, por cima das muralhas, lhes diriam que fossem viver com Deus em outro lugar e que não mais voltassem à cidade de Troyes antes da colheita seguinte. E assim foi. Os pobres expulsos depois da distribuição se mostraram horrorizados e alguns deles, chorando, procuraram um caminho a tomar para chegar a algum lugar onde pudessem ganhar a vida, enquanto outros amaldiçoavam a cidade e seus habitantes que assim os expulsaram, olhavam o último naco de pão que lhes havia sido distribuído e desejavam sua própria morte, muitos ter-se-iam alegrado se a terra se abrisse sob seus pés e os tragasse.

Poucos dias depois que os habitantes de Troyes se fizeram valer dessa artimanha para se desfazer dos pobres da cidade, a doença e a morte caíram sobre eles tão violentamente que não houve maneira de escapar, e [...] há quem diga que esta morte lhes foi enviada por Deus como castigo por haverem expulsado os pobres.

Documents inédits de l’Histoire de France. In:  BRAUDEL, Fernand. Las civilizaciones actuales. Madri: Editorial Tecnos, 1969. p. 359-360.

Nenhum comentário:

Postar um comentário