"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

terça-feira, 19 de março de 2013

A invenção da Antiguidade


O auriga de Delfos, bronze, 470 a.C.  Artista desconhecido.

A Antiguidade, "Antiguidade clássica", representa para alguns o começo de um novo mundo (basicamente europeu). O período se encaixa com perfeição numa corrente progressiva da história. Nesse sentido, em primeiro lugar, a Antiguidade teve de ser radicalmente apartada de seus predecessores na Idade do Bronze, que caracterizou algumas das mais importantes sociedades asiáticas. Em segundo, Grécia e Roma passam a ser vistas como fundadoras da política contemporânea, sobretudo no que concerne à democracia. Em terceiro, alguns aspectos da Antiguidade, especialmente os econômicos como comércio e mercado, que marcariam mais tarde o "capitalismo", são subestimados, para marcar uma grande distinção entre as diferentes fases que conduzem ao presente. [...]

A Antiguidade é compreendida por alguns como a época que marca o início do sistema político, da "polis", da "democracia" propriamente dita, da "liberdade" e da lei. Economicamente, ela era diferente, baseada na escravidão e na redistribuição, mas não em mercado e comércio. Considerando os meios de comunicação, os gregos com sua língua indo-europeia teriam criado o alfabeto que usamos hoje. O mesmo teria se dado com relação à arte, inclusive à arquitetura. [...]

O roubo da história pela Europa Ocidental começou com as noções de sociedade arcaica e Antiguidade, prosseguindo daí em uma linha mais ou menos reta pelo feudalismo e Renascença até o capitalismo. Aquele começo é compreensível porque, mais tarde para a Europa, as experiências gregas e romanas representaram o amanhecer da "história", com a adoção do alfabeto escrito (antes da escrita tudo era pré-história, e esfera de arqueólogos, não de historiadores). Evidentemente, havia alguns registros escritos na Europa antes da Antiguidade na civilização minóico-micênica de Creta e do continente. No entanto, [...] os documentos consistiam de listas administrativas, não de "história" ou literatura. Essas áreas apareceram com alguma força na Europa somente depois do século XIII a.e.c. com a adoção e adaptação pela Grécia da escrita fenícia, a ancestral de muitos outros alfabetos, com seu sistema de consoantes BCD (sem as vogais). Uma das primeiras matérias da escrita Grega foi a guerra contra a Pérsia que levou à distinção feita em termos valorativos entre Europa e Ásia, com profundas consequências para nossa história política e intelectual a partir de então. Para os gregos, os persas eram "bárbaros", caracterizados pelo uso da tirania em vez da democracia. Era, claro, um julgamento puramente etnocêntrico, alimentado pela guerra greco-persa. [...]

Linguisticamente, a Europa tornou-se o lar dos "arianos", falantes de línguas indo-europeias advindas da Ásia. A Ásia Ocidental, por outro lado, foi o lar dos povos nativos de línguas semitas, um ramo da família afro-asiática que inclui a língua falada pelos judeus, fenícios, árabes, coptas, berberes, e muitos outros do norte da África e Ásia. Foi essa divisão entre arianos e outros, incorporada mais tarde nas doutrinas nazistas, que, na história popular da Europa, tendeu a encorajar o subsequente menosprezo das contribuições do Oriente para o crescimento da civilização.

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Muitos vêem que a história mais recente da Europa emergiu de alguma vaga síntese entre romanos e a sociedade nativa tribal, uma formação social "germânica" em termos marxistas; há controvérsias entre romanistas e germanistas quanto às contribuições de suas respectivas culturas. No que diz respeito ao período anterior, a Antiguidade é frequentemente vista como a fusão das condições da Idade do Bronze com as "tribos" de origem "ariana" que participaram das invasões dóricas. Assim, a Antiguidade teria se beneficiado de ambos os regimes: as centralizadas culturas urbanas "civilizadas" e as "tribos" mais rurais e pastoris.

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Childe enfatiza o papel do comércio no mundo clássico, e como ele foi importante para difundir culturas, ideias e pessoas. Os escravos, claro, eram comercializados, e não somente tinham função de trabalhadores: "entre eles havia também doutores altamente especializados, cientistas, como também artesãos e prostitutas [...] as civilizações orientais e mediterrânicas, tendo se fundido, estavam ligadas pelo comércio e pela diplomacia a outras civilizações do leste e aos velhos bárbaros do norte e do sul". Tal intercâmbio ocorria tanto internamente quanto entre sociedades.

As "tribos" da periferia, os chamados "bárbaros", ou seja, aqueles que não pertenciam às civilizações mais importantes, foram afetadas pelo grande desenvolvimento nas sociedades urbanas com as quais elas intercambiavam produtos, ajudando também no transporte de bens. Tais sociedades urbanas eram vistas como possíveis alvos:  por sua maior mobilidade, assaltar cidades e seu tráfico era um modo de vida para algumas "tribos". Foi essa situação descrita por Ibn Khaldun em seu texto do século XIV sobre o conflito, no norte da África, entre beduínos nômades e árabes sedentários [...] em que as tribos tinham maior "solidariedade" [...] se comparadas aos povos mais avançados tecnologicamente [...]. A maioria das grandes civilizações teve contatos semelhantes com suas "tribos" vizinhas e sofreu incursões semelhantes: os chineses dos manchus, os indianos dos timurids da Ásia Central, o Oriente Médio dos povos do deserto ao redor, os dórios na Europa. Não havia nada de excepcional nos ataques dos germanos e outros no mundo clássico, a não ser o de terem sido um fator importante na destruição do Império Romano e no eclipse temporário das extraordinárias realizações da Europa Ocidental. Entretanto, as tribos não foram simplesmente "predadoras". Eram importantes também [...] por si próprias e por noções de solidariedade, democracia e liberdade, aspectos quase universalmente associados aos gregos.

O que entendemos por Antiguidade tem sua origem, obviamente, na Grécia e Roma; é a narrativa mais sustentada pela maioria dos historiadores clássicos. Há um consenso de que a Antiguidade foi construída sobre um colapso anterior da civilização. Em 1200 a.e.c., "a Grécia se parecia muito com qualquer outra sociedade do Oriente Médio". [...]

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Um dos resultados da interpretação em termos de invasão tribal da Grécia por tribos de fala ariana foi a negligência das contribuições semitas e a ênfase exagerada nas contribuições gregas para o que foram, sem dúvida, desenvolvimentos de grande importância. Por exemplo, nas formas de comunicação, os gregos adicionaram os sons das vogais ao alfabeto semita, portanto, aos olhos de alguns eruditos, "inventaram" o alfabeto. O novo alfabeto tornou-se o mais importante instrumento para comunicação e expressão. No entanto, na verdade, muito foi feito com o alfabeto consonantal, o suficiente para a produção do Antigo Testamento pelos judeus, que serviu de base tanto para o judaísmo como para o cristianismo e o islamismo. Isso já foi um enorme feito histórico, literário e religioso. Como também o foram as literaturas das línguas árabe e indiana que se desenvolveram a partir da versão aramaica dos escritos semitas, de novo sem vogais. [...]

Um tipo de alfabeto só de consoantes estava disponível na Ásia há muito, desde cerca de 1500 a.e.c., favorecendo a literatura de povos como os semitas, fenícios, hebreus, falantes de aramaico e, mais tarde, de árabe também. [...] Além disso, com outros tipos de escrita, a espécie humana fez milagres em termos de acúmulo e difusão do conhecimento, por exemplo, usando a escrita logográfica do Extremo Oriente. Mesopotâmicos e egípcios também produziram obras literárias substanciais usando manuscritos semelhantes, porém, em parte por razões linguísticas, são vistos pelos europeus como "orientais", em vez de clássicos. [...]

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Contatos entre povos têm grande importância social, além de fornecer modelos de desenvolvimento, a contar da mudança do (puramente) oral para o escrito, da emergência de escritas logográficas, silábicas e alfabéticas, do advento do papel, da imprensa e da mídia eletrônica, essas formas se sucedem, mas não se substituem, como acontece com os meios de produção. [...]

GOODY, Jack. O roubo da história. São Paulo: Contexto, 2008. p. 37-43.

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