"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

As cidades-estados da Costa do Índico


A cidade de Quíloa no século XVI

O comércio na costa do Índico, conhecida como Azânia, data de antes dos primeiros séculos da nossa era e tinha a participação de árabes, persas e romanos, que traziam machados e lanças de ferro, tecidos, cerâmicas e açúcar, e levavam marfim, peles de pantera, tartarugas, incenso e chifres de rinocerontes.

No século VI, nas terras próximas ao rio Juba ou a Lamu, existia o reino Xunguaia, que talvez tenha originado a cultura suaíli. Seus habitantes eram caçadores e agricultores bantos e pastores cuxitas. Outros afirmam que os suaílis seriam agricultores bantos, vindos dos Grandes Lagos e das montanhas de Kwale, que desde o ano 500 se expandiram pela costa.

Em várias cidades-estado da África Oriental, como Quíloa, Mogadixo, Mombaça, Moçambique, Zanzibar, Máfia, Melinde, a organização política concentrava-se na figura de um sultão ou xeque, que governava com o apoio de um conselho, aparentemente com base nas leis islâmicas.

Os negros eram a maioria dos habitantes nessa região, mas já havia muitos mestiços. João de Barros descreve as impressões da frota de Vasco da Gama ao chegar ao rio Quelimane:

O gentio que habitava à borda dele, deu grande ânimo a toda a gente, para quão quebrado levava, tendo tanto navegado, sem achar mais que negros bárbaros como os de Guiné, vizinhos de Portugal. A gente deste rio peró que também fosse da cor e cabelo como eles eram, havia entre eles homens fulos que pareciam mestiços de negros e mouros, e alguns entendiam palavras de arávico.

Nessas cidades-estado os exércitos não eram fortes, nem muito grandes. Tinham como armas lanças, arco e flecha. As cidades não apresentavam muralhas, levando a crer que não precisassem ou evitassem entrar em guerra com os povos vizinhos, preferindo as alianças. Seus habitantes dedicavam-se, essencialmente, às atividades mercantis. Comercializavam com várias localidades do interior e as mercadorias eram levadas pelos vários pontos da costa, embarcadas em zambucos ou pangaios (embarcações feitas com pedaços de madeira presos por cordas). O comércio era realizado da seguinte forma: do interior vinha o marfim, as peles e o ouro, em troca as cidades localizadas próximas ao litoral ofereciam o ferro, contas, panos e cauris. Os escravos também eram trocados, raramente obtidos em ataques às aldeias vizinhas.

De fora do continente africano chegavam, sobretudo em grandes navios árabes e indianos, mercadorias de luxo, entre elas contas de vidro e cauris das Maldivas. Os mais abastados faziam suas refeições em tigelas de louça chinesa ou persa. Já os mais pobres comiam em torno de uma grande panela comunitária, em geral, de cerâmica.

Já no século IX, a cidade de Quíloa tinha um comércio significativo, apesar do aspecto rústico de suas moradias de barro e telhados de folhas de palmeiras. Sobre essa cidade há uma das mais antigas narrativas escritas sobre a África Oriental: A crônica de Quíloa, da primeira metade do século XVI. Seus habitantes eram pescadores bantos, conhecedores da metalurgia do ferro e do cobre e produziam objetos de cerâmica vermelha. Estabeleceram o comércio de peixe seco, frutas, cereais, sal e gado com os povos do interior e com outros pontos do litoral, utilizando cauris como moeda. Mais tarde, talvez por influência dos contatos com mercadores muçulmanos, o comércio em Quíloa tenha incluído outros produtos, como marfim e peles destinadas à Arábia, Índia, Pérsia e China.

Existiam, na cidade, vários prédios de três ou quatro andares, construídos uns juntos aos outros, e casas, em geral com duas salas seguidas de quartos. As portas eram trabalhadas em pedra-coral, com desenhos que simbolizavam espinhas de peixe. Havia quase sempre um pátio abaixo do nível principal, uma sala e uma varanda entre esses dois ambientes. Nas paredes colocavam-se vasos e até os muros eram trabalhados em madeira. A maior parte dos habitantes era negra e possuía escarificações no rosto. Cultivavam algodão, legumes, cebolas, milhetes, laranjas, limões, coco, feijões, pimentas, jambos, bananas, romãs e cana-de-açúcar. Completavam a alimentação com peixes, galinhas, cabras, bois e carneiros.

A partir dos séculos XII ou XIII, Quíloa desenvolveu-se ainda mais e se firmou como ponto comercial. Mercadores de Mogadixo, uma outra cidade mercantil, estabeleceram-se em Quíloa. Os habitantes de Mogadixo viviam sobretudo do cultivo do arroz, legumes e da criação de gado. Faziam pratos abundantes, como o purê de bananas verdes com leite ou coalhada com limão, pimenta, gengibre e manga. Vestiam túnica e manto e usavam turbante na cabeça. Mogadixo produzia tecidos em algodão, muito requisitados e exportados para o Egito. Escravos e marfim eram para lá exportados.

As influências da Arábia, da Pérsia e da Índia, proporcionadas, em grande medida, pelas relações comerciais no Índico podem ser notadas em vários aspectos, na arquitetura das construções, das fachadas, dos túmulos etc. Desse período são as construções em pedra unidas por massa de cal, características dos templos religiosos com tetos planos e de pilares de madeira em Máfia, e da grande mesquita de Quíloa.

Na segunda metade do século XIV, Quíloa sofreu um pequeno declínio, talvez por conta da concorrência e da consequente perda do monopólio do comércio de ouro com Sofala. Mas, já no início do século XV, com um novo crescimento do comércio a distância, a partir das navegações no Índico, Quíloa voltou a progredir.

Depois dessa retomada de força, o poder em Quíloa passou a se concentrar no conselho dos notáveis, gerando problemas na sucessão dos sultões e, consequentemente, acarretando crises políticas. Por outro lado, muitas outras cidades desenvolveram-se, como Mombaça, Zanzibar, Melinde. Já no início do século XV, Monbaça teve um nítido crescimento econômico. Desde o século XII, Melinde e Monbaça eram conhecidas por conta de suas minas de ferro, cuja produção era exportada para a Índia.

MATTOS, Regiane Augusto de. História e cultura afro-brasileira. São Paulo: Contexto, 2008. p. 44-46.

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