"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Era Vargas II: "Trabalhadores do Brasil"

Trabalhadores homenageiam Getúlio Vargas na Esplanada do Castelo, Rio de Janeiro, 1940

A permanência de Getúlio Vargas no poder dificilmente teria sido possível sem o extraordinário sucesso econômico alcançado durante seu primeiro governo. Para se ter noção do significado profundo dessa afirmação, basta mencionarmos que, por volta de 1945, nossa industrialização finalizava seu primeiro grande ciclo. Em outras palavras: pela primeira vez, a produção fabril brasileira ultrapassava a agrícola como a principal atividade da economia. Nesse mesmo período, também assistimos ao surgimento da indústria de base, ou seja, aquela dedicada à produção de máquinas e ferramentas pesadas, à siderurgia, à metalurgia e à indústria química.

[...]

A industrialização acelerada teve efeitos não só econômicos, mas também políticos e sociais. Como é sabido, a fábrica tem na cidade seu espaço privilegiado. Por isso mesmo, a Era Vargas - incluindo aí seu segundo governo, entre 1950 e 1954 - pode ser caracterizada como uma época de intensa urbanização. Em 1920, por exemplo, apenas dois em cada dez brasileiros residiam em cidades; vinte anos mais tarde essa mesma relação era de três para dez; nos anos 1940, tal proporção tornara-se equilibrada: quatro em cada dez brasileiros moravam em áreas urbanas. A formação de novas cidades e o crescimento das já existentes estimulavam, por sua vez, a multiplicação de trabalhadores, não vinculados às tradicionais atividades agrícolas e de industriais não-fazendeiros [...].

Getúlio Vargas, na esperança de se contrapor ao poder oligárquico, valorizou a aliança com os grupos urbanos e, paralelamente, manteve sua aproximação com o exército. Para cada segmento específico foi traçada uma estratégia política. No caso dos trabalhadores urbanos, em 1930 era criado o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio. Dois anos mais tarde, Vargas começa a implementar mudanças na legislação, favoráveis ao operariado: estabelece, por exemplo, a semana de oito horas. [...] no mesmo ano que era atendida uma reivindicação defendida pelo movimento operário desde fins do século XIX, estabeleciam-se os primeiros traços do sindicalismo corporativo. [...] 

Tal mudança foi acompanhada pela criação do imposto sindical, através do qual se descontava anualmente um dia de trabalho da folha de pagamento dos operários, com a finalidade de financiar a estrutura sindical. O ditador generalizava, dessa forma, o modelo corporativo para o conjunto das entidades representativas dos trabalhadores. De instrumentos de luta, os sindicatos dos anos 1940 passam à condição de agentes promotores da harmonia social e instituições prestadoras de serviços assistenciais.

Com certeza, os líderes sindicais formados na antiga tradição anarquista viam criticamente essas mudanças, encarando-as como uma maneira de cooptação e de manipulação dos interesses da classe trabalhadora. Porém, entre a massa operária, a postura parecia ser outra. Para muitos, familiarizados com as associações mutualistas, Getúlio Vargas atendia a certas expectativas, como no caso da generalização dos institutos de previdência, garantindo assim aos trabalhadores o direito à aposentadoria. [...] Vargas conseguiu sensibilizar inúmeros militantes oriundos das lutas socialistas. A Consolidação das Leis Trabalhistas, firmada em 1943, viabilizava isso. Nela determinava-se que, a partir de então, o trabalhador dispensado deveria ser indenizado, a mulher operária teria o direito de proteção à maternidade, assim como ao menor restringia-se a exploração através do trabalho. [...] Getúlio Vargas, dessa maneira, surgia aos olhos de muitos como um protetor [...].

Os empresários também viram parte de suas expectativas serem atendidas. [...]

Getúlio Vargas em muito se diferenciava dos presidentes da República Velha. [...] Em certas ocasiões, o ditador aproveitava-se da tensa situação internacional do período anterior à Segunda Guerra Mundial para conseguir vantagens. Oscilando entre apoiar ora os aliados, ora os países do eixo, o governo brasileiro conseguiu apoio norte-americano para instalação, em 1941, da Companhia Siderúrgica Nacional, cujos efeitos na área industrial foram extremamente benéficos. Getúlio foi hábil em descobrir e integrar a seu projeto político-econômico intelectuais descontentes e reformistas. [...]

Em relação à área econômica mais desenvolvida do país, a política getulista foi generosa. No início dos anos de 1930, era retomada a política de valorização do café [...]. Graças à manutenção do elevado nível de renda local, coube a São Paulo liderar o processo de formação do mercado nacional voltado para a substituição das importações. [...] A importância dos empresários paulistas cresce a olhos vistos: nos anos de 1940 eles passam a ser responsáveis por metade da produção fabril brasileira [...].

Não foi somente na economia que a intervenção estatal getulista se nobalilizou. Em certas áreas registraram-se, igualmente, mudanças profundas. Esse foi o caso da educação. Durante a gestão de Gustavo Capanema - Ministério da Educação e Saúde entre 1934 e 1945 [...] -, foram planejadas e implementadas importantes alterações, como a ampliação de vagas e a unificação dos conteúdos das disciplinas no ensino secundário e universitário. Isso para não mencionarmos ainda a criação do ensino profissional, consubstanciado em instituições como o Senai, o Sesi, o Senac e o Sesc.

A aproximação de Getúlio com o que havia de mais moderno na época [...] expressou-se através da criação do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Voltado para a propaganda política através dos novos meios de comunicação, como o rádio e o cinema, o DIP era responsável pela organização de rituais totalitários de culto à personalidade do ditador. Essa organização [...] tentou controlar até a produção cultural popular, conforme ficou registrado nas alterações impostas às letras de sambas. [...]

Como seria de esperar, Getúlio esteve longe de agradar a todos os segmentos da elite dominante. Os setores agrários acusavam a indústria de desviar braços do campo, ao mesmo tempo em que percebiam estarem financiando as importações de insumos fabris e investimentos do Estado na infra-estrutura industrial. Mesmo entre os empresários, o fundador do Estado Novo estava longe de ter unanimidade. A legislação trabalhista onerava a atividade industrial, reduzindo o ritmo de acumulação nesse setor. [...]

Não é de estranhar, portanto, que, ao longo do Estado Novo, ampliassem as vozes descontentes frente ao rumo tomado pelo governo. A própria legislação que acompanhou o golpe facultava à oposição uma alternativa de poder.A ditadura instalada em 1937, curiosamente, tinha data marcada para acabar. Segundo a constituição então outorgada, previa-se, para 1943, um plebiscito em que o regime seria posto à prova nas urnas. Um ano antes, a decretação do "estado de guerra" - ou seja, de preparação do Brasil para lutar na Europa contra o nazi-fascismo - permitiu que esse prazo fosse transferido para o período imediatamente posterior ao término dos conflitos.

Em 1941, já estavam sendo feitas as primeiras articulações para garantir a transição política. O próprio ditador tentava organizar um partido nacional. Dois anos mais tarde, o descontentamento das elites marginalizadas pelo Estado Novo veio a público através do Manifesto dos Mineiros. Nesse texto, amplamente divulgado de norte a sul do país, políticos de renome nacional [...] criticavam o caráter autoritário do governo, ao mesmo tempo que, manifestando uma nostalgia pelo regionalismo que tanto caracterizou o sistema de poder da República Velha, o acusavam de "espoliação do poder político de Minas Gerais". Em 1944, a estrutura partidária que comandaria a transição já estava praticamente constituída. [...] Entre as elites dissidentes, que desde a Revolução de Trinta haviam sido marginalizadas, agrupam-se na União Democrática Nacional (UDN). Paralelamente a essa oposição, Vargas promove a reunião dos interventores no Partido Social Democrático (PSD). Enquanto isso, a estrutura sindical e previdenciária por ele criada servem de base para a formação do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB).

Tais organização, que estavam se esboçando em 1944, são legalizadas no ano seguinte. A UDN lança candidato próprio às eleições  previstas para 1946, o mesmo ocorrendo com o PSD. A posição do PTB é outra. Não lança candidato, mas defende a convocação de uma assembléia constituinte ainda no governo de Getúlio, que seria por isso mesmo prolongado um pouco mais. Tal movimento ganhou as ruas - sendo popularmente denominado na época como "queremismo", ou seja, "queremos Getúlio" - e contou com o apoio do Partido Comunista Brasileiro (PCB); apoio esse, aparentemente, surpreendente. Como vimos, Vargas foi responsável por uma feroz repressão aos comunistas. No entanto, é necessário lembrar que foi no seu governo que o Brasil entrou em guerra contra o nazi-fascismo, em uma aliança na qual participou a antiga União Soviética. No final de sua gestão houve também a anistia e a legalização do PCB. Mais ainda: para os comunistas, os inimigos políticos de Vargas reunidos na UDN representavam o que havia de mais atrasado na sociedade brasileira.

Além de mobilizar as massas urbanas, o ditador começa a fazer modificações no comando da polícia do distrito federal. Crescem as suspeitas de que as eleições seriam manipuladas em prol da continuidade do governo. [...]

Em 1945, as forças armadas, embora tivessem enviado "apenas" 23.344 soldados para a Segunda Guerra Mundial, aproveitaram a justificativa do conflito internacional para formar um contingente interno de 171.300 homens. [...] Getúlio experimentava agora o sabor amargo de uma prática intervencionista feita por uma instituição que ele mesmo havia ajudado a crescer. Em 29 de outubro de 1945, sob pressão do exército, o criador do Estado Novo deixava o poder. [...]

PRIORE, Mary Del; VENÂNCIO, Renato Pinto. O livro de ouro da História do Brasil. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 320-323, 325-331.

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