"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 5 de maio de 2012

Contrastes entre o mundo muçulmano e a Europa cristã na Idade Média

A sociedade feudal estava se formando sobre os escombros do Império Romano do Ocidente quando se deu a unificação política do povo árabe. Para isso contribuiu de maneira fundamental a religião muçulmana, criada por Maomé no início do século VII. A unificação permitiu que os árabes realizassem uma rápida expansão. Pela força das armas e da fé, os árabes formaram um imenso império em um curto espaço de tempo.


Batalha entre muçulmanos e cristãos. Artista desconhecido

Dessa expansão resultou o confronto entre muçulmanos e cristãos europeus, que deu origem a uma rivalidade que duraria séculos. Ao longo da Idade Média o infiel muçulmano será o principal inimigo do cristão europeu. O oriente muçulmano era uma espécie de contraste do ocidente cristão.

O contraste entre o mundo muçulmano e a Europa medieval começava pela paisagem. No ocidente medieval predominava a floresta. Em meio dela clareiras cultivadas, aldeias camponesas, castelos, conventos e as poucas e acanhadas cidades. A civilização ocidental se formou derrubando a floresta.

Muito diferente era a paisagem do oriente muçulmano, na qual as árvores eram raras, predominando a aridez e o deserto. Neste meio, os centros civilizados se formaram à sombra das palmeiras. No mundo cristão, a madeira era farta, e no muçulmano, rara.

O contraste também era evidente na visão que se tinha sobre o comércio. Na Europa cristã, principalmente durante a Alta Idade Média, os mercadores constituíam um grupo social sem prestígio, quase marginal. A atividade comercial não gozava de prestígio social. O lucro e a cobrança de juros estavam associados ao pecado.

No mundo muçulmano o prestígio do mercador só não era superior ao do soldado. O grande mercador ocupava um lugar de destaque na sociedade; sua atividade era justificada pela própria religião islâmica, e a literatura árabe exaltava a figura do mercador. Ele era considerado um benfeitor da sociedade, participando da manutenção dos edifícios públicos e protegendo letrados e artistas. Próximo do poder, ele podia arrematar o direito de cobrar um imposto. Comumente emprestava dinheiro ao Estado. Não raro, era instruído e refinado.

Esse prestígio, porém, não se estendia aos numerosos pequenos comerciantes, com suas tendas de mercadorias espalhadas por todo o mundo muçulmano.

Era contrastante também a disposição dos árabes para a convivência, aceitando o diferente, o novo e o estrangeiro, com a tendência da cristandade a se fechar sobre si mesma. A forma cristã europeia de agregar novos membros era geralmente pela força, pelo aniquilamento do diferente.

Desde o início da expansão muçulmana, apesar de a guerra ser um dos deveres do crente, o árabe estava aberto para as outras culturas. Ele revelou uma verdadeira febre de saber e uma incrível capacidade de aprender com os povos que conquistou. Tanto que no mundo muçulmano havia um ativo mercado de livros sobre os mais variados assuntos: matemática, astronomia, medicina, ética, história, geografia.


Cristão e muçulmano jogando xadrez, ca. 1251-1283. Artista desconhecido

Essa valorização do saber pelos árabes estava ligada ao espírito prático. Cada conhecimento era avaliado pela eficácia. A admiração sincera pelo saber aparecia combinada com objetivos mais práticos e imediatos. O saber era também importante porque trazia prestígio social, poder e dinheiro. Com isso houve um impressionante crescimento da produção cultural. Era uma questão de honra para as autoridades árabes encorajar as mais diversas formas de cultura. As cidades do mundo islâmico eram centros ativos de criação intelectual e artística.

A assimilação pelos árabes de valores culturais de outros povos não se deu sem crises e debates internos. Muitos advertiram para a necessidade de defender o patrimônio tradicional árabe contra a influência estrangeira. O pensamento grego, que oferecia um modelo de raciocínio lógico para explicar e interrogar o mundo, foi considerado perigoso para a religião, que considerava que a razão nunca deveria prevalecer sobre a fé.

A tentativa mais comum foi a de conciliar a filosofia grega de Platão e Aristóteles com os princípios da fé islâmica. Todavia, nenhum pensador islâmico da época separava a filosofia da atividade científica.

Essa capacidade de assimilação cultural e de convivência com o diferente permitiu que eles integrassem numerosos povos à sociedade muçulmana. O estrangeiro foi sempre um parceiro do Islão. Depois que a conquista militar perdeu o seu impulso, o mercador substituiu o soldado e estendeu a presença árabe para muito mais longe, até o extremo Oriente.

Dessa forma, o que veio a ser conhecido como cultura islâmica vai muito além da contribuição árabe propriamente dita, pois essa cultura integrou conhecimentos de civilizações milenares, que caíram sob o domínio muçulmano ou que de alguma forma entraram em contato com os árabes, como a da Pérsia, do Egito, da Mesopotâmia, de territórios do Império Bizantino, da Índia, da China, do norte da África, da Península Ibérica.

Mesmo sendo os inimigos implacáveis do Islão, os cristãos não eram rejeitados com rigor nos países muçulmanos.

A conquista árabe unificou o Oriente Próximo, mas criou uma unidade cultural tênue. Uma série de acordos entre os árabes e os povos vencidos garantia o respeito aos usos locais. Por essa razão, no curto prazo, a conquista não provocou mudanças significativas nessas sociedades. Respeitavam-se todas as práticas religiosas desde que se admitisse a supremacia política do Islão. A conversão não era imposta a não ser às populações que não possuíam textos sagrados, os portadores das verdades religiosas. Judeus, cristãos, zoroastristas e budistas eram considerados fiéis. Cobravam-se impostos especiais dos não muçulmanos e era proibido pregar outra religião que não a islâmica, mas cada grupo religioso conservou o direito de manter as suas organizações e as suas regras sociais próprias, desde que não contrariassem o direito público.

Os cristãos tinham, por exemplo, o direito de manter uma justiça própria, sobretudo no que se referia à organização e aos costumes familiares. Bispos e patriarcas, acima dos chefes civis locais, eram os juízes das suas comunidades cristãs.

As Cruzadas ofereceram para o Ocidente, mesmo que isso não estivesse claramente na consciência dos cavaleiros e na dos camponeses que partiam para o Oriente, a oportunidade de deslocar para fora o seu excedente populacional.

O desejo de terras e de riquezas além-mar desempenhou também um papel importante. O estabelecimento dos cruzados na Palestina foi o primeiro exemplo do colonialismo europeu.

Embora o contato entre muçulmanos e cristãos europeus seja muito anterior ao período das Cruzadas em direção à Terra Santa, elas serviram para intensificar esses contatos, resultando em importantes trocas culturais.

Além de tolerados, os cristãos e os judeus eram também protegidos, pois Maomé considerava a sua mensagem como continuação e prolongamento da tradição religiosa judaico-cristã. A Bíblia e os seus personagens não eram rejeitados pelos árabes, mas integrados à sua história religiosa. Inicialmente, Maomé elegeu Jerusalém como cidade sagrada e centro religioso da sua doutrina, mas a rejeição que teve entre cristãos e judeus mudou o seu ponto de vista. Jerusalém foi substituída por Meca, que se tornou o polo das orações dos muçulmanos e o principal centro da nova religião. Os cristãos e os judeus passaram, então, a ser vistos como falsários da Bíblia. Estariam, assim, a meio caminho da verdadeira fé.

O contraste cristão-muçulmano se manifestava também nas figuras de Maomé e de Jesus Cristo. Maomé se considerava um sucessor dos profetas bíblicos e do próprio Jesus Cristo. Todavia as diferenças entre os dois personagens religiosos são bastante acentuadas. Maomé era apenas um homem escolhido para ser portador da verdade, e não um ser divino, como Jesus. Sendo assim, não se tornou um objeto de culto.

Enquanto o Cristo foi maltratado e humilhado, perecendo na cruz, Maomé teve uma morte tranquila. Pediu aos seus seguidores que o considerassem desobrigado da sua missão e esperou o fim com serenidade nos braços da A'icha, sua esposa. A imagem do Cristo na cruz, que desperta sentimentos de culpa e remorso, se tornou o símbolo cristão predominante, superando de longe a da sua gloriosa ressurreição. Essa marca do sofrimento presente no Cristianismo medieval não se encontra no Islamismo da mesma época.

PEDRO, Antonio; SOUZA LIMA, Lizânias de. História sempre presente. São Paulo: FTD, 2010. p. 349-352.

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