"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 13 de maio de 2012

Abolição da escravidão. Livres para quê?


Quando iô tava na minha tera
Comia minha garinha
Chega na tera dim baranco
Cane seca co farinha.

Durante séculos de escravidão, milhares de negros repetiam o lamento do Pai João. Os horrores dessa exploração do trabalho humano continuavam em plena segunda metade do século XIX. Em 1870, o Brasil era o único país americano que ainda mantinha o cativeiro!

Desde o fim do tráfico África-Brasil, em 1850, os fazendeiros do Nordeste vendiam muitos escravos para o Sudeste. Um deputado baiano descreveu, ainda em 1850, um comboio que rumava para São Paulo:

- Entre homens de gargalheira no pescoço caminhavam outras tantas mulheres, levando sobre os ombros seus filhos, entre os quais se viam crianças de todas as idades. Toda essa marcha era feita a pé, ensaguentando a areia quente dos caminhos.

Essas longas viagens ligavam o Nordeste às regiões mais antigas do café. Nessas marchas forçadas, muitas vezes nasciam crianças... que morriam sob o sol ou, por ordem dos capatazes, eram abandonadas no vazio dos grandes sertões!

As crueldades da escravidão já não passavam despercebidas. Mesmo gente de elite, começava a levantar sua voz contra a "marcha negra". Joaquim Nabuco, filho de senhor de engenho e senador do Império, era um dos que defendiam o fim da escravidão:

- A escravidão impede a imigração, desonra o trabalho manual, retarda a aparição das indústrias, afasta as máquinas, excita o ódio entre as classes e produz uma aparência ilusória de ordem, bem-estar e riqueza.

Joaquim Nabuco, assim como outros políticos de sua época, achava que os 300 anos de escravidão tinham marcado muito a mentalidade do brasileiro e a nossa sociedade. Era hora, portanto, de abolir a escravatura!

Em várias províncias começaram a surgir associações de combate à escravidão. No Rio, em 1870, foi fundada a Sociedade Emancipadora do Elemento Servil. Em São Paulo um grupo de mulheres criou a Sociedade  Redentora da Criança Escrava, para libertar os menores negros. Na década de 80, formaram-se novas organizações: o Clube Abolicionista de Pelotas, o Abolicionista Maranhense, a Sociedade Cearense Libertadora, a Sociedade Brasileira Contra a Escravidão e muitas outras.

Em 1883, essas associações uniram-se na Confederação Abolicionista, agrupando militares, médicos, jornalistas, políticos, estudantes. Maioria absoluta de brancos! E de oposicionistas ao regime monárquico. Ser contra a escravidão era ser contra a Monarquia.

Mas havia outras formas de luta. Menos organizadas, porém mais radicais. Nessas a participação dos negros era bem maior.

Ceará, 1881. Cerca de 1.500 pessoas aglomeram-se no porto de Fortaleza. No mar, avista-se ao longe um cargueiro, o "Pará". E nenhuma vela de jangada: todas estavam nas areias da praia do Mucuripe.

Os donos das jangadas ouvem o discurso inflamado do mais popular dos jangadeiros, o mestiço Francisco Nascimento, o "Chico da Matilde". Ele tenta convencer seus companheiros a não transportar escravos em suas jangadas até o "Pará", que faz o tráfico para províncias do Sudeste:

- Nossas jangadas devem carregar ou peixes desse mar, fruto do nosso trabalho, e não irmãos acorrentados!

- No porto do Ceará não se embarcam mais escravos! - repetiu o povo. E assim foi feito. Viva Chico Nascimento, o "Dragão do Mar"!

São Paulo, 1886. Antônio Bento é advogado, promotor e juiz. Sua figura é estranha, não tira uma capa preta das costas e um chapelão de abas largas da cabeça. Mas estranha mesmo para ele é a existência da escravidão num país que se diz cristão; Antônio Bento quer acabar com a escravidão já, por todos os meios. O que adianta só fazer belos discursos no Parlamento? Foi por isso que nasceu o grupo dos caifazes.

Os caifazes têm adeptos como o Tonho Paciência, negro livre que voltou a trabalhar como escravo só para poder organizar fugas. Ou como Nico, que entrava de madrugada nas senzalas e animava todo mundo a sair daquele inferno. Um dia Nico parou: foi assassinado em plena ação.

Os ferroviários escondiam em seus trens os que fugiam. Na cidade de São Paulo os fugitivos eram acolhidos na igreja Nossa Senhora dos Remédios ou numa pensão mantida pelos caifazes. Muitos tomavam o caminho de Santos, onde cresceu o Quilombo de Jabaquara, com suas cabanas de madeira, palha, barro e telhado de zinco, entre o mar e as montanhas.

Luís Gama, ex-escravo e incansável abolicionista, criticava as discriminações da sociedade de sua época:

Se negro sou, ou sou bode,
Pouco importa. O que isto pode?
Bodes há de toda a casta,
Pois que a espécie é muito vasta.
Há cinzentos, há rajados,
Baios, pampas e malhados,
E, sejamos todos francos,
Uns plebeus e outros nobres,
Bodes ricos, bodes pobres,
Bodes sábios, importantes,
E também alguns tratantes...
Aqui nesta boa terra,
Chifram todos, tudo berra...

Nesse mundo de ricos e pobres, de sábios e tratantes, os escravos continuavam sendo os mais oprimidos. Uma opressão tão antiga e tão forte que muitos dos próprios negros já achavam a escravidão um "mal necessário":

- É a nossa sina, ser o braço do sinhô... Nego véio tá cansado, só quer um pouco de paz...

Outros continuavam a luta de Zumbi, de Isidoro, de preto Cosme, dos malês, de Manuel do Congo e Manuel do Carmo. Tinham consciência de seu valor e de seus direitos.

João Mulungu, 25 anos, era um desses negros. Com seus irmãos construiu um quilombo nas matas de Sergipe. Mas uma dúvida confundia seu pensamento:

- Não fomos nós que construímos a fazenda? Por que fugir para tão longe? Merecemos nosso pedaço de terra...

Capturado em 1876, Mulungu preferiu ser enforcado em praça pública a voltar para o cativeiro... Os negros rebeldes não conseguiam se organizar o suficiente para liderar a luta abolicionista e conquistar terra e trabalho livre para todos.

O Governo Imperial sabia, porém, que a escravidão ia acabar. Mais cedo ou mais tarde. Afinal, desde 1850, não entravam mais escravos no país. Isso encarecia o seu preço, ficando cada vez mais difícil para os senhores sustentá-los. Os fazendeiros de café do Vale do Paraíba, que ainda tinham muitos escravos, eram dos poucos que [...] continuavam querendo a escravidão. Já os fazendeiros do Oeste Paulista, que empregavam o trabalhador livre, não se interessavam mais por ela.

Para proteger os velhos senhores do Vale do Paraíba, o Império fazia leis que nunca acabavam de vez com a escravidão. Um exemplo foi a Lei do Ventre Livre, de 1871. Os filhos de escravos nascidos a partir dessa data estariam livres? Não era bem assim. Os meninos permaneciam com suas mães, obrigatoriamente, até oito anos (desde os quatro já colhiam ovos, tangiam os bezerros, alimentavam os porcos e engraxavam as botas dos senhores). Depois dos oito, se os patrões quisessem, eles teriam que continuar ali, trabalhando de graça até os 21. Caso os liberassem antes, os fazendeiros receberiam uma boa indenização em dinheiro!

- Ventre livre coisa nenhuma: prisão de ventre! - comentou com humor um abolicionista.

Outra lei que deixou os senhores tranquilos foi a dos sexagenários, votada em 1885. Ela fez com que certos fazendeiros, como um tal coronel Zé Lopão e um outro, conhecido como Sinhô Lalau, suspendessem a matança em suas fazendas de escravos inválidos. Os negros velhos eram queimados vivos nas fornalhas, enforcados ou mortos por afogamento! Com a lei dos sexagenários, todos os escravos de mais de 65 anos estavam livres. Os senhores não tinham mais que cuidar deles.

- Livres para quê? - perguntou um abolicionista.

- Para morrer de fome, sem ter onde cair! - respondeu outro.

Em 1888, a Lei Áurea aboliu a escravidão. Em algumas províncias, porém - Amazonas, Pará, Bahia e Rio Grande do Sul - já não havia mais negros cativos. No Oeste da província de São Paulo, onde a lavoura cafeeira modernizava-se, a mão-de-obra escrava não tinha grande importância. Ter escravos já não era um bom negócio.

Lei Áurea

A Lei Áurea foi assinada pela princesa Isabel Cristina Augusta Leopoldina Francisca Micaela Gabriela Rafaela de Orléans e Bragança. A lei era curtinha, nada dizia sobre o destino dos ex-escravos...

A Monarquia quis aproveitar ao máximo a abolição para melhorar sua imagem. Os festejos na Corte duraram três dias: a elite assistiu a corridas de cavalo no Derby Clube e o povo passeou de graça nos trens da Estrada de Ferro D. Pedro II. Os teatros também foram franqueados ao público. E em Botafogo realizou-se uma regata comemorativa. D. Pedro II, que estava em tratamento de saúde, aprovou a medida de sua filha regente:

- Grande povo! Grande povo! - exclamou emocionado.

Passada a alegria, as rugas voltaram na testa de muitos homens do governo. O pequeno grupo de fazendeiros do Vale do Paraíba estava furioso. Sentindo-se prejudicado pela abolição, exigiram uma indenização e chegaram a chamar a princesa de "vaca"...

E os 700 mil escravos agora libertos? Onde trabalhar? Onde morar? Para onde ir?

Preocupada com esses problemas, a Confederação Abolicionista não se dissolveu após o 13 de maio. Seus integrantes achavam que era preciso mudar mais coisas, inclusive fazer uma distribuição de terras. Não bastava declarar livres os escravos. Nada conseguiram, porém.

No Rio de Janeiro, para ter onde morar, muitos desses negros marginalizados subiram as encostas dos morros. Num dos morros perto do centro da cidade, eles encontraram outros brasileiros de destino semelhante, gente que vinha do sertão miserável da Bahia. No morro havia uns arbustos que davam uma vagem: era o angico-vermelho-do-campo, que os baianos também chamavam de... favela. O morro virou Morro da Favela.

Empurrados para s favelas, os negros continuaram, depois da Lei Áurea, sofrendo todo tipo de discriminação e sendo constantemente advertidos:

- Vê se te enxerga! Fique no seu lugar, nego safado!

Muitos negros tiveram que ficar no lugar inferior que lhes reservaram os que mandavam na sociedade. Outros, porém, foram enxergando sua força, que colocou pedras nos alicerces do mundo. Foram sentindo a sabedoria de seus orixás. Vendo a beleza de sua negritude.

ALENCAR, Chico et alli. Brasil Vivo 1: uma nova história da nossa gente. Petrópolis: Vozes, 1991. p. 156-158.

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