"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 29 de março de 2012

O reino do Congo

Mais ao sul, na margem meridional do baixo rio Congo, existiu um reino que se tornou conhecido não só em razão da influência que teve sobre os povos da região, mas porque sobre ele foram deixados relatos, feitos por europeus que o conheceram e nele moraram. Estes, além de suas observações, registraram a história oral dos povos locais. Os textos que escreveram são a base para reconstituirmos a história dessa sociedade, que se formou a partir da chegada de grupos vindos do noroeste, da outra margem do rio Congo.

Os membros desse grupo de estrangeiros, que seguiam a liderança de Nimi a Lukeni, passaram a ser chamados de muchicongos e ocuparam terras já habitadas por outros povos bantos, como eles. Por meio de casamentos e alianças, os recém-chegados se misturaram aos antigos moradores dessas áreas, mas guardaram para si as posições de maior autoridade e poder. Sob a liderança dos muchicongos, radicados na capital (Banza Congo), se formou uma federação de províncias às quais pertenciam conjuntos de aldeias. Nestas continuaram em vigor os poderes tradicionais das famílias, as candas, que as haviam fundado. Nas aldeias, um chefe e seu conselho tratavam de todos os assuntos referentes à vida da comunidade. Já um conjunto delas estava submetido à autoridade de um chefe regional, que fazia a ligação delas com a capital, de onde o ntotila, ou mani Congo, governava todo o reino.


Banza Congo, ou São Salvador, como a capital do reino do Congo passou a ser chamada depois de seus chefes adotarem o catolicismo, em gravura do século XVII

Nas aldeias foram mantidas as chefias existentes antes da chegada dos muchicongos. Nas províncias, como os europeus passaram a chamar os conjuntos de várias aldeias, elas foram divididas entre chefes das candas tradicionais e chefes indicados pelo mani Congo entre os descendentes dos muchicongos. O reino do Congo se formou a partir da mistura, por meio de casamentos, de uma elite tradicional com uma elite nova, descendente dos estrangeiros que vieram do outro lado do rio. Isso ocorreu no início do século XV, e quando os portugueses a ele chegaram (o primeiro contato se deu em 1483), encontraram uma sociedade hierarquizada, com aglomerados populacionais que funcionavam como capitais regionais e uma capital central, na qual o mani Congo, como o obá do Benin e muitos outros chefes de grupos diversos, vivia em construções grandiosas, cercado de suas mulheres e filhos, conselheiros, escravos e ritos.

No reino do Congo, ou no que assim foi chamado pelos europeus que o descreveram, moravam povos agricultores que, quando convocados pelo mani Congo, partiam em sua defesa contra inimigos de fora ou para controlar rebeliões de aldeias que queriam se desligar do reino. Aldeias (lubatas) e cidades (banzas) pagavam tributos ao mani Congo, geralmente com o que produziam: alimentos, tecidos de ráfia vindos do nordeste, sal vindo da costa, cobre vindo do sudeste e zimbos (pequenos búzios afunilados colhidos na região de Luanda que serviam de moeda). Nos mercados regionais, geralmente nas capitais das províncias, eram trocados produtos de diferentes zonas, e a capital do reino, Banza Congo, se situava na confluência de várias rotas comerciais. Ali o mani Congo, cercado de seus conselheiros, controlava o comércio, o trânsito de pessoas, recebia os impostos, exercia a justiça, buscava garantir a harmonia da vida do reino e das pessoas que viviam nele. Os limites do reino eram traçados pelo conjunto de aldeias que pagavam tributos ao poder central, devendo fidelidade a ele e recebendo proteção, tanto para os assuntos desde mundo como para os assuntos do além, pois o mani Congo também era responsável pelas boas relações com os espíritos e os ancestrais.

Banza Congo, assim como a capital do Benin, era uma cidade do tamanho das capitais europeias da época. O mani Congo vivia em construções que se destacavam das outras pelo tamanho, pelos muros que a cercavam, pelo labirinto de passagens que levavam de um edifício a outro e pelos aposentos reais que ficavam no centro desse conjunto e eram decorados de tapetes e tecidos de ráfia. Ali o mani vivia com suas mulheres, filhos, parentes, conselheiros, escravos, e só recebia os que tivessem nobreza suficiente para gozar desse privilégio. Na praça é que participava das cerimônias públicas e fazia contato com seu povo. Além do mani Congo e sua corte, moravam na cidade artesãos, comerciantes, soldados, agricultores e cativos.

Imagem do Atlas da viagem ao Congo e ao interior da África Equinocial, Jean Baptiste Douville

Quando os portugueses conheceram esse reino, logo viram que seria um bom parceiro comercial, e trataram de manter relações amistosas com ele. O mani Congo e os chefes que o cercavam também perceberam que poderiam lucrar com a aproximação com os portugueses e a eles se associaram. Por mais de três séculos congoleses e portugueses mantiveram relações comerciais e políticas pautadas pela independência dos dois reinos, mas os portugueses acabaram pro controlar a região, que hoje corresponde ao norte de Angola.

SOUZA, Marina de Mello e. África e Brasil Africano. São Paulo: Ática, 2007. p. 38-40.

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