"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

segunda-feira, 5 de março de 2012

EUA: o "american way of life"

"Não estou neste instante pensando na perda de bens, enorme e séria, como ela o é realmente, que tudo isso envolve, mas unicamente na destruição desenfreada das vidas dos não-combatentes, homens, mulheres e crianças, vítimas de perseguições [...] Os bens podem ser resgatados, as vidas de pessoas pacíficas e inocentes não podem. A presente guerra submarina na Alemanha contra o tráfico comercial é uma batalha contra o gênero humano [...] Estamos presentemente a ponto de aceitar o desafio para uma batalha com este inimigo natural da liberdade e devemos gastar todas as energias da Nação para testar e anular suas pretensões e seu poderio. Estamos satisfeitos, agora que vemos bem os fatos sem nenhum véu ou falsa pretensão a recobri-los, de lutar assim para ultimar a paz mundial e libertar as populações, incluindo os próprios alemães; para que sejam observados os direitos das Nações grandes e pequenas [...] O mundo tem de ser salvo pela democracia."

As palavras anteriores foram ditas pelo Presidente Thomas Woodrow Wilson (1913-1921), no dia 2 de abril de 1917, quando os Estados Unidos declararam guerra à Alemanha.

Ocorria, então, a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), que acarretaria importantes modificações, alterando profundamente as sociedades europeias, americanas, africanas e asiáticas.

[...] a guerra opôs os Aliados (grupo de Estados que se uniram sob a liderança da França, Inglaterra e Rússia) às Potências Centrais (denominação dada à união da Alemanha com a Áustria-Hungria, Bulgária e Turquia), tendo os EUA proclamado sua neutralidade. 

Entretanto, à medida que o conflito se desenvolveu, os interesses norte-americanos foram se identificando com a causa dos Aliados.

Veja, no quadro a seguir, o valor em milhões de dólares do comércio norte-americano com os Aliados, com as Potências Centrais e com os países neutros:


1914
1915
1916
Aliados
824
1991
3215
Potências Centrais
169
11
3214
Neutros
187
330
279



Pela leitura do quadro anterior, você verifica o crescimento do comércio norte-americano com as Potências Centrais; contudo, o valor total das mercadorias vendidas aos Aliados era muito maior.

Que mercadorias eram essas?

Tudo o que você possa imaginar em termos de negócios, desde produtos agrícolas até artigos industrializados, como armas, munições, navios, roupas, calçados, remédios, comida enlatada...

"As transações de produtos industriais e agrícolas se ampliaram com a abertura de créditos bancários aos Aliados (1914), seguida, em 1915, da concessão de empréstimos diretos à Inglaterra e à França."

Desse modo, banqueiros, industriais, proprietários de navios, comerciantes e muitos outros empresários eram, na sua maioria, favoráveis aos Aliados. Mesmo porque o pagamento das vendas a crédito e dos empréstimos aos Aliados dificilmente ocorreria caso a vitória fosse das Potências Centrais.

Acontece que muitos desses empresários também eram acionistas ou anunciantes dos órgãos da imprensa escrita e falada norte-americana.

[...]

Ainda hoje ocorre assim nos EUA, não sendo de espantar que, naquela ocasião, as cadeias de jornais empreendessem hábil campanha com o objetivo de levar a opinião pública a se mostrar favorável à vitória dos Aliados. E os jornais insistiam em alguns temas emocionais que tornaram os Aliados cada vez mais simpáticos aos norte-americanos.

Que temas eram estes?

Os dos laços existentes entre a Inglaterra e os EUA, cujas raízes encontravam-se na colonização inglesa, na permanência de uma língua comum, além dos costumes e das instituições semelhantes.

A obrigação de ajudar a França, cuja participação fora decisiva na conquista da independência dos EUA, começou a ser repetida nos editoriais e nas manchetes dos órgãos da imprensa. [...]

[...]

Para a imprensa norte-americana ficou mais fácil a construção de uma imagem antialemã quando navios norte-americanos começaram a ser afundados pelos submarinos germânicos.

Os jornais passaram a descrever a tragédia de homens, mulheres e até crianças, inclusive norte-americanas, afogando-se no meio do oceano, em consequência do afundamento do navio em que viajavam. Por que o naufrágio da embarcação? Porque fora alvejada por torpedos disparados de um submarino alemão. Os artigos editoriais apresentavam o governo alemão como bárbaro, hostil à democracia, inimigo dos Estados Unidos e violentamente militarista.

E a gota d'água foi a divulgação de um telegrama atribuído a Zimmermann, Ministro das Relações Exteriores da Alemanha, propondo ao governo mexicano uma aliança militar contra os Estados Unidos. Em troca, o México retomaria seus territórios conquistados pelos norte-americanos no século XIX: Novo México, Texas, Utah, Nevada, Arizona, Califórnia...

"Afirmando que interceptara o telegrama - cuja autenticidade foi posteriormente contestada pelos alemães - o serviço inglês de contra-espionagem entregou uma cópia do documento à Associated Press: sua publicação nos jornais provocou uma explosão do clamor público contra a Alemanha; é interessante lembrar que as relações EUA-México eram ruins."

Por que eram ruins? Devido ao avanço da Revolução Mexicana, cujo caráter nacionalista ameaçava os interesses norte-americanos na antiga terra dos astecas. Tanto assim que, por duas vezes, tropas dos EUA invadiram o México: em 1914 e 1916. Isto sem contar o envolvimento em golpes de Estado e pressões diversas sobre os governantes mexicanos.

Mas foi a ameaça de vitória das Potências Centrais - possível pelo enfraquecimento dos Aliados devido à Revolução Russa (1917) - que resultou na entrada dos EUA no conflito.

A intervenção dos Estados Unidos foi decisiva para a vitória final dos Aliados.

[...]

A guerra chegou ao fim quando a Alemanha - após a desintegração do Império Austro-Húngaro e a rendição da Bulgária e da Turquia - capitulou, aceitando uma anterior proposta de paz feita pelo Presidente dos Estados Unidos: os Quatorze Pontos de Wilson.

A Europa estava arrasada e economicamente esgotada. Em contraste, os EUA conheciam um ritmo de crescimento econômico sem precedentes!

O desemprego resultante da desmobilização de milhares de soldados devido ao término da guerra e a redução das vendas de produtos industriais - não só pelo corte das encomendas de material bélico, mas também porque as fábricas europeias voltaram à produção de bens de consumo necessários ao Velho Mundo - constituíram uma combinação perigosa.

Por quê?

Porque acarretaram uma crise econômica nos Estados Unidos [...] em que os estoques agrícolas e industriais se acumularam, os preços de venda das mercadorias caíram, os lucros tenderam a estacionar, empresas fecharam as portas.

Entretanto, a recuperação das indústrias foi rápida, tendo os EUA conhecido um período de extraordinária prosperidade econômica.

O exemplo mais característico desta época pode ser indicado pelo número de automóveis existente no país: havia 700.000 automóveis em 1911, 9 milhões em 1918 e 26 milhões em 1928.

A espantosa multiplicação do número de automóveis teve inúmeras consequências, destacando-se:

* a ampliação e melhoria das rodovias;
* a intensificação da extração do petróleo e da criação de refinarias e de postos de gasolina;
* o aumento da produção da borracha;
* a expansão de antigas e novas atividades como o garagista, o mecânico, o lanterneiro etc.

"O rádio, como o automóvel, começou como um brinquedo e se tornou não só uma necessidade como um promotor de transformações sociais e econômicas. A primeira estação transmissora foi inaugurada em 1920, em Pittsburgh; uma década depois havia quase 13 milhões de rádios nos lares norte-americanos."

Como meio de comunicação, chegou a ter maior influência do que os jornais, somente sendo superado em audiência pela televisão, após a Segunda Guerra Mundial.

Foi também de grande importância a indústria cinematográfica, que levou à abertura de milhares de salas de projeção e à valorização de Hollywood, na Califórnia, como capital do cinema.

Antes mesmo do primeiro filme falado - O Cantor de Jazz, estrelado por Al Jolson, em 1927 - astros e estrelas tornaram-se populares; contudo, o mais extraordinário e genial de todos foi Charles Chaplin, mais conhecido como Carlitos.

[...]

Foi o cinema, aliás, que permitiu a maior propaganda do american way of life.

O que vem a ser isso? O conjunto de costumes e padrões de vida do homem norte-americano.

American way of life

É evidente que a imagem projetada era fantasiosa, otimista, publicitária. Ao mundo, divulgaram-se os arranha-céus gigantescos, beldades de roupas decotadas saracoteando ao som do charleston, salões de clubes repletos de pares sonhadores em meio ao romantismo dos blues... Também se propagava a série de recordes dos atletas, melindrosas de cabelos curtos e geralmente com um falso sinal em uma das faces, pugilistas de várias categorias empenhados em conquistar o cinto de campeão, aparelhos eletrodomésticos diversos, saxofones e pistões solando envolventes músicas de jazz, competições de beisebol, basquete e rúgbi [...].

O american way of life propagado era de uma sociedade onde o amor, a aventura, a riqueza e a alegria de viver eram uma constante!

Mas a outra face da sociedade norte-americana era bem diferente, marcada pelo crime, pela intolerância e pela miséria.

Era o submundo do crime organizado, onde sobressaíam Al Capone, Dion O'Banion, Johnny Torrio, Bugs Moran, cujas quadrilhas não hesitavam em usar suas metralhadoras para eliminar algum concorrente mais ousado. Chicago tornou-se famosa como a capital do crime e da violência, que caminhavam junto à corrupção de políticos e de autoridades policiais e municipais.

Será que você ainda não assistiu, no cinema ou na televisão, a algum filme mostrando guerras entre quadrilhas disputando o controle de casas de jogos de azar e de speakeases (bares para o consumo ilegal de bebidas alcoólicas)?

Consumir bebidas alcoólicas era ilegal nos Estados Unidos? Sim, não só consumir, mas também fabricar, transportar e vender! Em 1919, o Congresso aprovou a Lei Volstead, que se tornou a 18ª Emenda Constitucional, proibindo bebidas alcoólicas em todo o país.

Entidades como a União das Mulheres pela Temperança e a Liga Antibares haviam se mobilizado pela moralização dos costumes e consideraram uma vitória a nova legislação. Mas o homem comum norte-americano não dispensava uma cervejinha, sua dose de uísque ou seu gim com tônica... O resultado foi a violação da lei e o enriquecimento dos gangsters e dos policiais e políticos corruptos!

Contudo, a Constituição também recebeu outra emenda que representou um avanço democrático: a 19ª Emenda assegurou às mulheres o direito de voto (1920).

A intolerância então existente explica a tragédia de Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti, imigrantes italianos e anarquistas. Em 1920 foram presos e, no ano seguinte, um tribunal considerou-os culpados do assalto a uma fábrica e do assassinato de duas pessoas, condenando-os à pena de morte. Apesar da confissão do verdadeiro criminoso, a sentença foi aplicada e Sacco e Vanzetti morreram na cadeira elétrica.

A intolerância igualmente se manifestou contra os judeus, os católicos e os estrangeiros. E sabem quem os perseguia? A Ku-Klux-Klan, chefiada pelo Bruxo Imperial e cujos membros se ocultavam sob capuzes pontiagudos e agiam sempre com violência. Da sua intolerância religiosa e racial não excluíam os negros, a todos chicoteando e não hesitando em recorrer ao assassinato.

[...]

Terra de contrastes, os Estados Unidos conheciam a pobreza em meio à abundância, o fanatismo religioso juntamente com a valorização dos prazeres materiais, a intolerância sob várias formas ao lado de conquistas democráticas, o reacionarismo e o conservadorismo coexistindo com o progresso, forças antagônicas que poderiam ser consideradas faces distintas de uma só moeda. Moeda que, no caso, era o dólar!

AQUINO, Rubim Santos Leão de; LISBOA, Ronaldo César. Fazendo a História: a Europa e as Américas do século XVIII ao início do século XX. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1996. p. 320-325.

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