"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Europa, século XV: "Terras ou dinheiro"?

O cambista e sua mulher, Quintino de Metsys

Já pensou como seria bom se, ao fechar os olhos [...] pudéssemos sonhar que estávamos na Europa 600 anos atrás?

O primeiro choque que teríamos seria quanto ao vestuário das pessoas. Perceberíamos profundas diferenças nas maneiras de trajar de um nobre, de um comerciante e de um artesão.

Está bem. Hoje em dia também se percebe a diferença de vestir existente entre um trabalhador e um comerciante. Entretanto, essa diferença não é tão acentuada na Europa atual como no Brasil de hoje ou no Velho Mundo no início do século XV.

Mas voltemos a nos imaginar no século XV, quando se iniciava a Época Moderna, que se estendeu até o século XVIII.

As cidades europeias cresciam, porém continuavam a não dispor de serviços públicos, tornados tão comuns nos dias atuais, que a maioria das pessoas não avalia quão importantes e necessários são. É o caso dos transportes coletivos. É claro que naquela não haviam sido inventados o ônibus, o automóvel e o caminhão. A maioria das pessoas andava a pé e só os nobres utilizavam-se habitualmente de cavalos e carruagens. Também os bispos e cardeais eram transportados em carruagens e liteiras - aquelas puxadas por belos cavalos ajaezados em cores diversas, estas carregadas pelos servidores dos ricos eclesiásticos.

As ruas eram tomadas pelas carroças dos camponeses que levavam frutas, legumes e animais de abate para o mercado da cidade, onde comerciantes, donas-de-casa, monges, criados, desocupados, mendigos e artistas populares se aglomeravam buscando o que comprar ou o que fazer.

Cego guiando cegos, Pieter Bruegel

Geralmente estreitas e tortuosas, as ruas apresentavam-se mal iluminadas e sujas. Apesar das proibições das autoridades, persistia o costume de se jogar a água suja das casas nas ruas e nas valas nelas existentes.

Talvez você se espantasse ao ver diante de uma igreja imensa um pátio onde populares assistiam a atores de uma companhia ambulante representando uma peça teatral. Por vezes eram acrobatas, saltimbancos e engole-fogos que exibiam suas habilidades para uma platéia entusiasmada. Quem sabe você não teria a sorte de ver uma das representações de marionetes capazes de provocar o riso ou as lágrimas dos espectadores?

Muitas ruas destinavam-se às lojas e às habitações dos serralheiros, marceneiros, alfaiates, tecelões, cuteleiros, cordoeiros, sapateiros... Não que essas atividades se encontrassem todas na mesma rua. Tal coisa era inadmissível naqueles tempos, devendo existir uma rua específica para cada categoria profissional - Rua dos Ourives, Beco dos Ferreiros, Travessa dos Armeiros, Ladeira dos Boticários...

Mas não havia uma rua ou travessa especial para os taberneiros. Em número considerável, as tabernas espalhavam-se pela cidade, sempre repletas de ruidosos bebedores de vinhos e outras bebidas alcoólicas.

As cidades continuavam cercadas de muralhas, com portões que podiam ser fechados quando as autoridades urbanas determinassem. Os tempos eram outros, bem diferentes dos séculos precedentes quando existia a ameaça, quase que permanente, de invasão e pilhagem de uma cidade.

Era evidente a importância que assumiu nas sociedades europeias a riqueza móvel - o dinheiro.

E, com isso, começava a crescer a importância do burguês que vivia principalmente do comércio. E seus costumes, seu vestuário, suas habitações e seus valores contrastavam com os dos senhores feudais, que ainda continuavam dependentes das rendas provenientes dos tributos impostos aos habitantes dos feudos.

Para os senhores feudais, que permaneciam em seus castelos e mansões senhoriais, a terra, ou feudo, continuava a ser fonte básica da riqueza e o fundamento da posição do indivíduo na sociedade. Costumava-se afirmar, como outrora, que "Não há senhor sem terras, nem terras sem senhor".

Entretanto, os burgueses pensavam diferente. Era o dinheiro, a economia monetária, que possibilitava a verdadeira riqueza. O dinheiro permitiria a ampliação do comércio e poderia também ser investido nos setores produtivos. Assim ocorreu no século XVI quando se criaram as manufaturas urbanas.

Começava a crescer a contradição entre essas duas formas de riquezas: terras ou dinheiro?

Você não vê, atualmente, antagonismos entre essas duas formas de riquezas.

Na Época Moderna, contudo, cada uma dessas riquezas se identificava com classes e sistemas econômicos diferentes:

* as terras eram exploradas dentro do modo de produção feudal e pertenciam aos senhores feudais da nobreza e do clero;
* o dinheiro cada vez mais se identificou com a burguesia e o sistema capitalista em formação.

Por conseguinte, toda a Época Moderna deve ser entendida como um período de transição do feudalismo ao capitalismo.

[...]

É o caso do Renascimento, quando, fundamentado no Humanismo, a burguesia desenvolveu uma rica e maravilhosa produção artística, literária e científica contestatória dos valores medievais que refletiam os valores da nobreza e do clero feudais.

E esse movimento intelectual pôde ganhar maior amplitude graças ao alargamento dos horizontes geográficos e culturais, o que se deu com a Expansão Comercial e Marítima. Esta permitiu que a burguesia se tornasse mais rica, tendo, em consequência, mais recursos financeiros para promover as atividades culturais renascentistas.

Com a Reforma quebrou-se o poder da Igreja Católica, instituição que se vinculava ao feudalismo durante a Idade Média. O confisco de muitas terras da Igreja e a sua posterior venda a preços irrisórios permitiu a concentração de grandes riquezas fundiárias nas mãos da burguesia. Criou-se dessa maneira uma burguesia agrária que procurou desenvolver uma agricultura comercial.

A própria existência dos Estados Nacionais e do Absolutismo Monárquico também atendeu aos interesses da burguesia em ascensão, embora necessitando da proteção dos Reis contra as ambições da nobreza e contra a intolerância da Igreja Católica pelas atividades individualistas da burguesia e contra a concorrência estrangeira. Daí os burgueses apoiarem o Mercantilismo, política econômica adotada pelos dirigentes dos Estados Nacionais na Época Moderna.

AQUINO, Rubim Santos Leão de et alli. Fazendo a História: as sociedades americanas e a Europa na Época Moderna. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1990. p. 24-26.

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