"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

1968: Make love, not war!

Make love, not war!, Fora americanos: paz no Vietnã!; Viva a universidade popular! Viva a universidade livre!. Abaixo a ditadura!. Fora soviéticos: queremos um socialismo democrático...

Escritas nos muros ou gritadas por muitas vozes, frases como essas eram comuns em Nova Iorque, Paris, Berlim, Rio de Janeiro, Cidade do México, Praga e em muitas outras grandes cidades do mundo. Um novo poder parecia surgir na década de 1960: o poder jovem, o poder estudantil. A revolta estudantil explodia. Por quê?

- A universidade está velha, decadente, só ensina o que não nos interessa. É preciso mudar tudo! diziam os estudantes em muitos países.

- Desconfiem dos chefes e dos heróis. Desconfiem de todas as pessoas de fora que tentam impor a vocês suas estruturas. Façam o que tenham vontade de fazer. Sejam o que vocês são. Se não sabem o que são, descubram, alertava um líder hippie.

A família, a escola, a sociedade industrial, o racismo, o sistema político, tudo os jovens contestavam!

O maior de todos estes movimentos aconteceu na França, em maio de 1968. Os estudantes universitários queriam mudar os programas de ensino e as relações entre professores e alunos. Lutavam também pelo ingresso na universidade de um maior número de jovens, principalmente os das classes mais pobres. Uma greve, com apoio de vários professores, paralisou as aulas em todo o país. E as ruas das maiores cidades francesas foram tomadas pelos estudantes.

O presidente Charles De Gaulle deu ordem à polícia para reprimir as "agitações". A reação dos jovens foi maior: passaram a criticar duramente o próprio governo. A luta tornava-se claramente política.

Solidários com os estudantes, os operários parisienses, que vinham reivindicando melhores salários e o direito de participar das decisões das empresas, também decretaram greve. Greve geral!

Houve quem visse no movimento o início de uma revolução socialista. Nas universidades os estudantes realizavam debates, declamavam poesias, montavam peças de teatro, namoravam... Nas ruas a multidão carregava bandeiras tricolores da França, bandeiras vermelhas dos comunistas, bandeiras negras dos anarquistas.

- Vocês estão ampliando o horizonte do possível, dizia aos jovens Jean Paul Sartre, um importante intelectual francês.

O sistema capitalista era condenado, mas os regimes socialistas da Europa Oriental também recebiam críticas:

- A humanidade só será feliz no dia em que o último burocrata for enforcado nas tripas do último capitalista, escreviam os jovens nos muros da Sorbonne, a tradicional universidade francesa.

Na França, como em outras partes do mundo, estudantes e operários estavam insatisfeitos com a "engrenagem" que comandava suas vidas.

No fim das contas, porém, a "engrenagem" venceu. A polícia foi ocupando as ruas de Paris, em número cada vez maior. A organização dos rebeldes não era muito grande e a maioria da população ficou assustada com as mudanças radicais exigidas pelos jovens. Mesmo os Partidos Socialistas e Comunistas, que apoiaram o movimento no início, ficaram descrentes das suas possibilidades.

- Os jovens são românticos, não têm os pés no chão. E os operários ainda não têm condições de chegar ao poder, diziam os políticos mais velhos da esquerda. 

Também no Brasil os estudantes saíram às ruas. Quem governava o país, desde 1967, era o marechal Costa e Silva, que havia sido ministro do Exército no governo Castello Branco. Escolhido pelo Alto Comando Militar, seu nome foi facilmente aprovado em eleições indiretas no Congresso Nacional, onde a Arena, o partido do governo, tinha a maioria.

Os grandes problemas educacionais do país continuavam, como o analfabetismo, a falta de escolas e os baixos salários dos professores. Os governos militares, além do mais, diminuíam as verbas destinadas à educação, o que piorava as coisas.

- Mais verbas para a educação e menos canhão! reclamava a União Nacional dos Estudantes.

- O governo quer acabar com o ensino público e tornar as universidades pagas! argumentavam muitos jovens.

- Chega do reitor discutir tudo sozinho! Queremos uma universidade democrática! discursavam os estudantes em reuniões agitadas.

Em março de 1968, no Rio de Janeiro, um secundarista, Edson Luís, foi morto a tiros pela polícia militar, quando protestava com seus colegas contra a má alimentação servida num restaurante estudantil. Sua morte foi como um estopim, agravando as lutas entre estudantes e o governo: cinquenta mil pessoas compareceram ao enterro, que se transformou numa grande passeata de protesto.

Aos poucos, a revolta estudantil espalhou-se por outras cidades. Não faltavam ocasiões. No dia 1º de maio, por exemplo, centenas de estudantes e operários foram a uma concentração na Praça da Sé, em São Paulo. O governador do Estado foi apedrejado e a comemoração do Dia do Trabalho terminou em pancadaria.

O ministro da Educação, Tarso Dutra, não aceitava dialogar com os líderes estudantis. Os estudantes então faziam passeatas, que eram reprimidas com rigor. Prisões, ferimentos, explosões e um cheiro ardente de gás lacrimogêneo passaram a fazer parte do cotidiano do centro da "cidade maravilhosa"...

No dia 27 e junho, diversos panfletos eram distribuídos nas ruas à população carioca. Um deles dizia:

- Povo da Guanabara. Não queremos matar.não queremos morrer infrutiferamente. Queremos, sim, viver o engrandecimento e o bem-estar de todo o povo. Mas ante os arreganhos do opressor não recuaremos, não nos acovardaremos nem pediremos a paz.

O panfleto convidava a população para mais uma passeata.

A resposta ao convite foi surpreendente: naquele mesmo dia cerca de cem mil pessoas saíram às ruas, na maior das manifestações contra o governo desde 1964. Padres e freiras, artistas e intelectuais, estudantes, professores, funcionários e comerciantes exigiam a libertação dos jovens que estavam presos.

- Que querem os nossos filhos? Querem apenas estudar e não depredar e queimar a cidade, discursava uma senhora, representando as mães dos estudantes.

O principal líder estudantil no Rio de Janeiro, Wladimir Palmeira, não tinha papas na língua:

- A ditadura adora leis, deixa ela fazer leis! Faça uma, duas, três constituições, instale e depois amordace um, dois, três congressos, a gente deixa, pessoal...

Os estudantes interrompiam o discurso:

- Abaixo a ditadura! Abaixo a ditadura!

Wladimir prosseguia:

- Mas a gente sabe que até o fim dessa luta a gente derruba uma, duas, três constituições e faz uma lei e nossa assembléia, porque esta assembléia não resolve os problemas de ninguém!

O discurso do líder estudantil carregava a certeza de que logo o povo - sobretudo os trabalhadores das indústrias - iria se rebelar. A classe média que enchia as ruas do Rio naquele momento já mostrava sua insatisfação.

Em abril, na cidade mineira de Contagem, 15 mil trabalhadores cruzaram os braços. A greve durou 10 dias e terminou com uma vitória: o governo autorizou um abono salarial de 10%. Os operários de Osasco, em São Paulo, também pararam contra o arrocho salarial. Algumas fábricas foram ocupadas pelos trabalhadores, que chegaram a aprisionar seus diretores. Durante três dias a cidade viveu uma tensão enorme. Ao final, a polícia conseguiu desalojar os grevistas, prendendo mais de 400 pessoas. O aumento de 35% exigido pelos operários não foi concedido.

Os estudantes achavam que estavam vivendo o início de uma grande transformação social, que mudaria radicalmente o país:

- Foi fascinante cavalgar a crista da onda - a nossa pequena marola estudantil que supúnhamos um maremoto... Sentir que exprimíamos a revolta de milhares de pessoas ao desfilarmos nas ruas, relembra o ex-líder Jean Marc, que seria eleito presidente da UNE naquele ano de 1968.

Quais os sonhos daqueles milhares de jovens que gostavam de vestir calça Lee, muitos deles usando barba, parecidos com o guerrilheiro Che Guevara, que tinha morrido um ano antes na selva boliviana? O que ia na cabeça daqueles moços e moças que liam com tanto interesse as obras de Mao Tsé-Tung, presidente da República da China, e Lênin, o líder da Revolução Russa de 1917?

O sonho deles era a revolução. Essa palavra tinha uma estranha magia para aqueles jovens, pois resumia os seus desejos de amor, justiça e felicidade. Ela traria para o Brasil o fim da miséria, da violência, da divisão de classes.

- O dever de todo revolucionário é fazer a revolução, eles diziam, repetindo a afirmação de Che.

Cuba era um exemplo a ser seguido. Naquela ilha do Caribe, menor que o estado de Alagoas, um grupo de guerrilheiros derrubou, em 1959, o ditador Fulgêncio Batista e implantou um governo popular e socialista.

Porém, tal como o movimento de maio na França, as lutas estudantis no Brasil não duraram muito. O governo Costa e Silva criou um grupo de trabalho para fazer a reforma universitária (nenhum de seus membros foi escolhido pelos estudantes). E a polícia foi tomando conta das ruas, terminando com as passeatas. O Congresso da UNE, realizado em outubro, nem terminou: cerca de mil representantes foram presos no próprio local do encontro.

As manifestações de rua acabavam, mas os protestos contra o governo não pararam. Os bispos da Igreja Católica estavam entre os que mais criticavam o regime. Eles citavam sempre a encíclica do papa Paulo VI, Populorum Progressio (O Desenvolvimento dos Povos).

Num de seus trechos, ela dizia: "Não é lícito aumentar a riqueza dos ricos e o poder dos fortes, confirmando a miséria dos pobres e tornando maior a escravidão dos oprimidos".

Estava acontecendo isso no Brasil?

Muitos deputados do MDB achavam que sim. E sempre que podiam faziam discursos criticando o governo. No final de 1968, o deputado Márcio Moreira Alves fez afirmações que os chefes militares consideraram uma ofensa às Forças Armadas. Ele pedia ao povo para não comparecer à parada militar do Dia da Independência, dizendo que "ainda não somos independentes" e que "os militares não merecem os nossos aplausos".

O governo exigiu que o Congresso Nacional processasse o deputado, mas isto não foi feito.

A reação do Governo Militar então foi violenta: decretou o Ato Institucional n. 5, que permitiu ainda mais cassações de mandatos, fechou o Congresso Nacional por tempo indeterminado e levou para a cadeia dezenas de pessoas.

Muitos deputados quiseram que o presidente da Câmara, José Bonifácio de Andrada, a convocasse para tomar uma posição. Ao ser procurado por um grupo do MDB, José Bonifácio, que era da ARENA, respondeu seco:

- Uma bravata inútil.

- A Câmara, que se reúne a propósito de tudo, não pode omitir-se diante do que está ocorrendo, respondeu-lhe o deputado Martins Rodrigues, do MDB.

- Já não existe Câmara, reagiu irritado José Bonifácio. Hoje, aqui, não passamos de um ajuntamento.

Revoltado com o conformismo de José Bonifácio - um descendente do "Patriarca da Independência" -, outro deputado da oposição, Celso Passos, replicou:

- Seja menos Zezinho e mais Andrada, senhor presidente!

Zezinho retrucou... com uma bravata!

A nova situação política do Brasil provocou reações em muitos setores da sociedade.

- O AI-5 é um golpe dentro do golpe, acusaram deputados da oposição, que viam o movimento de 1964 como um golpe e não uma revolução.

[...]

A reação política mais grave viria dos grupos de esquerda, nos quais havia muitos estudantes universitários. Liderados principalmente por ex-integrantes do Partido Comunista Brasileiro, como Carlos Mariguela e Apolônio de Carvalho, esses grupos decidiram iniciar uma luta armada contra o governo:

- Todas as formas de participação estão bloqueadas. Só de armas na mão a ditadura cai! Só organizando a guerrilha na cidade e no campo conseguiremos atrair os trabalhadores, que são os mais oprimidos!

As Forças Armadas, que já se preparavam para combater esses movimentos, iriam permitir?

A primeira etapa da luta armada contra o governo seria a da organização. Grupos clandestinos começaram a se preparar militarmente, e decidiram iniciar uma luta armada contra o governo: Ação Libertadora Nacional (ALN), a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) e outros. Como sobreviver e preparar a guerrilha? Era necessário ter fundos, dinheiro. Por isso foram realizados muitos assaltos a bancos.

No início de 1969, um capitão do Exército, Carlos Lamarca, abandonava o seu quartel, em São Paulo, com alguns companheiros, carregando fuzis e metralhadoras. Muitos jovens, alguns deles estudantes secundários ainda, deixavam suas famílias para "fazer a revolução"!

[...]

Iniciava-se uma verdadeira guerra entre as forças militares e os grupos da esquerda armada. Como em toda guerra, muitas pessoas foram vitimadas, mesmo sem ter entrado nos combates. O sonho desses jovens de construir um governo popular e socialista logo daria lugar ao pesadelo das prisões, torturas e mortes.

[...]

Com o correr do tempo, os grupos guerrilheiros seriam derrotados. O sonho logo acabaria para uma geração [...].

ALENCAR, Chico et alli. Brasil vivo: uma nova história da nossa gente - 2. A República.  Petrópolis: Vozes, 1991. p. 210-220.

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