"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

O povo de Luzia: os primeiros americanos

As imagens do crânio de Luzia foram processadas em computador por pesquisadores ingleses.
O crânio foi reconstruído em material sintético e a face de Luzia foi reconstituída em argila. Resultado: fisionomia com olhos arredondados, nariz largo e queixo proeminente. Ou seja, traços negroides.

A agricultura e a domesticação de animais surgiram no Velho Mundo por volta de 10 mil anos. Na América, a produção de alimento, através da agricultura e do pastoreio, surgiu de forma independente pouco mais tarde e só se generalizou por todo o continente nos últimos 4 mil anos. Mesmo assim, até hoje alguns grupos indígenas na América do Sul ainda vivem exclusivamente da caça e da coleta de vegetais silvestres. Exceto nos Andes, onde a lhama e o guanaco foram domesticados, a criação de animais como fonte de alimento não exerceu nenhum papel nas demais regiões do Novo Mundo.

Mesmo para os grupos que adotaram o cultivo de vegetais na América do Sul, a caça e a coleta não deixavam de ter importância. Até hoje os grupos indígenas que cultivam (principalmente a mandioca e o milho) nas terras baixas sul-americanas suplementam sua alimentação tanto com a caça e a pesca, principais fontes de proteína animal, como com a coleta de vegetais, importantíssimos como fonte de vitaminas e outros micronutrientes. O mel também é muito apreciado por esses grupos.

Na verdade, durante grande parte da trajetória evolutiva humana, nossos ancestrais viveram exclusivamente da caça e da coleta, sem produzir alimentos. [...] Por isso, é muito importante para a arqueologia e a antropologia entenderem os detalhes desse estilo de vida.

Existem grandes diferenças entre uma vida de caçador-coletor e uma vida baseada no cultivo de subsistência. Primeiramente, o grau de mobilidade. No geral, os primeiros são mais móveis que os segundos, tendo em vista que viver apenas da caça e da coleta exige grande mobilidade durante o ciclo anual e um território de captação de recursos significativamente maior. A alta mobilidade da maioria dos caçadores-coletores (ou forrageadores) impede a exaustão dos recursos naturais locais, sempre limitados, propiciando ao mesmo tempo grande complementaridade alimentar.

Mas aqui cabe uma ressalva. A maioria das pessoas acredita que o nomadismo, que caracterizava a vida de um grupo de caçadores-coletores, ocorre a esmo, dando a impressão de que eles não têm destino, que estão sempre se deslocando, ou que lhes falta o conceito de territorialidade. Tal cenário não poderia estar mais equivocado. No geral, esses grupos se deslocam dentro de uma macrorregião já conhecida e muito bem "mapeada", em termos de fontes de recursos. Estabelecem também uma relação mítica com alguns marcos desse território, relação esta construída em tempos imemoriais. [...]

Outra diferença, também determinada pela sustentabilidade do meio em que vivem, é de caráter demográfico. Grupos forrageadores, denominados bandos, são sempre muito menores que aqueles que vivem da agricultura, denominados tribos. A produção de alimento permitiu ao homem não só manter coeso maior número de pessoas por aldeia, mas também maior densidade demográfica regional. O cultivo de vegetais aumentou artificialmente (e continua aumentando) a sustentabilidade natural da paisagem, mesmo quando praticado em pequenas roças estabelecidas no meio da floresta.

A divisão sexual do trabalho também é distinta entre esses dois tipos de sociedade. Enquanto entre forrageadores os homens caçam e as mulheres (e muitas vezes as crianças) coletam, entre agricultores de subsistência os homens caçam e ajudam no trabalho mais pesado de preparação de roças (derrubada da mata, limpeza com fogo e destocamento). Já as mulheres cuidam do cultivo, da colheita e do processamento dos alimentos produzidos. A pesca é no geral praticada tanto pelos homens como pelas mulheres e crianças nos dois tipos de sociedade.

Entre os caçadores-coletores, o lascamento da pedra é tarefa exclusivamente masculina, ao passo que entre os cultivadores a fabricação de utensílios de cerâmica é atividade exclusivamente feminina. Salvo algumas exceções, no geral grupos caçadores-coletores não fabricam utensílios de cerâmica, tendo em vista que essas vasilhas dificultariam a mobilidade de que desfrutam, e também pelo fato de que processam muito pouco os alimentos oriundos da caça e da coleta. No geral, é na indústria lítica que os forrageadores imprimem sua identidade étnica. Já a esmagadora maioria dos grupos agricultores fabrica e usa intensivamente recipientes de cerâmica. Tais utensílios são essenciais para estocagem, o processamento e o cozimento dos cereais ou tubérculos cultivados. [...]

É muito difícil saber com exatidão o estilo de vida e como era o cotidiano de Luzia e de seus contemporâneos, já que até hoje nenhum acampamento com mais de 10 mil anos foi escavado em Lagoa Santa. [...]

Mas uma coisa é inquestionável: o povo de Luzia vivia exclusivamente da caça e da coleta, desconhecendo completamente o cultivo de vegetais e a fabricação de vasilhas de cerâmica. Sua indústria lítica era composta quase que exclusivamente de instrumentos de pedra lascada. Muito raramente, poliam uma das extremidades de um seixo, dando-lhe um gume, fabricando assim machados muito toscos.

NEVES, Walter Alves. O povo de Luzia: em busca dos primeiros americanos. São Paulo: Globo, 2008. p. 270-1.

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