"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 3 de setembro de 2011

Orientação religiosa do Oriente Próximo antigo

Templo de Karnak, Egito

A religião dominou, impregnou e inspirou todas as características da sociedade do Oriente Próximo: direito, realeza, arte e ciência. Ela foi a fonte de vitalidade e criatividade das civilizações mesopotâmicas e egípcia. Os reis-sacerdotes, ou rei-deuses, cujo poder era sancionado pelas forças divinas, proporcionavam a autoridade necessária à organização de grandes massas de pessoas em empreendimentos cooperativos. A religião também encorajou e justificou as guerras - inclusive escravizações e massacres -, que eram vistas como conflitos entre os deuses.

* Uma visão mítica do mundo. Uma visão de mundo religiosa ou mitogênica (criadora de mitos) dá à civilização do Oriente Próximo sua forma característica e nos permite vê-la como um todo orgânico. A criação de mitos foi a primeira maneira de pensar da humanidade, a mais antiga tentativa de tornar compreensíveis a natureza e a vida. Falando principalmente à imaginação e às emoções, e não à razão, o pensamento mítico tem sido um elemento fundamental da cultura humana, que se expressa com frequência de maneira criativa, na linguagem, na arte, na poesia e na organização social.


Tendo origem nos ritos sagrados, nas danças rituais, nas festas e cerimônias, os mitos narravam os feitos dos deuses que, num passado remoto, haviam criado o mundo e os seres humanos. Sustentando que o destino humano era determinado pelos deuses, o homem do Oriente Próximo interpretou suas experiências através dos mitos. Estes também permitiram aos mesopotâmios e egípcios compreender a natureza, explicar o mundo dos fenômenos. Através dos mitos, a mente do Oriente Próximo buscou dar coerência ao Universo e torná-lo inteligível. Os mitos propiciaram aos povos do Oriente Próximo uma estrutura que lhes permitiu adequar suas experiências a uma ordem significativa, justificar suas regras de comportamento e tentar superar a incerteza da existência.


As civilizações do Oriente Próximo antigo baseavam-se num modo de penar fundamentalmente diferente da perspectiva científica moderna. Há uma profunda diferença entre os pensamentos mítico e científico. A mente científica vê a natureza física como uma coisa - inanimada, impessoal e governada por leis universais. A mente criadora de mitos do Oriente Próximo via cada objeto da natureza como um tu - personificado, vivo, com uma vontade individual. Deuses ou demônios manipulavam tudo. O Sol e as estrelas, os rios e as montanhas, o vento e o relâmpago eram deuses ou residência dos deuses. Para o homem do Egito ou da Mesopotâmia, os fenômenos naturais - a queda de uma rocha, um trovão, uma enchente - representavam a vida enfrentando a vida. Se um rio inundava uma região, destruindo as plantações, era por vontade própria; o rio ou os deuses desejavam punir as pessoas.


[...]


Os egípcios acreditavam que o Sol surgia de manhã, viajava pelo céu e punha-se no reino dos mortos, além do horizonte ocidental. Às vezes, dizia-se que todos os dias a grande Vaca do Céu partejava o Sol e que este era engolido, todas as noites, pela deusa do céu Nur. Depois de repelir as forças do caos e da destruição, o Sol ressurgia na manhã seguinte. Para os egípcios, o nascer e o pôr-do-sol não eram ocorrências naturais - um corpo celeste obedecendo a uma lei impessoal -, mas um drama religioso.


A mente científica sustenta que os objetos naturais obedecem a regras universais; assim, a localização dos planetas, a velocidade dos objetos e o início de um furacão podem ser previstos. A mente criadora de mitos do Oriente Próximo antigo não era atormentada por contradições. Não buscava coerência lógica, nem tinha consciência das leis repetitivas inerentes à natureza. Em vez disso, atribuía todas as ocorrências às ações dos deuses, cujo comportamento era com frequência caprichoso e imprevisível. Médicos feiticeiros utilizavam de magia para proteger as pessoas das maléficas forças sobrenaturais que as rodeavam. A mente criadora de mitos apela à imaginação e aos sentimentos e proclama uma verdade emocionalmente satisfatória, não aquela a que se chegou mediante análise e síntese intelectuais. As explicações míticas da natureza e da experiência humana enriquecem a percepção e o sentimento. Desse modo, faziam a vida parecer menos opressiva e a morte menos aterrorizante.


É claro que o homem do Oriente Próximo praticou formas racionais de reflexão e comportamento. Empregou, sem dúvida, a razão na construção de obras de irrigação, na elaboração de um calendário e nas operações matemáticas. Mas como o pensamento lógico ou racional continuou subordinado a uma visão mítica e religiosa do mundo, ele não chegou a um método racional coerente e consciente de investigação da natureza física e da cultura humana.


A civilização do Oriente Próximo atingiu o primeiro nível no desenvolvimento da ciência - observação da natureza, registro de dados e melhoria da tecnologia de mineração, metalurgia e arquitetura. Não avançou, porém, até o nível do pensamento filosófico e científico autoconsciente - ou seja, as abstrações, hipóteses e generalizações logicamente deduzidas. Os mesopotâmios e egípcios não criaram um corpo de ideias científicas e filosóficas logicamente estruturado, discutido e debatido. Não tinham noção das leis gerais que governam eventos particulares. Essas realizações posteriores couberam à filosofia grega, que deu uma "interpretação racional às ocorrências naturais que até então haviam sido explicadas pelas mitologias antigas (...) Com o estudo da natureza libertado do controle da imaginação mitológica, abriu-se o caminho para o desenvolvimento da ciência como um sistema intelectual". (SAMBURSKY, Samuel. The Physical World of the Greeks. New York: Collier Books, 1962. p. 18-19.)


* Realizações do Oriente Próximo. Sumérios e egípcios demonstraram enorme criatividade e inteligência. Construíram obras de irrigação e cidades, organizaram governos, mapearam o curso dos corpos celestes, realizaram operações matemáticas, erigiram monumentos gigantescos, empenharam-se no comércio internacional, estruturaram sistemas burocráticos, criaram escolas e fizeram consideráveis progressos tecnológicos. Sem a invenção suméria da escrita - um dos grandes atos de criação da história -, o que entendemos por civilização não poderia ter surgido.


Muitos elementos da antiga civilização do Oriente Próximo foram transferidos ao Ocidente. O veículo de rodas, o arado e o alfabeto fonético - todos importantes para o desenvolvimento da civilização - vêm do Oriente Próximo. No âmbito da medicina, os egípcios sabiam do valor de certos medicamentos como o óleo de rícino; sabiam também como usar talas e ataduras. As inovadoras divisões que deram 360 graus a um círculo e 60 minutos a uma hora tiveram origem na Mesopotâmia. A geometria egípcia e a astronomia babilônica foram utilizadas pelos gregos e tornaram-se parte do conhecimento ocidental. A crença de que o poder de um rei descende de uma fonte celestial também provém do Oriente Próximo. Também na arte cristã encontram-se ligações com as formas de arte mesopotâmica - por exemplo, os assírios retrataram seres alados semelhantes a anjos.


Os temas literários da Mesopotâmia foram também copiados, tanto pelos hebreus como pelos gregos. Por exemplo, algumas histórias bíblicas - o Dilúvio, a luta entre Caim e Abel, a torre de Babel - têm antecedentes mesopotâmicos. Há uma ligação semelhante entre os gregos e as mitologias mesopotâmicas antigas.


Assim, muitas das realizações dos egípcios e mesopotâmios foram herdadas e assimiladas tanto pelos gregos como pelos hebreus. Ainda mais importantes para o entendimento do significado essencial da civilização do Ocidente são as maneiras pelas quais gregos e hebreus rejeitaram ou transformaram elementos das velhas tradições do Oriente Próximo para criar novos pontos de partida para a mente humana.


PERRY, Marvin. Civilização Ocidental: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 23-26.

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