"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

O mundo em 4000 a.C.

Pilão e almofariz de pedra, encontrados no Iraque e datados de 7000 a 4000 a.C., provam que os primeiros agricultores do Oriente Médio desenvolveram técnicas para transformar os grãos de trigo e cevada em vários tipos de alimentos.

Por volta de 4000 a.C., a agricultura era um modo de vida estabelecido por toda a extensão do Crescente Fértil, no vale do Nilo e por amplas áreas da China central e setentrional. A consequência mais significativa disso foi a aceleração da taxa de transformação cultural. [...]

Assim como levara apenas algumas centenas de anos para domesticar as plantas e os animais que se tornaram a base desse novo modo de vida, as novas culturas se disseminaram por regiões inteiras. E elas o fizeram em um cenário de mudança climática que abria continuamente novas áreas para povoamento. Nos centros mais antigos de população, não era apenas a quantidade e densidade de aldeias que aumentava; seu tamanho médio também. À medida que cresciam, as características das maiores delas se alteravam. Elas se tornavam vilas: centros de comércio, fofocas e diversão, abrigando os primeiros comerciantes e vendedores porta a porta do mundo.

Conforme as aldeias se transformavam em vilas, a vida de seus habitantes mudava. [...] Projetos, como construção de muros, exigiam planejamento e liderança. Tarefas como fabricação de ferramentas, pesca e cultivo de cereais podiam ser realizadas com maior eficácia se fossem deixadas para especialistas que trabalhassem em período integral em uma única ocupação. [...] Foi com o desenvolvimento das primeiras vilas que três traços distintivos do mundo moderno - burocracia, especialização ocupacional e a classe dos chefes - surgiram.

A concentração mais densa de aldeias e vilas em 4000 a.C. era no Crescente Fértil. [...] Desde o sul da Palestina, através da Anatólia, até o golfo Pérsico, centenas de aldeias grandes e vilas pequenas pontuavam a paisagem. [...] Eridu, nas margens do Eufrates [...] podia vangloriar-se de abrigar 5 mil habitantes. Entre os cultivos que o povo dessa região introduzira [...] estavam variedades domesticadas de duas plantas [...]: a videira e a tamareira. Parte de suas vinhas aperfeiçoadas fornecia uvas para consumo alimentar; outra - Vitis vinifera, a uva do vinho - ofereceu prazeres ainda maiores. A tamareira era uma cornucópia de produtos úteis, incluindo o fruto fresco ou seco, a madeira para fabricação de móveis e as folhas usadas na cestaria.

Além de ajudar a mobiliar os lares, a tamareira também fornecia matéria-prima para a produção de balsas. [...]

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Vivendo como vivemos, em um mundo dependente de metais, é fácil incorrer no hábito de pensar que uma cultura da "Idade da Pedra" devia ser primitiva. Para algumas pessoas, o termo "tijolo de lama" carrega conotações semelhantes. Essa interpretação é mais do que injusta com as vidas desses habitantes das vilas de 6 mil anos atrás. Sua existência era tão alegrada por música, canções e dança quanto a nossa. Eles produziam pinturas, objetos de madeira entalhada, tecidos feitos no tear, joias, elegantes potes moldados no torno de oleiro. Construíam suas casas e edifícios públicos com tijolos de lama [...].

Essa gente do Crescente Fértil tinha sem dúvida a cultura mais sofisticada de sua época, e uma versão mais simples de seu estilo de vida foi seguida por toda a Europa, da Espanha à Ucrânia. Para trabalhar em seus campos, esses lavradores europeus contavam com uma ferramenta de invenção então recente: o arado. [...] Eles não tinham vilas comparáveis às do Crescente Fértil, mas suas aldeias, localizadas nas clareiras das florestas, chegavam aos milhares.

Em 4000 a.C., a cultura agrícola estabelecida no continente europeu ainda não chegara às ilhas próximas. A Bretanha e a Irlanda estavam separadas do continente pela elevação do nível oceânico mais ou menos desde 8000 a.C., ambas cobertas por densas florestas [...]. Essas florestas não eram lugar para humanos; mas nas descampadas terras de charcos [...], alguns milhares de pessoas mantinham o estilo de vida da caça e da coleta que seus ancestrais haviam trazido consigo antes da elevação do mar.

As práticas agropecuárias do Crescente Fértil haviam se espalhado não apenas a norte e a oeste, mas também ao sul e ao leste. Antes de 5000 a.C., a região atualmente conhecida como Saara fora um terreno de savana aberta, pontilhado de grandes lagos e fervilhando de vida selvagem. O vale do Nilo, por outro lado, fora um pântano arborizado. Mas temperaturas em elevação combinadas com a reduzida precipitação das chuvas iniciaram um processo de ressecamento. [...] A exemplo de seus vizinhos na Palestina, plantavam ervilhas e feijões, trigo e cevada. Domesticaram ovelhas, porcos, cabras e gado bovino e tornaram-se hábeis pescadores. Nesse novo e rico ambiente, a população cresceu vertiginosamente, e nas aldeias e vilas ribeirinhas eles agora lançavam as fundações de uma brilhante civilização.

No leste da Ásia, a cultura agropecuária que surgira ao longo do rio Amarelo se espalhara para grande parte da China setentrional. Mais ao sul, o estilo arroz-com-porco do Yangtze se difundira para uma ampla área, mas o arroz ainda compunha apenas modesta porção do consumo alimentício das pessoas que viviam lá. [...] A China em 4000 a.C. possuía, como a Europa, mais aldeias do que vilas.

No Japão a vida girava em torno da pesca e da caça. A elevação do nível dos mares ao fim da Era do Gelo isolara o país, e seus habitantes haviam desenvolvido uma cultura nativa baseada na vida litorânea em pequenas aldeias. [...]

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Pela maior parte do sul da Ásia [...] a prática essencial ainda era a coleta de alimento. Mas no extremo noroeste do subcontinente indiano havia uma cultura agrícola estabelecida. [...]

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No outro lado do Pacífico, o vasto continente das Américas abrigava muitas culturas diferentes. A maioria se caracterizava por um estilo de vida itinerante, baseado no relacionamento com os grandes mamíferos com quem compartilhavam seus ambientes: o caribu, no Norte, o bisão, no Meio Oeste, e o guanaco e a vicunha no altiplano Andino. [...] Os povos das Américas eram todos caçadores ou caçadores-coletores, e a maior parte de seus descendentes o seriam por séculos. Mas no México central, vários tribos nômades que há muito praticavam o cultivo sazonal estavam para iniciar a agricultura fixa.

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[...] desde que os humanos modernos haviam deixado a África, a separação por mares, rios, florestas e cadeias montanhosas resultara em grande diversidade de culturas e línguas. [...]

AYDON, Cyril. A história do homem: uma introdução a 150 mil anos de história humana. Rio de Janeiro: Record, 2011. p. 51-57, 60.

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