"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

O advento do fogo


Cena do filme "A Guerra do Fogo", de Jean-Jacques Annaud (1981)

O maior avanço técnico e cultural do Homo erectus foi o de ele ter aprendido a lidar com o fogo. A primeira evidência do seu uso veio da China (cerca de 600 000 a.C.), mas não mostra que o fogo podia ser produzido. Provavelmente o Homo erectus nunca foi tão longe. Ainda ssim, o fato de esta espécie poder usá-lo foi um enorme ganho, a mais importante mudança isolada na tecnologia antes do advento da agricultura. Foi a primeira extração química de energia, além da transformação da comida dentro do corpo.

Cena do filme "A Guerra do Fogo"

Muitas povos têm lendas de personagens heróicos ou de animais mágicos que pela primeira vez capturaram o fogo, muitas vezes dos deuses. Talvez isso reflita uma vaga memória de que o primeiro fogo foi extraído de uma fonte natural, seja da atividade vulcânica, da erupção de gás natural ou de uma floresta em chamas. Não importa como ele foi obtido, mas o seu uso foi revolucionário - embora devamos nos lembrar de qye levou centenas de milhares de anos para desenvolver todo o seu impacto. Imediatamente significou calor e luz, a conquista do frio e da escuridão, e portanto a sua extensão para dentro do meio ambiente habitável, mesmo que a princípio fosse muito pouco. As famílias podiam sobreviver mais do que antes em regiões mais frias e podiam habitar zonas temperadas com um pouco mais de facilidade. Ao ocuparem cavernas, cujo uso a escuridão antes tornara impossível, estavam mais protegidos do clima. Os animais agora podiam ser expulsos das suas tocas e mantidos a distância (talvez esta ideia de usar o fogo tenha dado origem ao grande jogo da caça). Lanças de madeira puderam ser modeladas no fogo. Foi possível cozinhar. Como resultado, ficou mais fácil comer: podia-se extrair a medula dos ossos cozidos, mas tirá-la crua era uma tarefa laboriosa. Mais importante ainda, foi possível transformar em fontes de alimento substâncias indigestas em estado natural e plantas de sabor desagradável ou amargo em comestíveis. Isto deve ter aumentado a reserva alimentar (e, portanto, facilitado um pouco o crescimento da população). Também pode ter despertado a atenção para a variedade e a disponibilidade da vida vegetal, e assim dado início à ciência da botânica e à arte culinária. Finalmente, com o decorrer do tempo, comer alimentos cozidos ajudou a alterar a molde do rosto e o formato dos dentes.

Cena do filme "A Guerra do Fogo"

Cozinhar também teria encorajado outras restrições e impulsos imediatos: adiava-se o ato de comer e não se sucumbia ao apetite imediato engolindo comida crua. O fogo de cozinhar como fonte de luz e calor teria reunido as pessoas à sua volta, depois do anoitecer, e ajudou a formar um grupo mais consciente da sua própria comunidade. De algum modo, os indivíduos conversavam: o desenvolvimento da linguagem - de cujas origens sabemos muito pouco - deve ter sido acelerado nesse cenário. Finalmente, aos poucos o fogo provocou novas distinções entre os membros de um grupo. A certa altura surgiram portadores de fogo e especialistas em fogo, seres de importância impressionante e misteriosa, pois deles dependia a vida e a morte do resto do grupo. Eles portavam e guardavam a grande ferramenta libertadora e controlavam-lhe o poder, quebrando a férrea rigidez e a disciplina da noite e do dia, e até mesmo das estações.

Cena do filme "A Guerra do Fogo"

Então, já na época do Homo erectus o fogo tinha uma pequena compensação para as pressões dos grandes ritmos externos do mundo natural sobre a vida hominídea. A vida já era menos dominada pela rotina e menos automática do que fora para o Australopithecus; agora estava bem distante da vida dos animais meramente programados pelo instinto e pelos dotes genéticos. O Homo erectus podia fazer escolhas. Esta é a melhor forma de dizer que com esta espécie já estamos no lado humano de qualquer definição da diferença entre símios e homens, por mais restrita e miserável que esta vida possa parecer.

Cena do filme "A Guerra do Fogo"

ROBERTS, J. M. O livro de ouro da História do Mundo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000. p. 32-34.

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