"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 27 de agosto de 2011

O Oriente medieval: Bizâncio e Islã Βυζάντιο الإسلام

Os favoritos do Imperador Honório, John William Waterhouse

O triunfo do cristianismo e o estabelecimento de reinos germânicos em terras outrora romanas representaram uma nova fase na história ocidental: o fim do mundo antigo e o início da Idade Média, período que se estendeu por mil anos. No mundo antigo, o centro da civilização greco-romana estava no mar Mediterrâneo; o coração da civilização medieval transferiu-se para o norte, para as regiões da Europa que a civilização greco-romana mal havia penetrado. Durante a Idade Média desenvolveu-se na Europa uma civilização comum, que integrou elementos cristãos, greco-romanos e germânicos. O cristianismo estava no centro da civilização medieval; Roma era a capital espiritual, e o latim, a língua da vida intelectual, enquanto os costumes germânicos impregnavam as relações sociais e jurídicas. Na Alta Idade Média (500-1050), a nova civilização lutava para tomar forma; no período de 1050 a 1300, a civilização medieval atingiu seu apogeu.

Das ruínas do Império Romano surgiram três novas civilizações baseadas na religião: Bizâncio, o Islã e a cristandade latina (Europa central e ocidental).


Mehmed II entrando em Constantinopla, Fausto Zonaro

Βυζάντιο

* Bizâncio. Βυζάντιο Embora o Império Romano do Ocidente tivesse caído diante das tribos germânicas, as províncias do Oriente sobreviveram - por serem mais ricas, urbanizadas e populosas, e porque os invasores germânicos e hunos visavam principalmente o oeste. Nas regiões orientais tomou forma a civilização bizantina. Sua religião era cristã; a língua e a cultura, gregas; e a máquina administrativa, romana. A capital, Constantinopla, era uma cidade fortificada, cuja localização dificultava ataques por mar e terra.

Durante a Alta Idade Média, a civilização bizantina encontrava-se econômica e culturalmente muito mais adiantada que o Ocidente latino. Numa época em que poucos ocidentais (cristãos latinos) sabiam ler ou escrever, os eruditos bizantinos estudavam a literatura, filosofia, ciência e direito da Grécia e Roma antigas. Enquanto o comércio e a vida urbana haviam sofrido uma grande regressão no Ocidente, Constantinopla era uma cidade magnífica, com escolas, bibliotecas, praças abertas e mercados cheios.

Com o passar dos séculos, desenvolveram-se muitas diferenças entre a Igreja bizantina e a Igreja romana. O papa resistia às tentativas de domínio do imperador bizantino, e os bizantinos não queriam aceitar o papa como chefe de todos os cristãos. As duas igrejas discordavam em relação às cerimônias, dias santificados, adoração de imagens e direitos do clero. O rompimento final ocorreu em 1054. A Igreja cristã dividiu-se em Católica Romana, no Ocidente, e Ortodoxa Oriental (grega), no Oriente - divisão que perdura até hoje.

Afresco bizantino. Cena da comunhão. Artista desconhecido

Divergências políticas e culturais ampliaram a separação entre a cristandade latina e Bizâncio. No Império Bizantino, o grego era a língua da religião e da vida intelectual; na cristandade latina, predominava o latim. Os cristãos latinos recusavam-se a reconhecer os imperadores bizantinos como sucessores dos imperadores romanos. Os governantes bizantinos tinham poder absoluto e declaravam-se escolhidos por Deus para instituir a vontade divina na Terra. Como sucessores dos imperadores romanos, reivindicavam domínio sobre todas as regiões que haviam pertencido ao Império Romano.

Em seu apogeu, sob o governo do imperador Justiniano - que reinou de 527 a 565 -, o Império Bizantino incluía a Grécia, Ásia Menor, Itália, sul da Espanha e partes do Oriente Próximo, África do Norte e Balcãs. Ao longo dos séculos, os bizantinos sofreram ataques dos lombardos e visigodos germânicos, dos persas, árabes muçulmanos, turcos seldjúcidas e cristãos latinos. O golpe mortal sobre o império foi desferido pelos turcos otomanos, originários da Ásia central, que haviam adotado o islamismo como religião e iniciado a construção de um império. Eles avançaram sobre os bizantinos a partir da Ásia Menor e conquistaram grande parte dos Balcãs. Por volta do início do século XV, o Império Bizantino consistia apenas em dois pequenos territórios na Grécia e a cidade de Constantinopla. Em 1453, os turcos otomanos venceram as grandes muralhas de Constantinopla e saquearam a cidade. Depois de mais de dez séculos, o Império Bizantino chegava ao fim.

Em sua história de mil anos, Bizâncio deixou uma marca significativa na história do mundo. Primeiro, impediu que os árabes muçulmanos avançassem sobre a Europa ocidental. Se os árabes tivessem rompido as defesas bizantinas, grande parte da Europa poderia ter sido convertida à nova fé islâmica. Outro fato importante foi a codificação das leis da Roma antiga, durante o governo de Justiniano. Essa realização monumental, o Corpus Juris Civilis, preservou os princípios da razão e da justiça do direito romano. Os códigos jurídicos de hoje têm, em grande parte da Europa e da América Latina, raízes no direito romano preservado pelos juristas de Justiniano. Os bizantinos conservaram também a filosofia, ciência, matemática e literatura da Grécia antiga.

Os contatos com a civilização bizantina estimularam o conhecimento, tanto no mundo islâmico do leste, como na cristandade latina do oeste. Bizâncio também levou essa sua avançada civilização e o cristianismo ortodoxo aos povos eslavos do leste e sudeste da Europa, inclusive russos. Deu-lhes princípios legais, formas de arte e um  alfabeto (o cirílico) baseado no grego, permitindo que suas línguas passassem a ser escritas.

Conquista de Bagdá por Tamerlão, Ya'qub ibn Hasan, conhecido como Siraj al-Husaini

الإسلام 

* Islã. الإسلام A segunda civilização a emergir depois da queda de Roma baseava-se na nova e vigorosa religião do Islã, surgida no século VII entre os árabes da Arábia. Seu fundador foi Maomé (c. 570-632), um próspero mercador da cidade de Meca. Por volta de 40 anos de idade, Maomé acreditou ter sido visitado pelo anjo Gabriel, que lhe ordenou  "recitar no nome do Senhor". Transformado por essa visão, Maomé convenceu-se de que fora escolhido para servir como profeta. Embora a maioria dos árabes do deserto venerassem deuses tribais, nas cidades e nos centros comerciais grande parte da população tomara conhecimento do judaísmo e do cristianismo, e alguns árabes já aceitavam a ideia de um Deus único. Rejeitando as divindades das religiões tribais, Maomé ofereceu aos árabes uma nova fé monoteísta, o Islã, que significa "render-se a Alá (Deus)".


Construção do Forte de Kharnaq, Kamāl ud-Dīn Behzād

Os padrões islâmicos de moralidade e as normas que regulam a vida cotidiana são fixados pelo Alcorão, que os muçulmanos acreditam conter a palavra de Alá, tal como revelada a Maomé. Para os muçulmanos, sua religião é a conclusão e o aperfeiçoamento do judaísmo e do cristianismo. Consideram os antigos profetas hebreus como mensageiros de Deus e valorizam sua mensagem de compaixão e a igualdade dos seres humanos. Também reconhecem Jesus como um grande profeta, mas não o consideram divino. Para eles, Maomé foi o último e maior dos profetas, mas era totalmente humano. Cultuam apenas a Alá, o criador e soberano do céu e da terra: Deus único e todo-poderoso, misericordioso, compassivo e justo. De acordo com o Alcorão, no Dia do Juízo os incrédulos e os iníquos serão arrastados a um lugar terrível de "ventos abrasadores e água escaldante" e os "pecadores (...) comerão (...) fruto [amargo] (...) [e] beberão água fervente". Aos muçulmanos fiéis que vivem na virtude é prometido o paraíso, um jardim de prazeres carnais e deleites espirituais.

Em pouco mais de duas décadas, Maomé unificou as tribos árabes, envolvidas em constantes disputas, numa força poderosa dedicada a Alá e à difusão da fé islâmica. Após sua morte, em 632, Maomé foi sucedido por seu amigo e sogro Abu Bakr, que se tornou califa. Considerado como o defensor da fé, cujo poder derivava de Alá, o califa governava segundo a lei muçulmana, tal como definida no Alcorão. O Estado islâmico era uma teocracia, em que governo e religião eram inseparáveis [...]. Para os muçulmanos, Deus era a fonte de toda a autoridade legal e política, e o califa era seu representante na terra. A lei divina regulava todos os aspectos das relações humanas. [...] O islamismo era, portanto, mais que uma religião; constituía também um sistema de governo, sociedade e lei que, segundo acreditavam os muçulmanos, unia todos os seus adeptos numa única e abrangente comunidade. [...]


Três mulheres em pé, uma de joelhos tocando alaúde e um rapaz com pandeiro. Artista descnhecido

O Islã propiciou às tribos árabes unidade, disciplina e organização para vencerem suas guerras de conquista. Sob os quatro primeiros califas, que governaram de 632 a 661, os árabes rapidamente dominaram o Império Persa, tomaram algumas províncias de Bizâncio e invadiram a Europa. Os guerreiros muçulmanos acreditavam estar envolvidos numa guerra santa (jihad), cuja finalidade era propagar o islamismo aos infiéis, e aqueles que morressem nessa guerra tinham um lugar garantido no paraíso. Outra razão que contribuiu para a expansão foi desejo de fugir à aridez do deserto árabe e explorar as prósperas terras bizantinas e persas. No leste, o território islâmico estendeu-se até a Índia e as fronteiras da China; no oeste, incorporou a África do Norte e a maior parte da Espanha. [...]

Nos séculos VIII e IX, sob os califas abássidas, a civilização muçulmana entrou na sua idade de ouro. Ela sintetizou, criativamente, as tradições culturais árabe, bizantina, persa e indiana. Durante a Alta Idade Média, quando o conhecimento estava em decadência na Europa ocidental, os muçulmanos forjaram uma civilização superior. A ciência, a filosofia e a matemática muçulmanas basearam-se, em grande parte, nas realizações dos gregos antigos. Os árabes adquiriram o conhecimento grego através das civilizações persa e bizantina, mais antigas, que mantiveram vivo o legado helênico. Traduzindo as obras gregas para o árabe e comentando-as, os eruditos muçulmanos realizaram a grande tarefa histórica de preservar a herança filosófica e científica da Grécia antiga. O conhecimento grego, suplementado pelas contribuições originais dos intelectuais e cientistas muçulmanos, foi então transferido à Europa cristã.

O império árabe, estendendo-se desde a Espanha até a Índia, foi unificado por uma língua, uma fé e uma cultura comuns. [...]

No século XIII, os mongóis, liderados por Gengis Khan, devastaram as terras muçulmanas; no século XIV, dessa vez chefiados por Tamerlão, novamente atravessaram o território árabe pilhando e massacrando tudo o que encontravam pelo caminho. Após a morte de Tamerlão, em 1404, o império mongol desmoronou, abrindo caminho para os turcos otomanos.

O Império Otomano atingiu seu apogeu no século XVI, com a conquista do Egito, África do Norte, Síria e litoral da Arábia. Os otomanos desenvolveram um sistema de administração eficiente, mas não conseguiram restaurar o esplendor cultural, o comércio florescente e nem tampouco a prosperidade que o mundo muçulmano conhecera sob o governo dos califas abássidas de Bagdá.

PERRY, Marvin. Civilização Ocidental: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 146-151.

2 comentários:

  1. cara, muito bacana! muito bem escrito, de todos que li que apareceram no Google até agora, esse é o que tem mais conteúdo. dei uma olhada nos outros tópicos, parecem ser bem interessantes também, vou tentar dar uma lida! espero que siga de pé com o blog!

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