"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

segunda-feira, 20 de junho de 2011

A perseguição da bruxaria

Cena do filme "As bruxas de Salem", Nicholas Hytner

Ainda que nascida na camada de baixo, da própria sociedade camponesa europeia, como reflexo das tensões internas existentes em suas comunidades, a perseguição à bruxaria foi utilizada, também, pelas altas camadas sociais para controlá-las.

A bruxaria, conhecida desde a Idade Média como uma mescla de religião popular, tradições pagãs e baixa magia, não era considerada perigosa, sendo aceita, parcialmente, pela própria Igreja. A sociedade medieval mostrou-se condescendente com ela até que a crise do século XIV deu início às primeiras perseguições, que se tornariam mais agudas em fins do século XVI.

O que inicialmente se havia considerado como uma simples política de conjuros e malefícios camponeses alterou-se desde que, em 1486, dois dominicanos alemães, Heinrich Krämer e Jakob Sprenger, publicaram o Malleus maleficarum, convertendo a bruxaria em "uma conspiração diabólica para derrubar o cristianismo". Isto foi o início de uma ampla literatura demonológica que floresceu em fins do século XVI e começo do XVII, em pleno período das guerras de religião, e que serviu de base às grandes perseguições destes anos (a maioria dos processos se desenvolveram entre 1580-1630).

O núcleo central da perseguição situou-se na zona fronteira entre França, Alemanha e Suíça, entre católicos e protestantes que se dedicavam a esta tarefa, com igual zelo (Lutero dissera que não se devia consentir que as bruxas vivessem). Houve perseguições na Inglaterra, Escócia e Holanda e, em menor escala, na Escandinávia, Rússia e País Basco. As execuções continuaram, ainda que diminuindo, até o século XVIII: a última conhecida da Europa ocorreu na Suíça, em 1782, quando a servente Anna Göldi foi decapitada, acusada por uma criança endemoniada, e, cinco anos mais tarde, nos Estados Unidos, nos mesmos dias em que se redigia a carta de independência, a multidão ainda matou uma bruxa na Filadélfia.

As mulheres constituíam 80% das vítimas, quase todas humildes e independentes e, em sua maioria, com mais de quarenta anos. Para explicar este fato, devemos começar recordando a misogenia tradicional do cristianismo, que atribui o pecado original à mulher. Na atitude da Igreja, influiu, sem dúvida, o papel que a mulher tinha na sociedade camponesa como transmissora de muitos elementos da cultura popular, manifestada no fato de ser curandeira e parteira, rival da cura do povoado na influência e muito distante do modelo cristão de mulher ideal, submetida ao marido e frequentadora de atos religiosos.

Diferentemente da perseguição à heresia, a das bruxas não parece ter surgido da iniciativa eclesiástica, mas, sim [...] da própria sociedade camponesa numa época de crise econômica e social, ainda que tenha sido aproveitada pelos grupos dirigentes, tanto pela utilidade que representava, em tempos difíceis, de ter um bode expiatório a quem atribuir os males coletivos, quanto pelo reforço da coesão social que produz a luta contra o inimigo externo (uma luta que o Estado acabou utilizando para controlar estas mesmas sociedades).

[...]

A perseguição da bruxaria não é mais que uma das tantas manifestações, no passado e no presente, do perigo que encerra uma mobilização de massas alimentada por preconceitos de qualquer índole - religiosos, raciais, sociais - que acabam sendo utilizados como uma arma de sujeição coletiva. Ao término do século atual, que viu perseguições tão monstruosas como a da bruxaria, porém em escala muito maior - o gulag, o holocausto, o macartismo, as limpezas étnicas - é preciso entender que não basta a condenação do que, para um observador fora do contexto, aparece como irracional, mas é necessário denunciar a irracionalidade que forma parte de nossa própria cultura. Porque, como disse um estudioso da caça às bruxas: "a bruxa pode ser o outro, mas a crença na bruxaria está em nós mesmos". (BRIGGS, Robin. Witches and Neighboors. New York: Viking, 1996. p. 411.)

FONTANA, Josep. Introdução ao estudo da história geral. Bauru: EDUSC, 2000. p. 355-7.

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