"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 19 de junho de 2011

Começou a entrar água na cabeça dos homens

Mural da ex-estação de trem de Concepción. Esta parte do mural retrata cenas da cruel Guerra do Arauco entre os índios araucanos (mapuches) e os conquistadores espanhóis.

"(...) Chegou pela primeira vez em Campeche, o barco dos Dzules, brancos (...) E, com eles, vem o tempo em que os homens maias ingressaram no Cristianismo (...) Começou a entrar água na cabeça dos homens."
 (Livro de Chilam Balam de Chumayel)

Sem caírmos nos radicalismos da Leyenda Negra, que atribui aos espanhóis as maiores atrocidades na América, não se pode negar que o comportamento do conquistador foi sempre violento: matou milhares de indígenas, saqueou suas riquezas, explorou sua força de trabalho, desestruturou o mundo nativo mediante uma conquista que não foi unicamente militar, mas também racial, religiosoa econômica, cultural e política.

"Quantas cidades arrasadas, quantas nações exterminadas, quantos milhões de povos passados a fio de espada, e a mais rica e bela parte do mundo transtornada pela negociação de pérola e de pimenta." (Trecho dos Ensaios de Michel Montaigne, escritor francês do século XVI)

A violência, contudo, foi exclusiva do espanhol? Ou será que portugueses, ingleses, holandeses, franceses e outras sociedades conquistadoras agiram de maneira diferente, seja na América dos séculos XVI e XVII, seja na África e Ásia Oriental nos séculos XIX e XX?

A reação indígena não foi idêntica nas comunidades que entraram em contato com o espanhol.

Em alguns casos o indígena mostrou-se amistoso e chegou a se aliar ou a se submeter sem muita resistência ao conquistador. "A vitória de Cortez sobre Montezuma (...) só pode ser compreendida se lembrarmos a aliança do conquistador com Xicontécatl, chefe dos Tlaxtaltecas, inimigos tradicionais dos mexicanos (...) Na conquista do Peru, Pizarro, por sua vez, será muito ajudado pela aliança que fará com o cacique Quilimasa." (ROMANO, Rugiero. Os Mecanismos da Conquista Colonial: Os Conquistadores. Perspectiva: São Paulo, 1973. p. 16.)

Mesmo entorpecido pelo fatalismo cosmogônico de suas crenças que concebiam a vida como uma continua destruição ou pelo retorno inevitável de deuses ao mundo que haviam criado, o indígena lutou como pôde contra o conquistador. Mesmo aterrorizado pelos efeitos de novidades incompreensíveis ao seu contexto mental (como o cavalo, as armas de fogo, as armaduras de aço etc.), o indígena utilizou todos os recursos de suas técnicas guerreiras e de armamentos primitivos, cuja inferioridade mais se evidenciava quando confrontados com o equipamento bélico do invasor.

É certo, porém, que inúmeros grupos indígenas despertaram o pavor do espanhol diante do efeito mortífero de flechas envenenadas, arremessadas por exímios arqueiros ou projetadas pelas temíveis zarabatanas. No Caribe, em Tucumán (Argentina) e no País dos Mojos (Amazônia) muitos conquistadores tombaram atingidos mortalmente por flechas envenenadas.

Nos Pampas, para neutralizar os cavalos que transportavam os guerreiros brancos, os indígenas inventaram a boleadeira que até hoje é usada pelos gaúchos: arremessadas nas pernas do animal, nelas se enroscavam e provocavam a queda do cavalo e do seu cavaleiro, prontamente atacados pelos nativos.

Em muitas regiões recorreram os indígenas ao emprego de cabaças contendo pimenta ou folhas verdes queimadas; a fumaça desprendida provocava ardência nos olhos e momentaneamente reduzia a visão, o que era aproveitado pelo índio para se engajar em combate corpo-a-corpo com o espanhol.

Se na maioria das vezes os nativos acabaram derrotados, nem sempre o branco saiu vencedor. Os araucanos do Chile, os peles-vermelhas dos atuais EUA, os guaicurus do Chaco, os charruas do Uruguai e outros grupos mais não hesitaram em abandonar seus anteriores padrões culturais e aprender a utilizar o cavalo para melhor resistir e atacar o conquistador. Os charruas, por exemplo, eram excelentes canoeiros e pescadores antes de adotarem os padrões de vida baseados no nomadismo predatório eqüestre. Os araucanos, que tiveram em Lautaro um dos seus principais dirigentes, tornaram-se excelentes cavaleiros e, mediante ataques fulminantes e guerras de guerrilha, destruíram sistematicamente os estabelecimentos criados pelos espanhóis no Chile meridional: sua tenaz resistência obrigou os invasores a assinar o Tratado de Quillin, reconhecendo a soberania araucana sobre as terras ao sul do Rio Bio-Bio (1641). AQUINO, Rubim Santos Leão de et al. História das sociedades americanas. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1990. p. 67, 69-70.

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